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formalização material e produção dos sentidos

3.3 o uso de materiais complementares como extensões dos MDs

A coleta e a seleção de textos de circulação pública (propagandas, colunas de jornais, textos de revistas, e-mails, formulários etc.) para uso em sala de aula, que sempre compuseram uma prática comum para o desenvolvimento de atividades complementares de ensino de língua estrangeira, passam, contemporaneamente, a ser cada vez mais produzidas e organizadas digitalmente, de modo que gêneros diversos, que circulam em diferentes suportes de inscrição, são transmidiados em arquivos de editores de texto, de apresentações de slides ou sob a forma de impressões, a partir de uma organização produzida em softwares de edição (seriam os

mesmos gêneros?...).

Como mencionamos no CAPÍTULO 1, nos materiais didáticos de circulação institucional as remissões a materiais complementares são feitas, por vezes, sem explicitação de sua fonte, o que indicia uma circulação institucional local realizada por outros dispositivos de armazenamento, em plataformas de acesso restrito ou em máquinas institucionais. O compartilhamento de arquivos (textos, músicas, vídeos, poemas etc.) entre professores é uma prática comum em centros de ensino e mostra que, de fato, os usos feitos dos materiais podem ir além dos “conteúdos” nele veiculados e da linearidade que ele materializa, como aponta o próprio coordenador do CUI:

COORDENADOR: Então quer dizer, a gente vai equilibrando, vídeo e áudio, e não a escrita; escrita e áudio, né?... Mas, as propostas estão aí. Lectoescrita; vocabulário; exercitação gramatical; aí aparece a produção escrita, né? Compreensão de visual; e compreensão auditiva. A gente foi intercalando. E, assim, nós vamos avançando. Essa proposta está em todos os livros, esse foi o desenho que a gente teve, agora, fora disso, a gente tem outra vez, 50 quilos de material complementar (Fragmento de entrevista – Carlos Pereira da Silva, CUI, 2017, negrito nosso).

O CCBA, por exemplo, complementa o uso das apostilas com a plataforma educativa

Edmodo,170 onde cada professor forma grupos de alunos e cria salas nas quais posta as tarefas a serem realizadas:

170 Plataforma que disponibiliza versões gratuita e premium, fundada em 2008 em Chicago, Illinois, e que hoje

conta com 80.539.116 usuários, segundo informações disponibilizadas no site oficial. Permite a interação entre alunos e professores por meio da criação de “Grupos” e conta com ferramentas diversas, tais como criação de eventos, envio de tarefas, dentre outras. Disponível em: https://www.edmodo.com/about. Acesso em: 10 ago. 2017).

COORDENADORA: A gente tem uma plataforma, estamos usando o Edmodo. Essa plataforma você deve conhecer, é uma plataforma educativa. Os alunos publicam aí os vídeos, e as tarefas, as professoras acessam a plataforma e daí já podem trabalhar na avaliação de cada produção, porque cada professor tem uma sala e manda para eles o link convidando, para eles formarem um grupo (Fragmento de entrevista – Neucilene Teixeira, CCBA, 2017, negritos nossos).

Além da flexibilização do ensino conforme demandas produzidas em sua utilização, o uso de materiais complementares – que podem ou não ser indicados nos MDs e ter ou não as

fontes explicitadas – pode ser, também, uma estratégia para burlar as muitas restrições de uso

impostas pelas leis de direito autoral, que exigem autorização de uso do autor e pagamento de direitos patrimoniais, mesmo em produções realizadas para uso didático e sem fins lucrativos. Ainda assim, é uma prática comum que “conteúdos” diversos (textos literários, músicas, notícias, charges etc.) sejam recenografados em MDs, principalmente nos de circulação mais restrita (o que não quer dizer que não seja uma prática comum também em instituições que trabalham com materiais de circulação pública), com ou sem indicação de sua autoria e sem medidas jurídicas estipuladas em lei,171 que certamente inviabilizariam sua produção –

especialmente em casos de materiais que priorizam insumos autênticos.

Em trecho da entrevista realizada com as coordenadoras pedagógicas do Laboratorio de

Idiomas da UBA, fala-se, assim, de textos mais e menos cuidados, conforme a esfera de

circulação prevista para os materiais:

COORDENADORA 2: O nível 1 foi o que demorou mais. COORDENADORA 1: Sim.

