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formalização material e produção dos sentidos

3.2 da dispersão à produção da unidade

Para quem produz materiais didáticos (e outros tipos de objetos editoriais) pode parecer óbvio, mas não o é para aqueles que recebem o livro, a apostila, o e-book “prontos”, ou mesmo uma sequência didática avulsa impressa ou em formato PDF: a unidade estabilizada numa dada formalização material é o resultado de uma seleção de elementos antes dispersos, feita a partir da abordagem de ensino adotada e do público-alvo a que ela se destina, e de operações de descarte diversas feitas a partir de uma antecipação de sua recepção ou, como é muito comum no caso de materiais didáticos, a partir da recepção constatada em sala de aula durante o período de “testes”.

A importância dessa unidade para o ensino é verificável, por exemplo, no primeiro critério levantado por Tomlinson e Masuhara (2005, p. 45) na seção “Seleção de textos” do capítulo “Aspectos Particulares do Desenvolvimento de Materiais”:

Evidentemente, os critérios para a seleção de textos dependem de sua finalidade. A seguir, são apresentadas algumas sugestões de utilização de textos e nossos critérios para sua seleção. 1. Como base para uma unidade em um conjunto de materiais (TOMLINSON; MASUHARA, 2005, p. 45, negrito nosso).

167 A esse respeito, Almeida Filho (2013a, p. 15) afirma que “Materiais exaustivos, completos, cuidadosamente

sequenciados e resolvidos para os professores não mais correspondem ao ideal profissional contemporâneo de ensino de idiomas na minha percepção acompanhando de perto a visão do linguista aplicado indiano [Prabhu], a não ser no caso de sistemas franqueados ou em escolas com método fixo nas quais os livros didáticos são ilusoriamente feitos à prova dos professores e alunos. O horizonte que mantenho para materiais de ensino de línguas é o de materiais-fonte incompletos como se fossem planos incompletos aguardando uma finalização de professores e suas turmas nos contextos reais em que estiverem imersos”.

168 Discussões recentes no projeto de extensão de ensino de português para estrangeiros da UFSCar também têm

tratado dessa questão. A produção dos materiais (sob variadas formas – handouts, unidades de ensino, apostilas) é considerada uma etapa formativa dos graduandos e pós-graduandos que trabalham como professores enquanto cursam disciplinas específicas de EALE, e cada um é responsável pela formalização material do curso que ministra. No entanto, embora muito interessante do ponto de vista da formação, essa “instabilidade” pode ser interpretada por alguns alunos como uma “baixa profissionalização” dos cursos de PLE.

Por isso, do ponto de vista de sua recepção, os objetos editoriais são um exemplo modelar do esquecimento produzido pela estabilização dos enunciados – principalmente no caso de materiais impressos: a não ser que haja um erro (de digitação, de diagramação, de impressão...) que nos remeta ao processo de sua produção (cf. MUNIZ JR., 2018), nos

esquecemos que outras possibilidades de seleção de textos, de dados, de organização estavam

dadas no momento de sua elaboração. Temos a impressão de que “[...] aquilo que é dito só poderia ser dito daquela maneira” (ORLANDI, 2013, p. 65), efeito de sentido produzido por um trabalho coletivo de fechamento.

No campo dos didáticos, especialmente de ensino de língua estrangeira, a fase de implementação é um dos momentos mais importantes de sua produção, em que outros intervêm no texto dos autores de acordo com demandas, dificuldades e sugestões decorrentes do uso de uma versão do material pelos seus interlocutores diretos: professores e alunos. No caso de editoras que produzem materiais destinados à circulação pública, mas não trabalham diretamente com o ensino – e, portanto, não tem como “testar” o material – é de praxe, por exemplo, a contratação de pessoas da área para a realização de leituras técnicas do projeto e, posteriormente, da obra em processo de produção, com a finalidade de realizar eventuais adequações durante o processo editorial. Posteriormente, são solicitadas leituras críticas (por professores e/ou alunos) para a avaliação dos originais, de modo a viabilizar ajustes necessários antes da publicação.

Um caso bastante explicativo da relação entre os processos de produção, de implementação e de “fechamento” foi narrado pela coordenadora do CCBA. Com a fundação do Centro em 2013, segundo a coordenadora pedagógica, todos os professores (eram 14) fizeram cursos de capacitação pedagógica para dar início ao processo de produção de um material próprio para uso local. Como a equipe era composta de muitas pessoas, e como as opiniões sobre o que entraria e o que ficaria de fora do método divergiam, dificultando a produção de consensos, após seis meses de trabalho decidiu-se pelo estabelecimento de somente três responsáveis pela produção e pela revisão do material (a coordenadora pedagógica e mais duas professoras, que sairiam como autoras); os demais professores trabalhariam com os testes de implementação em sala de aula.

ENTREVISTADORA: E como vocês selecionaram esses textos, essas músicas? COORDENADORA: Primeiro, todos os professores começaram a trabalhar no

primeiro livro com a seleção do material com o apoio da nossa assessora pedagógica, essa professora de Metodologia da UBA. A gente começou a selecionar o material, os catorze professores que dão aula no Centro.

ENTREVISTADORA: E aí os catorze se envolveram na produção?

