• Nenhum resultado encontrado

formalização material e produção dos sentidos

3.4 forma é também conteúdo: materialidade e funcionalidade

3.4.3 tensões entre o impresso e o digital

Além de pontos indicados anteriormente, relacionados a imbricações entre práticas estabelecidas pela lógica do impresso e práticas digitais – como, por exemplo, a transcrição de

links extensos em materiais impressos, o uso de QR Codes para disponibilização de materiais

complementares on-line, a encenação de gêneros digitais em unidades digitais destinadas à impressão –, outra questão revelou-se interessante para a observação da tensão entre o impresso e o digital: a inauguração do PPPLE como plataforma colaborativa e seu uso efetivo constatado ao longo desta pesquisa.

O PPPLE pautava-se, em sua concepção, em práticas de criação coletiva e compartilhamento que iam ao encontro da proposta de Lemos (2005, p. 1), de uma cibercultura regida por três “leis” fundadoras: “[...] a liberação do polo da emissão, o princípio da conexão em rede e a reconfiguração de formatos midiáticos e práticas sociais”. Enquanto livros didáticos direcionados à venda – como é o caso da coleção BI, por exemplo – participam da lógica da cadeia produtiva editorial, com consequências em sua produção e no acesso ao material decorrentes da logística de distribuição adotada, do número de exemplares impressos, das negociações entre autores e editora etc.,178 o funcionamento proposto nessa plataforma digital permitiria, idealmente, a partilha de materiais entre professores, a adaptação de unidades, a proposição de percursos temáticos... Disso decorreria, possivelmente, uma flexibilização e uma maior abrangência do ensino, inclusive no que diz respeito à reprodução de textos multimodais diversos, já que, por não envolverem os processos de publicação pelos quais livros destinados à comercialização passam, as unidades poderiam fazer referência a conteúdos variados sem que isso acarretasse necessariamente o pagamento de direitos autorais a revistas e jornais, por exemplo – ainda que, em termos estritamente legais, fossem necessárias providências jurídicas para seu uso, como já pontuamos anteriormente.

Esse uso era previsto, por exemplo, no fato de o Portal incentivar a reelaboração das unidades didáticas e a criação de novos materiais, como se pode ler na aba “O Portal”:

178 Tomamos como exemplo a coleção Viva! Língua portuguesa para estrangeiros, de autoria de Claudio

Romanichen(Curitiba: Positivo, 2010). Embora fosse o segundo material mais recente lançado no Brasil dentre os indicados pela Sociedade Internacional de Português Língua Estrangeira (SIPLE) (cf. figura 32), já não é mais disponibilizado no site da editora Positivo e está esgotado nas livrarias brasileiras. No entanto, em julho de 2017 ainda parecia estar disponível em algumas lojas no exterior, como na Colômbia e no México. Naquele momento, pudemos encontrá-lo nos sites das lojas LibrosBrasil (Colômbia) e Bookshop (México), disponíveis, respectivamente, nos seguintes endereços: http://www.librosbrasil.com/products/_/material-didatico/ e https://www.bookshop.com.mx/site/llibros.jsp?isubarea_id=489. Últimos acessos em: 25 jul. 2017.

Todos os materiais disponibilizados no PPPLE estarão ao abrigo de uma licença Creative Commons (by-nc-sa).179 Esta licença permite que outros

remixem, adaptem e criem obras derivadas sobre a obra original, desde que com fins não comerciais, e obriga que atribuam crédito ao Portal e licenciem as novas criações sob os mesmos parâmetros. Toda nova obra feita a partir desta deverá utilizar a mesma categoria de licenciamento, de modo que qualquer obra derivada, por natureza, não poderá ser usada para fins comerciais.180

No entanto, acompanhando a movimentação da área dos professores ao longo da pesquisa, verificamos que a interação entre os membros do Portal não acontece, uma vez que não há nenhum upload de documentos por parte de usuários.

figura 60 propostas didáticas da área do professor do Portal. No destaque em vermelho, a ausência de novas propostas.

fonte: http://www.ppple.org/proposta/. Acesso (mediante login e senha) em: 27 out. 2019.

179 A especificação da licença entre parênteses, “by-nc-as”, significa “Atribuição Não-Comercial Compartilha

Igual”, ou seja, “esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam a você o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos”.

Com informações do site oficial da Creative Commons, disponível em:

https://creativecommons.org/licenses/?lang=pt_BR. Último acesso em: 31 out. 2019.

180 Também segundo a aba “O que é o Portal”, disponível em: http://www.ppple.org/o-portal. Último acesso em:

A seção em tela é destinada a “Propostas Didáticas (PD)” definidas como “unidades de trabalho sugeridas pelos usuários do Portal”, “de caráter mais livre” e independentes das UD propostas. Temos acompanhado seu desenvolvimento desde 2015, e até a presente data não houve nenhum upload de proposta registrado pelo Portal.

figura 61 roteiros didáticos, alocados na área do professor do PPPLE. No destaque em vermelho, a ausência de roteiros no Portal.