COORDENADORA 2: Porque como era pra ser publicado, tivemos muito cuidado, com os textos, como você comentou, com os direitos autorais, com as gravações... As gravações são próprias, os diálogos inventados por nós. Depois, como não sabíamos se o nível 2 e o nível 3 iam ser publicados, já lá tem textos...

COORDENADORA 1: ...não tão cuidados.

COORDENADORA 2: São cuidados, mas não tanto como o nível 1, que já era pra ser realmente publicado igual um livro – e que foi publicado como livro, não tão conforme com a qualidade, mas... é um livro (Fragmento de entrevista – Márcia Braun e Angélica Rosa de Matos, Laboratorio de Idiomas da UBA, 2017).

171 Embora seja uma prática comum na área de ensino de línguas, principalmente no caso de materiais de circulação

restrita, seguindo-se estritamente as leis de direitos autorais, qualquer texto, música, vídeo e qualquer outra obra de terceiros reproduzidos integral ou parcialmente (há regras mais ou menos claras sobre qual seria a medida não passível de punição), mesmo que sem fins lucrativos, deve não só explicitar sua autoria (que concerne ao aspecto moral dos direitos do autor), mas também contar com autorização expressa dos detentores dos direitos patrimoniais da obra, sob risco de processo, confisco e pagamento de direitos de uso.

Devido a essa possibilidade de extensão dos materiais por meio de outros aparelhos e plataformas associados às práticas institucionais (notebooks, caixinhas de som, projetores,

pendrives, plataformas on-line...), as consignas das atividades podem, por vezes, referir-se a

materiais sem indicação precisa de sua fonte, como se vê nos exemplos expostos a seguir.

figura 44 “Vamos escutar um áudio?”: atividade com uso de material complementar sem indicação de fonte (material da coleção CM!, Nível 5, Unidade 2).

fonte: Laboratorio de Idiomas (s/d, p. 33).

figura 45 indicação de vídeo sem referência precisa para realização de atividade (material do CCBA, Básico I).

Nessas atividades, os materiais servem como input linguístico-cultural para atividades de compreensão auditiva e de produção escrita (no caso da segunda). Outra estratégia encontrada nos materiais é a indicação de links externos associados à explicitação da realização de edições (“vídeo editado”, “texto adaptado”), como apresentamos a seguir.

figura 46 indicação de vídeo editado para realização de atividade (material do CCBA, Básico II).

fonte: CCBA (2017a, p. 32).

No exemplo anterior, o hiperlink transcrito no material (que perde sua função de atalho, uma vez que os alunos imprimem ou fotocopiam as apostilas) indica como fonte do vídeo um endereço do YouTube, plataforma de compartilhamento de vídeos que abriga perfis os mais diversos (de sujeitos empíricos a páginas institucionais). Assim como nos casos anteriores, qualquer informação adicional sobre esses materiais só é disponibilizada, portanto, por meio da exibição do vídeo feita pelo professor ou por uma eventual busca manual do aluno.

A disponibilização de links extensos por meio de sua transcrição em materiais destinados à impressão, tem sido, aliás, tema de discussão no âmbito da produção de didáticos de circulação pública em grandes editoras. Profissionais que atuam no campo têm insistido na importância da criação de novas formas de “interação” com os MDs – já que os alunos não dispõem, evidentemente, de um dedo digital172 para acessar o link no impresso.

O dado mostrado a seguir é uma nota de rodapé disponibilizada abaixo de um texto, intitulado “Coisas que eu fazia quando criança”, reproduzido com lacunas a serem preenchidas pelo estudante com “artigos, preposições ou contrações”, e é ilustrativo desse descompasso entre tecnologias desenvolvidas para práticas digitais e sua transposição (potencialmente ineficaz) em impressos:

172 Expressão utilizada por Julio Ibrahim, gerente editorial da FTD Educação, ao referir-se ao uso de links extensos

em fontes bibliográficas ou indicações de materiais complementares em MDs impressos durante o Curso “Livros didáticos: produção editorial, mercado e perspectivas”, oferecido pelo LabPub na modalidade de Educação a Distância e realizado em julho de 2019.

figura 47 transcrição de link extenso em material destinado à impressão (material do CCBA, Nível Básico 1, Unidade 2: “Vou te contar...”).

fonte: CCBA (2018, p. 38).