COORDENADORA: [...] No começo, sim, se envolveram na busca, na pesquisa, todos fizeram capacitação – duas capacitações, dois anos de capacitação [...]. A primeira etapa foi questão de conhecer os sites, as licenças livres, o que a gente podia usar ou não podia usar, e as opiniões para essas sugestões de tarefas, de coisas para o material, para o que estávamos encontrando. E nisso foram uns seis meses de trabalho, e a gente percebeu que não estava funcionando muito bem escolhendo com muitas mãos. Para a linha que a gente estava querendo, não estava tão... assim, com tanto critério, tão coerente como a gente queria, né... estava muito: uma pensava uma coisa, outro pensava outra e estava difícil unificar critérios de produção e seleção de material. Então, fizemos uma reunião com o Diretor e ele perguntou: “Quem vai trabalhar na produção?”, e ficamos com duas professoras que decidiram continuar trabalhando comigo, e falei, “Bom, então vamos ficar nós três na produção, revisão, e a outra parte da equipe vai trabalhar na implementação, nos dando feedback de como está funcionando a proposta na sala de aula etc.”. E aí todos se envolveram na etapa de implementação e de análise. A gente fez um livro de atas, separamos [os professores em] dois grupos e uma vez por semana eles se encontram, um grupo de manhã e um grupo à tarde [...]. São grupos de análise da implementação, em que contam o que estão implementando, o que não funcionou, o que não gostou, o que gostou, o que foi difícil, o que não foi difícil... A gente agora está trabalhando com essas atas que eles estão colocando aí, e está funcionando assim (Fragmento de entrevista – Neucilene Teixeira, CCBA, 2017).

Durante esse processo, entre várias alterações propostas, a coordenadora mencionou o caso da música “Samba do Trabalhador” (cantada por Martinho da Vila, com composição de Darcy da Mangueira, de 2003), inicialmente selecionada para compor uma atividade e, depois de alguns testes, substituída por outra:

COORDENADORA: [...] Por exemplo, essa música saiu porque ela criou uma polêmica [...] a gente tirou ela porque a implementação não funcionou muito bem...

ENTREVISTADORA: ...não foi problema com direito autoral.

COORDENADORA: Não, essa música o que aconteceu foi que os professores, alguns, argumentaram que ela era complicada pra trabalhar na sala de aula – tem a questão da abordagem... – que era uma música que fixava estereótipo de que o brasileiro não trabalha, etc. e tal... Por mais que a gente tenha conversado e falado que depende também de que tipo de trabalho se faz... Então, pra controlar um pouco as variáveis, a gente decidiu colocar um outro input que tem a ver com o mesmo tema e tudo, porque aqui a questão era mostrar a estrutura, que era o infinitivo, o futuro imediato, essas coisas... Então a gente decidiu tirar assim pra não criar assim tanto [problema]... Porque para colocar e não usar não tem sentido (Fragmento de entrevista – Neucilene Teixeira, CCBA, 2017).

Este caso evidencia a importância que outros professores e os próprios alunos têm na forma final do MD, contribuindo em decisões a serem tomadas pela coordenação e pelas professoras-autoras por meio da partilha de suas percepções. Nos trabalhos coletivos de

produção de MD, esses sujeitos adjuvantes (DISCINI, 2016, p. 365), mesmo não atuando necessariamente na textualização em si,169 apontam problemas e caminhos que produzem

diferentes cercos de sentido a partir do que se decide ou não disponibilizar em uma próxima versão que se pretende final.

Na continuação da entrevista, a coordenadora pedagógica do CCBA descreve negociações (de ordens diversas) que esse processo envolve e justifica a estabilização desejada, que se quer como “final”:

COORDENADORA: [...] estamos tomando de maneira mais filosófica, assim, como um eixo do nosso trabalho. O eixo é o livro, o humano é o manual, depois, cada um enriquece como quiser. Mas nós queremos que o eixo seja este, porque material assim, todo [foto]copiado, a questão é que você pode modificar: “Ai, meus amigos, não estou de acordo aqui, vamos mudar?” – os professores gostam de fazer isso, né? É aquela questão, vamos ter que mudar, então você tem que mudar, ir lá, corrigir e imprimir outra vez... então, nós queremos cortar isso, porque toma muito tempo, temos muitos alunos... E esse tipo de trabalho é estressante do ponto de vista não só pedagógico, mas administrativo também: todos os semestres eu tenho 10 mudanças pra fazer no material porque 10 pessoas acham que não está bem, e há discrepância. O que eu faço? “Vocês querem ou não querem?” Então vai ter um livro, que vai ser um eixo pra nós, para organizar todo o trabalho. O nosso eixo da instituição é esse, então, a gente precisa de ter esse eixo assim organizador do trabalho, pelo menos desse Básico, que será esse manual. A ideia também é essa, né? Nossa grande meta (Fragmento de entrevista – Neucilene Teixeira, CCBA, 2017, negritos nossos).

Como se vê, o uso de materiais flexíveis implica disponibilidade de tempo não só para alterações pontuais num arquivo editável, mas também negociações de ordens variadas, relacionadas a aspectos materiais e simbólicos, tornando-se inviável em instituições com grande número de professores e alunos. A estabilização desses materiais como produtos editoriais institucionalmente avalizados é, portanto, entendida como uma necessidade central para o funcionamento dos cursos, estabelecendo unidades que, organizadas linearmente de acordo com níveis de proficiência, funcionam como base de trabalho para todos os professores – o que não impede que intervenções e complementações locais sejam produzidas.

169 Como prevê, por exemplo, a prática profissional de preparadores, revisores e editores e, no caso das coleções

que analisamos, também das coordenações, que desempenham a função de coenunciadoras editoriais ao trabalhar sobre o texto e propor manobras linguísticas de diversas ordens (cf. SALGADOb, 2016).