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Intertextualidade: Os labirintos de Borges

Capítulo IX – Onde se conta o que nele se verá

3.5. A divindade do espaço – A Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borg , ou melhor, Jorge de Burgos

3.5.3. Intertextualidade: Os labirintos de Borges

Inegavelmente, O Nome da Rosa de Umberto Eco se estrutura sob os jogos da intertextualidade. O aspecto labiríntico da biblioteca do mosteiro demonstra não só a ambientação fantástico-gótica, mas também uma relação intertextual de grande relevância por ser um dos eixos da interpretação da narrativa.

A forma de construção da biblioteca de O Nome da Rosa remete ao conto “A Biblioteca de Babel” de Jorge Luis Borges (eis o porquê do personagem se chamar, numa outra referência intertextual reconhecível, Jorge de Burgos). A biblioteca é a grande metáfora do mundo. Cada livro, como cada ser humano, é um universo de códigos e linguagens a serem decifrados. O mundo é um constante labirinto a ser desbravado; um labirinto repleto de dificuldades e que só pode ser decifrado por meio do poder da razão. Cada livro, dentro dessa biblioteca, tem seu valor próprio. Porém, como conhecer cada livro em sua totalidade de sentidos? Eis o trabalho da humanidade: um constante exercício de decifração da verdade, um decifrar-se para decifrar. Mas durante esse processo, erros podem acontecer (o que ocorre na maioria das vezes) e esses erros podem conduzir a falsas interpretações sobre si e sobre o mundo - tal como Guilherme e Adso fizeram na primeira vez em que visitaram a biblioteca, quando acharam que não seria difícil se orientar dentro dela, perdendo-se depois e se deparando com o erro provocado pelo próprio orgulho de querer dominar o conhecimento e de serem donos da verdade.

A biblioteca do mosteiro de O Nome da Rosa demonstra que não há verdades, mas sim uma única verdade: a de que em nome da “verdade” subjetiva e egocêntrica de cada indivíduo cria-se o discurso da intolerância. Como conseqüência, ocorre o choque entre essas “verdades”. A única verdade é, portanto, não a proveniente de um grupo de livros (homens) ou de um determinado conjunto de salas da biblioteca (países, partidos políticos, conglomerados econômicos, etc), mas das possibilidades do diálogo entre livros e salas (os homens e o mundo).

O discurso do ouvir, mais do que o do dizer; o potencial de refletir, mais do que a força do se impor. O mundo decifrado não é o significado pronto, mas a construção do sentido. A admissão de verdades únicas gera o estabelecimento de preconceitos e são eles que geram a destruição da biblioteca (uma espécie de fogo apocalíptico). A destruição dos preconceitos e da intolerância se constitui no verdadeiro passo da decifração. Somente o questionamento propicia a condição de se eliminar da biblioteca os elementos de sua própria destruição.

Levar a narrativa à Idade Média foi, portanto, de relevante importância à obra de Umberto Eco. Em pleno discurso da intolerância e do preconceito que se apresentava por meio da Inquisição é que Guilherme (o homem racional) busca a decifração da verdade. Nesse processo, descortinam-se, por meio de sua ironia, as falácias vividas durante a Idade Média e como tais “erros de interpretação” contribuíram para com o sofrimento do mundo. Entretanto, o próprio Guilherme, na busca pela verdade, acaba cometendo erros ao ler as pistas que lhe aparecem. Por um momento, até ele chega a pensar que o provável assassino estava utilizando a seqüência das sete trombetas do Apocalipse para matar os monges do mosteiro, dando a impressão delas serem causadas pela chegada do anticristo. Diante da ignorância e do medo dos homens da época, Guilherme quase foge do universo racional, quase interpreta de maneira deturpada as pistas que lhe surgem.

O jogo intertextual de Eco em O Nome da Rosa também pode ser interpretado como um emaranhado de pistas que constroem a base de todo o texto. Ora as intertextualidades podem ser percebidas, ora elas podem ser inteiramente irreconhecíveis. A capacidade de vê-las está no volume de leituras do decifrador (ou seja, sua enciclopédia), e na sua experiência de vida. Guilherme também é o espelho disso. Somente seu conhecimento não era suficiente para a decifração das pistas: sua experiência de vida foi de fundamental importância na busca pelo sentido.

Decifrar a biblioteca do mosteiro, tal como Adso e Guilherme fizeram, ao mesmo tempo em que se constitui num risco (pois de certa forma eles poderiam morrer ao buscar saber quem era o assassino), se configura num exercício de autodescobrimento. Adso, apesar de não ter a capacidade de decifrar o mundo como a de seu mestre, passa, entretanto, a ter seu próprio mundo de experiências que alteram o seu modo de ver e interpretar a vida e todos as ideologias nas quais se baseava. O intercâmbio sexual com uma pobre moça (depois considerada bruxa pelo inquisidor Bernardo Gui) faz com que ele questione os critérios de justiça da Inquisição e a sua própria concepção de amor, que antes só possuía de maneira teórica e superficial.

Decifrar o labirinto da biblioteca de O Nome da Rosa é, antes de tudo, decifrar o mundo e é por meio de todo esse processo de busca racional que o universo fantástico não consegue se estabelecer na narrativa. É a busca pelo sentido em meio à Babel do conhecimento.