Nesse sentido, a estratégia de disponibilização de materiais complementares mais interessante encontrada para suscitar o interesse do aluno e viabilizar uma interação entre diferentes mídiuns (MDs e smartphones) foi a disponibilização de QR Codes – sigla para “Quick Response Code”, um sistema de codificação 2D decifrável por meio de seu escaneamento com aplicativos específicos.

A apostila de nível 4 do Laboratorio de Idiomas lança mão desse recurso de forma padronizada ao longo de todo o volume. No exemplo reproduzido a seguir, após a leitura de um texto intitulado “Em luta pela floresta quase perdida”, de autoria de Ayana Trad, com data de publicação indicada e link de acesso transcrito com indicação de adaptação textual, propõe-se uma atividade de interpretação textual do tipo Verdadeiro ou Falso e, logo abaixo, são indicadas duas possibilidades de “extensão” do tema.

figura 48 disponibilização de códigos QR para acesso a materiais complementares (apostila da coleção CM!, Nível 4, Unidade 1, Seção “C” ).

Os livros didáticos de circulação pública, por sua vez, representados neste trabalho pela coleção BI, armazenam os materiais “externos” – do ponto de vista de sua formalização material –, intertextualmente relacionados aos LDs e necessários para a realização das atividades que eles propõem, em plataformas digitais ou suportes físicos (CDs ou DVDs, cada vez mais em desuso) que podem ser de acesso público ou restrito (caso em que a disponibilização de login é condicionada à compra do LD). A coleção BI disponibiliza áudios e vídeos relacionados aos livros em seu site oficial, em acesso público, com instruções para que usuários com pouco letramento digital possam baixá-los e descompactá-los.

figura 49 disponibilização de materiais complementares do Ciclo Intermediário no site oficial da coleção BI.

A produção de uma plataforma própria ou o envio de suportes físicos para a disponibilidade dos textos verbo-visuais em formato de vídeo ou áudio que servem como base para as atividades dos livros didáticos de circulação pública – cujo projeto editorial implica um investimento elevado e não é, portanto, passível de alterações que materiais didáticos impressos

de circulação institucional permitem – são vitais para que seu uso não dependa de outras

plataformas (como o YouTube, por exemplo) e seja eventualmente interrompido por sua indisponibilidade.

Isso aconteceu, por exemplo, com algumas unidades digitais do Portal do Professor de Português Língua Estrangeira (PPPLE), com consequências inexistentes em termos econômicos, mas significativas da perspectiva de sua circulação pública: a indisponibilidade de materiais indicados por hiperlinks para a realização de algumas atividades tornou-as inutilizáveis, uma vez que, por serem disponibilizadas em formato PDF, não permitem edições e atualizações pelos usuários das plataformas – apesar de serem disponibilizadas sob licença

Creative Commons.

A “Atividade de preparação” da unidade intitulada “Vamos pegar uma praia”, por exemplo, pede ao aluno que “Assista ao vídeo para responder às perguntas” disponibilizando, em seguida, um link do YouTube. O fato de o vídeo ter sido indisponibilizado e de não ter sido dada nenhuma informação a respeito de seus produtores ou do local original de publicação impossibilita a realização da atividade.

figura 50 atividade de preparação da unidade “Vamos pegar uma praia” (PPPLE, PFE, Nível 1).

Por fim, cabe uma última observação. Nos exemplos mostrados, a ausência de referências sobre instâncias responsáveis pela produção de textos verbais e multimodais variados reproduzidos e de informações sobre o mídium original de sua publicação (que apontariam o público a que se destina, a data de publicação, a conjuntura em que foram produzidos...) desvincula os textos de seu lugar de produção e modos de circulação previstos, o que incide diretamente na produção de sentidos. Para dar um exemplo recorrente, textos variados sobre políticas públicas do Estado brasileiro, usados como base para atividades, são reproduzidos sem indicação da época de publicação, apagamento que produz um efeito de atemporalidade.