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Os sete dias de uma trajetória de formação: Adso e o desvelamento da verdade

Capítulo IX – Onde se conta o que nele se verá

3.3. Elementar meu caro Wats Adso

3.3.2. Os sete dias de uma trajetória de formação: Adso e o desvelamento da verdade

No prólogo de O Nome da Rosa, Adso deixa implícito ao leitor qual será o mote a percorrer toda a obra: a verdade e como seus signos podem ser, muitas vezes, indecifráveis. Esse prólogo deixa claro qual era o destino de todo monge, ou seja, nunca questionar a verdade, que era única e imutável e que estava fundamentada na frase de abertura (intertextualidade com o Evangelho segundo São João): “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus”. Será a busca por uma noção mais ampla da verdade que conduzirá vários monges à morte e Adso e seu mestre ao perigo.

No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode comprovar a incontrovertível verdade. Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai, quão ilegíveis) no erro do mundo, (...) (ECO, 1986, p.21)

Concebendo a narrativa de Adso como recamada de elementos de um romance de formação, pode-se notar que ele conta, na verdade, aquilo que foi sua grande descoberta pessoal, mas que, a seu ver, serve de aprendizado irretorquível à coletividade:

Chegando ao fim desta minha vida de pecador, enquanto encanecido, envelheço com o mundo, à espera de perder-me no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta (...) já entrevado com meu corpo pesado e doente nesta cela do caro mosteiro de Melk, apresto-me a deixar sobre este pergaminho o testemunho dos eventos miríficos e formidáveis a que na juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem me aventurar a tirar disso um desenho, como a deixar aos que virão (se o Anticristo não os preceder) signos de signos, para que sobre eles se exercite a prece da decifração. (ECO, 1986, p.21)

Adso, já à beira da morte, escreve suas memórias, numa espécie de reconstrução autobiográfica e histórica. Ele escreve totalmente enclausurado, ou seja, livre para refletir e

rememorar os acontecimentos. É interessante notar também que Adso, apesar do tempo em que vive (século XIV), já tem uma consciência histórica admirável, pois põe como centro de sua escritura a vontade de deixar à posteridade os eventos por ele testemunhados.

Adso lança, ainda, sobre a narrativa, a força atrativa do real, da fidelidade aos acontecimentos, fazendo com que o leitor tome como verdadeira sua história pessoal. O leitor é conduzido por essa aparente imagem de veracidade sem notar que o próprio Adso está a se esforçar para reconstruir os fatos, pois eles eram confusos e a idade em que ele escreve a narrativa também não permite mais a reconstrução tão exata assim de acontecimentos tão distantes. Ao remontar os fatos, Adso forma também o leitor, a partir de sua experiência:

Quem sabe, para compreender melhor os acontecimentos em que me achei envolvido, é bom que eu recorde o que andava acontecendo naquele pedaço de século, do modo como o compreendi então, vivendo-o, e do modo como o rememoro agora, enriquecido de outras narrativas que ouvi depois – se é que a minha memória estará em condições de reatar os fios de tantos e tão confusos eventos. (ECO, 1986, p.22)

Adso ainda informa que os acontecimentos narrados não são apenas fruto de suas rememorações, mas também uma espécie de seleção de várias histórias lidas e ouvidas durante os acontecimentos narrados e depois deles terem acontecido. Isso é extremamente importante, pois vem demonstrar que nunca há um sujeito empírico em um texto, mesmo quando ele afirma estar relatando sua história real. Adso, a partir do momento em que escreve, torna-se um ente lingüístico, um ser ficcional construindo uma auto-imagem e projetando essa auto-imagem ao leitor.

Esses trechos aqui arrolados demonstram que o primeiro princípio aprendido por Adso, em sua formação, certamente foi o da verdade. Adso confronta-se, do início da narrativa até o fim, com a reconstrução de acontecimentos, em sua essência. Decifrar, por meio de “signos ilegíveis”, os rastros da verdade, mesmo que ela se reconstrua por meio de fios confusos e emaranhados – essa é a única alternativa de Adso e do leitor.

Eu não sabia então o que o frei Guilherme estava procurando, e para dizer a verdade não o sei ainda hoje, e presumo que nem ele mesmo soubesse, movido que estava pelo desejo único da verdade, e pela suspeita - que sempre o vi alimentar – de que a verdade não fosse a que aparecia no momento presente. (ECO, 1986, p.24)

O aprendizado de Adso é claro: a verdade nem sempre é a que aparenta e um dos maiores erros de quem procura a verdade é o de procurá-la para julgar-se dono exclusivo dela. É por isso que, ao contar os acontecimentos históricos, Adso acaba amalgamando isso a sua história pessoal. Adso, de origem nobre, é retirado de sua vida contemplativa em Melk (vivida em ócio). Dessa forma, vê-se que o aprendizado de Adso é motivado e não fruto espontâneo de sua vontade. Entretanto, são os sete dias dessa experiência que lhe revelam mais sobre a vida do que os anos posteriormente vividos. O parágrafo a seguir evidencia como Adso realiza o amálgama entre história pessoal e coletiva, deixando clara a sua finalidade histórica de legar ao futuro exemplos das atitudes errôneas dos homens de seu tempo:

Eis como era a situação quando eu – então noviço beneditino no mosteiro de Melk – fui tirado da tranqüilidade do claustro por meu pai, que se batia no séquito de Ludovico, não o último dentre seus barões, e que achou de bom alvitre levar-me consigo para conhecer as maravilhas da Itália e estivesse presente quando o imperador fosse coroado em Roma. Mas o sítio a Pisa absorveu-o nas lides militares. Eu tirei vantagem disso vagando, um pouco por ócio e um pouco por desejo de aprender, pelas cidades da Toscana, mas essa vida livre e sem regra não convinha, pensaram meus genitores, a um adolescente voltado à vida contemplativa. E a conselho de Marsílio, que começara a ter afeição por mim, decidiram pôr-me junto de um sábio franciscano, frei Guilherme de Baskerville, que estava para começar uma missão que o levaria a cidades famosas e abadias antiqüíssimas. Tornei-me assim seu escrivão e discípulo ao mesmo tempo, nem tive do que me arrepender, porque fui com ele testemunha de acontecimentos dignos de serem consignados, como estou fazendo agora, para memória daqueles que virão. (ECO, 1986, p.24)