Assim como Borges cria sua biblioteca babélica, Cervantes criou a biblioteca de seu Dom Quixote. Em seu ensaio “Entre La Mancha e Babel” (2003), Umberto Eco explica que a biblioteca de Dom Quixote é uma biblioteca “da qual se sai”, enquanto a de Borges é uma biblioteca “da qual não se sai”, porque a busca pela palavra verdadeira é infinita e sem esperança para este último. A diferença básica entre o fidalgo de Cervantes e Borges é que “Dom Quixote acreditou que o universo fosse como a sua biblioteca. Borges, menos idealista, decidiu que sua biblioteca era como o universo”. (ECO, 2003, p.101)

Dom Quixote é levado pelos livros de sua biblioteca a descortinar um mundo existente em sua imaginação, enquanto que para Borges, manter-se na biblioteca é necessário, uma vez que não se sabe ao certo o que seja o universo. Segundo Eco, ele supera a intertextualidade para antecipar a era da hipertextualidade, indo do interior de um livro para o interior de um outro, sucessivamente. Isso porque a literatura é o discurso do desvelamento, da revelação de idéias e conceitos que podem conduzir o leitor a conhecer a verdade: “Essa é a idéia: as artes realizam uma singular forma de esclarecimento que pode ser denominada de “revelação”” [...] (IANNI, 2003; p.23)

O questionamento dado em O Nome da Rosa acerca do conceito de verdade só pode exercer sua função devido à forma pela qual a narrativa se constrói. O movimento de suspensão revelado na análise dos trechos da obra demonstra uma característica essencial da obra literária – o despertar por meio da revelação. Somente uma releitura atenta da obra demonstra como a busca pela decifração da verdade é um dos eixos construtores da narrativa. Isso fica evidente desde seu início, quando Adso diz querer contar toda a verdade sem omitir nenhum acontecimento.

Diferentemente do discurso do historiador, a obra literária, principalmente a de caráter histórico como O Nome da Rosa, consegue esclarecer o mundo (e o “estar do homem no mundo”) por meio de um efeito quase epifânico que é proveniente de sua linguagem. A linguagem literária, por excelência, esclarece não porque explica os fatos, ou porque conduz seu interlocutor à compreensão de novas realidades, mas sim porque revela artisticamente uma outra visão sobre as coisas. É o poder da palavra, artisticamente assentada em sua plurissignificância, que permite aos leitores a elucidação inesperada de fatos, dados e acontecimentos vividos pelas personagens, que, por sua vez, podem ser revelações sobre sua própria vida. Dessa maneira, o

discurso histórico de caráter metaficcional não tem compromisso com a realidade porque não é a realidade, mas a utiliza como “pano de fundo” para sua própria construção.

Assim, a presença aparente do sobrenatural (principalmente na ambientação labiríntica da biblioteca) em O Nome da Rosa só aparece no universo ficcional da obra e é utilizada em contraste com a presença do racional. É esse desvelamento racional do espaço que implica o descortinamento da temática da obra: a verdade sempre se mostra presente ao homem, necessitando apenas ser decifrada, por meio do estabelecimento de questionamentos e dúvidas.

Pode-se constatar, desse modo, que o sobrenatural não consegue estabelecer sua presença em O Nome da Rosa por causa da constante interferência do universo racional das personagens Guilherme e Adso, que rompem com o clímax de medo e mistério presentes na ambientação gótico-fantástica da biblioteca. A razão ainda exerce a função de levar a narrativa ao estatuto policial devido à busca por pistas e significados que ajudem na elucidação da identidade do assassino dos monges.

O estudo sobre a construção do espaço do romance de Eco propicia uma melhor lucidez acerca do âmbito de significados que a narrativa constrói em torno desse que é o ponto central da narrativa - a biblioteca onde os livros, verdadeiros protagonistas da história, se localizam. A biblioteca como metáfora do orbe terreno e suas relações intertextuais com “A Biblioteca de Babel” de Borges também são referências importantes, pois demonstram que mesmo num estudo que busca uma abordagem diferenciada sobre seu objeto, alguns elementos essenciais que o constituem não podem ser menoscabados. Por isso, a referência intertextual com o conto de Borges é importante, pois é justamente a partir dessa intertextualidade que se faz o espaço em que se concentra a ação da narrativa, sendo ainda que esse espaço constitui-se num dos principais alicerces de interpretação da obra.

A desconstrução do fantástico em O Nome da Rosa é, portanto, uma realidade dentro da narrativa, e que se dá por causa da razão e também por meio do riso irônico, elemento esse desconstrutor de todo discurso que procura auto-propagar-se como detentor da verdade. O sobrenatural, desse modo, não consegue se manter na construção da narrativa pois ela busca (com o sobrenatural) a simples manutenção de um jogo ficcional propiciador de crescente permanência da dúvida para sua conseqüente decadência diante da realidade apresentada pela razão e pela experiência. É esse jogo formal que faz de O Nome da Rosa mais que um best-seller, mas uma obra viva à posteridade. A importância desse espaço está justamente no ponto em que ele auxilia o leitor a compreender o personagem Jorge de Burgos que, intertextualmente e narrativamente, só existe porque a biblioteca existe. Jorge é enigmático e indecifrável como a biblioteca, vivendo

num mundo “do qual não se sai” tal como a biblioteca de Jorge Luís Borges. Portanto, ao se falar detalhadamente da função que a biblioteca exerce no contexto da obra, já se elucida toda a importância que esse personagem tem para a trama do romance

4 – O riso proibido e a imposição do medo