Fonte: http://www.ppple.org/roteiros/propostos. Acesso (mediante login e senha) em: 27 out. 2019.

O mesmo acontece com a seção “Roteiros Didáticos”, definidos a partir de “temas e áreas de interesse como modos de organização das Unidades Didáticas” que os usuários do PPPLE podem propor. Desde quando começamos a acompanhar as atividades do Portal, até o presente momento, nenhum roteiro foi disponibilizado.

Na captura de tela veiculada a seguir, realizada durante visita ao Portal em abril de 2016, o fórum criado para interação entre os professores – hoje inexistente – continha 19.518 páginas de tópicos diversos – até onde pudemos averiguar, spams postados por bots ou perfis fakes. Embora tenham sido registradas visualizações, não havia nenhuma resposta.

figura 62 página 1 do fórum do PPPLE em abril de 2016.

fonte: http://forum.ppple.org/viewforum.php?f=2. Último acesso (mediante login) em: 07 dez. 2017.

Nossa hipótese para essa falta de interação no fórum do Portal é a criação de uma comunidade “artificial”, cujos participantes não compartilham das práticas ali propostas; forjou-se um instrumento que não foi construído com os usuários, mas para eles, conforme imaginários de seus idealizadores.

Retomando (e reformulando) a definição de cibercultura de Lemos (2005) mencionada

no CAPÍTULO 1, parece elucidativo distinguir distintos modos de funcionamento das práticas

digitais, regidos por diferentes relações estabelecidas entre usuários e plataformas e na própria determinação produzida pela técnica algorítmica:

É possível falar mais precisamente – em vez de usar o plural culturas digitais – em cibercultura e cultura digital, considerando que a técnica de que se desdobram tecnologias características das atuais relações entre objetos e sujeitos assume dois efeitos distintos na produção da psicoesfera: uma de fechamento, outra de abertura (SALGADO, 2020, no prelo).

O fato de as unidades serem baixadas e usadas sem nenhuma interatividade posterior – como, por exemplo, o upload de novos materiais a partir de mudanças feitas, o compartilhamento de outros materiais etc., previstos na plataforma – indicia que as práticas configuradas em seu uso não operam na direção de apropriação da técnica para a produção de uma cultura digital – “ligada sobretudo aos aspectos de difusão” (SALGADO, 2020, no prelo); antes, parecem operar na lógica do consumo instaurada pelo impresso, cuja permanência é verificável, por exemplo, no fato de as unidades serem disponibilizadas em formato PDF, o que impede sua edição.

Impõe-se, assim, a questão levantada por Ribeiro (2018a):

Se as bases do trabalho com TICs [Tecnologias de Informação e Comunicação] na escola eram, justamente, as da cultura digital (compartilhar, colaborar, remixar, samplear, cortar-e-colar, fazer pastiche, recriar ou editar – no sentido mais amplo), as bases da produção do livro impresso são as da autoria individual e claramente atribuída, do direito patrimonial ao texto, do direito moral à criação de um autor identificável, da edição autorizada documentalmente, do crivo de um editor. [...] Como relatar atividades digitais em um mundo que opera na cultura do impresso? (RIBEIRO, 2018b, p. 24-25).

Essa ausência de partilha e de interação no fórum do PPPLE é um exemplo, portanto, da “viscosidade das práticas cotidianas” (DEBRAY, 1995, p. 28) – neste caso, a permanência de práticas já cristalizadas no consumo de materiais didáticos diversos. A esse respeito, é pertinente a reflexão do autor:

O erro dos futurólogos e a decepção dos futuristas provêm, normalmente, de uma superestimação dos efeitos do médium por subestimação das tramas lentas do meio. Em geral, a utilização é mais arcaica do que o utensílio. A explicação é evidente: por definição, se o médium é novo, o meio é velho.

Trata-se de uma estratificação de memórias e associações narrativas, um palimpsesto de gestos e lendas incessantemente reativáveis, o repertório em camadas sobrepostas dos suportes e símbolos de todas as épocas anteriores. Eu sou papiro, pergaminho, papel e tela de computador (DEBRAY, 1995, p. 28-29, negritos nossos).

Embora se possa lamentar do ponto de vista das possibilidades de interação não utilizadas, trata-se de dados interessantes para a pesquisa, já que atestam a importância das práticas e dos pertencimentos para a constituição das comunidades e a força simbólica de usos consagrados por materiais didáticos impressos tradicionais nos imaginários de alunos e professores.