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A mímesis como construção do sujeito

Capítulo IX – Onde se conta o que nele se verá

5.4. A mímesis como construção do sujeito

A reflexão feita neste trabalho acerca da mímesis tem como escopo alcançar uma maior capacidade de abordagem teórica para a análise de um corpus. O romance O Nome da

Rosa é costumeiramente enquadrado como um romance histórico. Como tratar a realidade em

uma obra ficcional que se emoldura como real, como enunciadora da realidade?

Palavras como realidade, ficção e verdade acabam por perderem-se em meio a diversas conceituações. E o que se poderia dizer acerca da mímesis? Após a apresentação dos conceitos de Antoine Compagnon e Hegel, serão apresentadas, agora, outras reflexões capazes de pautar um direcionamento teórico lúcido sobre o conceito e que auxiliarão a breve análise do que seria a metaficção historiográfica O Nome da Rosa.

Pelas definições lançadas por Compagnon e Hegel, não se pode destituir a obra de arte, principalmente a literatura, de um elemento primordial a sua elaboração, ou seja, o leitor. Responsável pela interpretação da obra e principal agente dos reconhecimentos, ele é o elemento que abstratamente constitui a elaboração artística. Dessa maneira, a mímesis reavaliada, tal como é aqui apresentada, exige a participação do leitor, como elemento fecundo da representação.

Umberto Eco, em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), obra em que ele metaforiza a obra literária, principalmente o romance (a narrativa), na imagem de um bosque, tratará das questões que envolvem o leitor e daquelas que dizem respeito ao modo como a obra literária trabalha com o universo da realidade. Tal metáfora tenta evidenciar a plurissignificância do texto literário, que pode encontrar várias interpretações, assim como o caminhante pode encontrar diferentes saídas de um bosque. No que concerne à noção referencial

da obra literária, há um trecho importante desse livro de Eco, que servirá de apoio à argumentação aqui apresentada.

Umberto Eco afirma que “uma das técnicas que um autor pode utilizar para demorar-se ou diminuir a velocidade da leitura é a que permite ao leitor dar ‘passeios inferenciais’.” (Eco, 1994, p.56).

Percebe-se que Eco pressupõe que, no ato da composição da obra, sejam também elaboradas as expectativas de leitura. E é por meio desses nichos de imaginação do leitor que a

mímesis atua, ou seja, a referência, o real, “entra” por aí na ficção. Eco explica melhor o que ele

entende por “passeios inferenciais”:

[...] quis dizer, nos termos de nossa metáfora silvestre, caminhadas imaginárias fora do bosque: a fim de prever o desenvolvimento de uma história, os leitores se voltam para sua própria experiência de vida ou seu conhecimento de outras histórias. (ECO, 1994, p.56).

Assim como Compagnon, Eco não destitui o mundo real da literatura. O real não é algo que está na obra, como cópia, mas algo presente no leitor. A mímesis, portanto, é a reconstrução da realidade no leitor, sem destituir a literatura da capacidade que ela tem de falar de si mesma, tal como rege a teoria moderna representada por Roland Barthes, como elucidara Compagnon. Ainda sobre a mesma citação de Eco, pode-se concluir que, para ele, a mimesis é, também, um processo de conhecimento, tal como Hegel expunha e como Compagnon, pautado em Northrop Frye e Paul Ricoeur, havia exposto. Disso pode-se concluir que a mímesis é um processo dinâmico de experimentação da realidade por meio do leitor. Alberto Manguel, em seu livro Uma história da leitura, reconhece na leitura esse caráter dinâmico: “Aprendi rapidamente que ler é cumulativo e avança em progressão geométrica: cada leitura nova baseia-se no que o leitor leu antes.” (MANGUEL, 1997, p.33)

A mímesis é a realidade transfigurada no mundo de leituras e na experimentação empírica do leitor. Em outro trecho, Umberto Eco deixa bem evidente o caráter de reconhecimento que a obra literária oferece ao leitor. Tal como Compagnon expõe em seu trabalho já citado, o leitor alcança o reconhecimento por meio do reconhecimento do herói: “O processo de fazer previsões constitui um aspecto emocional necessário da leitura que coloca em jogo esperanças e medos, bem como a tensão resultante de nossa identificação com o destino das personagens.” (ECO, 1994, p. 58)

Se a mímesis é um processo não do mundo real, mas daquilo que poderia ser o real, e se esse processo é realizado internamente pelo leitor, conclui-se que a mímesis é um elemento co-participante da reflexão de um sujeito. Luiz Costa Lima, em seu livro Mímesis:

desafio ao pensamento, procura trazer à tona um conceito de mímesis capaz de estabelecê-la não

de maneira denegrida, mas re-estabelecida ao seu valor intrínseco. Em seus “Quatro fragmentos em forma de prefácio”, podem-se constatar dois pontos culminantes para um entendimento crítico sobre a mímesis. Trata-se de dois pontos centrais que serão desenvolvidos no decorrer de seu livro. O primeiro diz:

À medida que a concepção antiga da mímesis a considerava correlata às propriedades da physis, mesmo que levando em conta suas propriedades como

natura naturans, a tinha necessariamente como dependente da realidade. Sua

reconsideração, ao invés, procura mostrá-la tendo seu ponto de partida fora das incitações da realidade, como busca de constituição da identidade subjetiva do agente – i. e., de cada ser humano; a mímesis, como se dirá com Borch- Jacobsen, antes tem a ver com o ser do que com o ter. Esse ponto de partida, contudo, se enlaça necessariamente à atmosfera da realidade, combinando pois apresentação [...] com representação, não reapresentativa de algo anterior, mas constituída a partir do efeito produzido no agente – seja ele o criador, seja o receptor. (LIMA, 2000, p.25)

Conforme o excerto já informa, a mímesis “reconsiderada” não deve mais ser dependente da realidade. Seu ponto fulcral é “a busca de constituição da identidade subjetiva do agente”. Talvez, muito próximo de um valor conteudístico, tal como em Hegel, a mímesis esteja relacionada mais com o ser do que com o ter. Costa Lima deixa claro, pois, que a noção subjetiva do sujeito se “enlaça à atmosfera da realidade”. O que se pode depreender disso é que o sujeito é um agente formador e formado pela realidade experimentada pelo próprio sujeito no momento de execução ou leitura da obra.

No segundo trecho citado, ver-se-á a total elucidação do que é a mímesis mediante a “reconsideração” de Costa Lima:

Toma-se a mímesis como um fenômeno existentivo – prefiro o neologismo para evitar confusão com ‘existencial’ – e não simplesmente como um conceito. Por isso mesmo a fecundidade de seus produtos, em última análise, se afirma pela circulação que alcança. Essa circulação depende da verossimilhança que a obra particular, o mímema, é capaz de despertar. Não se há entretanto de confundir a verossimilhança com um princípio normativo, nem muito menos é presumível que ela ocorra contemporaneamente à produção da obra inovadora. A criação de verossimilhança é uma vocação da obra. E isso dentro de uma concepção de

– ela não só recebe o que vem da realidade mas é passível de modificar nossa própria visão da realidade. (LIMA, 2000, p.25)

A mímesis, conforme é apresentada por Costa Lima, é mais que um fenômeno normativo ou reduplicador da natureza. Ela é antes um elemento questionador do real: “ela não só recebe o que vem da realidade mas é passível de modificar nossa própria visão da realidade”. Dessa maneira, torna-se claro que a ficção nunca é cópia da realidade, mas enuncia aquilo que poderia ser o real, pois ela tem como “pano de fundo” (conforme os termos de Umberto Eco) a própria realidade. O discurso literário apresenta-se, dessa forma, não como aquilo que é dito ou como o próprio real, mas como um substrato capaz de promover a reflexão de seus agentes. Todo impulso reflexivo gera (como num efeito dominó) o encadeamento de reconhecimentos e conhecimentos. Dessa forma, a mímesis se apresenta como um elemento destruidor de pré- conceituações, pois, ao questionar o que é a realidade, acaba por questionar a própria noção de realidade que o homem tem.

Com essa concepção de mímesis, apresentada por Costa Lima, que vem reiterar o que foi exposto até este momento, pode-se dizer que a verdade é um substrato construtivo efetivamente ativo, oriundo da reiterada postura reflexiva que o sujeito adota de si para consigo, como para com o meio social em que se encontra. A literatura, por meio da mímesis, oferece essa construção ativa do que seja a verdade, devido ao seu caráter propriamente já reflexivo. Costa Lima diz ainda que a reconsideração da mímesis se pauta na concepção da mesma como “impulso para a identidade subjetiva”.

Como identidade subjetiva pode ser entendida a capacidade que o ser tem de conhecer a si mesmo, ou seja, de certa forma, esta é uma concepção socrática do que é conhecimento. Se o ser só pode conhecer a realidade à medida que tem um conhecimento mais apropriado de si mesmo, a mímesis, antes de ser a revelação da realidade por meio dos reconhecimentos, se configura, exatamente, como o conhecimento que o sujeito passa a ter de si mesmo por meio da leitura da obra ficcional.

Ao apresentar tal conceito, a mímesis se apresenta também como a demonstração do pensamento e do modo de viver de toda uma civilização, isto é, a Grécia em seu período clássico. A mímesis é um processo racional de autodescobrimento promovido pela sensibilização proporcionada pelo texto literário, discurso estético recamado de potencial reflexivo e de revelação.

Todos os argumentos apresentados até aqui vêm corroborar o que Otávio Ianni afirma em seu texto Estilos de Pensamento: explicar, compreender, revelar (2003). Ele diz que há três estilos de pensamento: as ciências naturais realizam a explicação, as ciências sociais realizam a compreensão e as artes surpreendem e fascinam pela revelação. De maneira sucinta, vê-se que Ianni compreende as artes como um estilo de pensamento, uma espécie de desafio – para usar o termo de Costa Lima – a se realizar diante do leitor e no leitor. A arte, assim entendida, é indissociável da mímesis e de uma função instrutiva, tal como Hegel expusera; ela é, definitivamente, o lugar próprio da revelação: “Essa é a idéia: as artes realizam uma singular forma de esclarecimento que pode ser denominada de ‘revelação’[...]” (IANNI, 2003, p.23)