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Hegel e a espiritualização da mímesis

Capítulo IX – Onde se conta o que nele se verá

5.3. Hegel e a espiritualização da mímesis

Prosseguindo com o escopo de problematizar a mímesis, notou-se a necessidade de verificar a abordagem teórico-filosófica de Georg Wilhelm Friedrich Hegel sobre o assunto, devido ao trabalho dedicado a ele no livro Estética – A Idéia e o Ideal. Devido à necessidade de delimitação do corpus, analisou-se apenas um breve trecho do fim do capítulo I, identificado como “2ª Seção – As Idéias Correntes Sobre a Natureza da Arte”. Neste breve trecho, mas de amplo cabedal reflexivo, percebe-se, logo de imediato, a postura contrária de Hegel ao conceito de mímesis. De maneira veemente, Hegel declara que a busca pela imitação da natureza na arte é uma valorização do culto à forma em detrimento do conteúdo e divide, em seguida, a discussão entre as relações de forma e conteúdo, conduzindo-a, logo após, à polêmica discussão sobre o útil e o inútil na arte.

A postura contrária de Hegel à imitação da natureza não constitui, em si, uma negação do conceito de mímesis. Antes expressa, quase que de maneira indignada, a interpretação equivocada e reducionista que foi feita do conceito. Hegel vê que o artista deixa de fazer arte para servir à imitação, criando algo artificial e não espontâneo. “Ao pronunciar-nos deste modo contra a imitação da natureza, queremos, em suma, dizer apenas que o natural não deve ser a regra, a lei suprema da representação artística.” (HEGEL, 2005, p.47)

Segundo o filósofo, a arte passa a ser valorizada e produzida unicamente segundo aspectos formais muito delimitadores, pautados na cópia da natureza. Nota-se, assim, que Hegel crê na potencialidade do valor do conteúdo para a obra literária e usa o termo “espiritualidade” para elucidar a presença desse conteúdo. Uma obra deve possuir espiritualidade, ou seja, uma forma de conhecimento de ordem moral e transcendente e não se preocupar apenas com o natural, com a imitação.

Considerando a imitação como finalidade da arte, o belo objetivo desaparece. Porque se não tratará então de saber como é aquilo que vai ser imitado, mas sim o que será preciso fazer, como se procederá, para obter uma imitação tão perfeita quanto possível. O objeto e o conteúdo do belo tornam-se indiferentes. E se, apesar de tudo, ainda se continuar a falar, a propósito dos homens, dos animais, das paisagens, das ações, dos caracteres etc., nas diferenças da beleza e da fealdade, estas diferenças não podem de modo algum interessar a uma arte reduzida ao mero trabalho de imitação. (HEGEL, 2005, p.48)

Para Hegel, o fim da obra de arte seria a reflexão. Sua função seria a de despertar

Despertar a alma: este é, dizem-nos, o fim último da arte, o efeito que ela pretende provocar. (...) verificamos que o conteúdo da arte compreende todo o conteúdo da alma e do espírito, que o fim dela consiste em revelar à alma tudo o que a alma contém de essencial, de grande, de sublime, de respeitável e de verdadeiro. (HEGEL, 2005, p.49)

A arte, então, passa a ter uma função moralizadora responsável pela purificação do homem. Dessa maneira, ela contribuiria com o projeto hegeliano de homem total, liberando o homem de seus instintos e paixões. A mímesis seria o agente responsável pela representação da natureza, não como mera cópia, mas como agente sensibilizador da consciência do leitor ou espectador. Ela completa a experiência que o ser humano possui da vida. Ao ver representados instintos e paixões, com os quais nunca entrou em contato, o espectador ou leitor passa por uma espécie de “reconhecimento” por meio dos sentidos. Ele experiencia não o real, mas aquilo que poderia ser o real. Percebe-se que Hegel, sem ter utilizado a mesma terminologia, tem uma concepção de mímesis muito próxima da que viria a ser posteriormente formulada por Antoine Compagnon: a de que a mímesis é um elemento dinâmico e responsável por reconhecimentos e, portanto, por um conhecimento de mundo diverso do empírico. A mímesis, então, é um veículo de conhecimento e de extrema importância para o bem estar social. Ela conduz o homem a vencer suas paixões e os povos à instrução. Ela é, de certa forma, um elemento incentivador da prática da virtude. “Precisa a arte conter algo de tão elevado que subordine tendências e paixões, precisa irradiar uma ação moral que encoraje o espírito e alma na luta contra as paixões” (HEGEL, 2005, p. 53)

O filósofo busca ainda não destituir a arte da forma, mas precisar-lhe um conteúdo. E, ao contrário do que se fazia, ele enfatiza a necessidade de se subordinar a forma ao conteúdo. Isso evidencia, pois, que Hegel não destitui da arte sua expressão, antes passa a determinar e a justificar a presença da forma artística dependendo do conteúdo a que se objetiva.

A religião, os costumes, a moral constituem já objetos existentes em si, e quanto mais a arte contribuir para favorecer as aspirações religiosas e as tendências morais e para suavizar os costumes, tanto mais elevado será o fim atingido. São absolutos estes critérios, e pretender conformar com eles a criação das formas artísticas corresponde a determinar um conteúdo preciso à arte. Como expressão deste conteúdo, a arte tem servido para instruir os povos. (HEGEL, 2005, p.53)

Hegel prossegue em suas argumentações e também acaba por retirar da arte a noção de mero entretenimento: “Dizer que a missão da arte é agradar, ser origem de prazer,

corresponde a determinar um fim puramente acidental que não podia ser o da arte” (HEGEL, 2005, p.53).

Como pôde ser visto nas elucidações acima, o encaminhamento da problematização acerca do conceito da mímesis começa a se delinear. Conhecer melhor a mímesis é, por extensão, deparar-se com uma noção mais exata do que seja a arte sem pretensão de oferecer um parecer definitivo sobre o assunto. Além disso, conhecer melhor a mímesis é buscar também, reflexivamente, debater questões fundamentais para o entendimento global do que seja, mais precisamente, a literatura.