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professores autores que (não) são diagramadores, designers e revisores

formalização material e produção dos sentidos

3.4 forma é também conteúdo: materialidade e funcionalidade

3.4.1 professores autores que (não) são diagramadores, designers e revisores

Uma característica dos ritos genéticos editoriais dos materiais didáticos que coletamos é o acúmulo das funções desempenhadas pelos professores autores. As entrevistas sobre o processo de produção dos materiais mostraram que é uma prática corrente, compulsória ou voluntária, que professores das instituições, quando instados à produção de materiais destinados à publicação por gráficas ou casas editoriais próprias, trabalhem tanto no campo de atuação do ensino de língua, ou seja, no planejamento das grades de conteúdo, na produção e seleção dos dados, por vezes com assessoria externa de pesquisadores da LA, quanto na diagramação, no design gráfico, na ilustração (por meio da seleção de imagens em bancos de dados abertos ou

de um uso menos controlado de conteúdos com copyright, no caso de materiais não destinados à venda), na preparação e na revisão dos originais para a publicação.

Como apontaram aspectos levantados por Oliveira e Furtoso (2009) e Diniz, Stradiotti e Scaramucci (2009), o projeto gráfico dos MDs, sejam eles de circulação institucional ou de

circulação pública, deve se adequar aos usos projetados e ao público a que se destina. No

entanto, dos materiais do córpus, apenas a coleção BI pôde contar com o desenvolvimento de um projeto profissionalizado – e, ainda assim, alguns problemas se impuseram.

Embora se destine a um público adulto, a coleção foi produzida com uma paleta cromática inadequada (com uma cor predominante para cada ciclo – cf. figura 5 no CAPÍTULO 1) e com uma quantidade grande de imagens – apontadas pelo coordenador como problemas observados posteriormente à publicação.

ENTREVISTADORA: E esse projeto gráfico, vocês deram as diretrizes do que vocês queriam pra ele, ou ele foi elaborando? Quais foram as diretrizes nesse projeto?

DIRETOR-EXECUTIVO: Nós confiamos muito na criatividade da Mara, no caso, que era desenhadora até agora, agora nós estamos observando algumas questões; por exemplo, a quantidade de cores muito fortes, principalmente no livro intermediário, o que termina sendo pouco claro, principalmente para ensinar uma língua. Cores muito fortes, não seria bom continuar fazendo desse jeito. Algumas imagens... Acho que ele está um pouco sobrecarregado de imagens, acho que não precisa tanto. O aluno agora, hoje em dia, e o professor, eles têm internet, tem possibilidade realmente de ampliar isso e... Mas.... Sim... Fomos trabalhando, fomos discutindo, fomos aceitando ou não as ideias da Mara [...] Mas sim, foi sempre um trabalho em equipe, mas confiando muito na mão da Mara, que já tinha desenhado outros livros (de fonética, principalmente, para outros, para um professor que também conhecemos, já trabalhou aqui, já vem com experiência) (Fragmento de entrevista – Fabricio Müller, Casa do Brasil, 2017, negritos nossos).

A “falta de clareza” apontada pelo diretor-executivo ilustra o problema que o design impõe à leitura quando “a forma da composição” (GRUSZYNSKI, 2010, s/p) relega o signo linguístico a um plano secundário ou o torna ilegível. Retomando metáfora recorrentemente retomada na área (“the crystal goblet” [“o cálice transparente”]), é comum a associação do design com qualificadores como transparente ou invisível. Nessa concepção, “[...] quando o design do livro se apresenta de forma adequada ao que se propõe, este passa despercebido ao leitor. Contudo, quando é ineficiente, torna-se fácil de detectar” (ROMANI, 2011, p. 27).

Mas para além de critérios de legibilidade, o projeto gráfico pode engendrar também uma cenografia inapropriada para o público a que se destina. São comuns ao longo da coleção BI, destinada, principalmente, a um público adulto de estudantes e profissionais liberais, o uso de imagens que apontam uma estética infantil – caracterizada por Kirchof e Silveira (2010), com base em “esquema infantil” proposto por Lorenz (1984 apud KIRCHOF; SILVEIRA, 2010), pelo uso de traços arredondados, cabeças e olhos grandes, “extremidades curtas e bem nutridas” (KIRCHOF; SILVEIRA, 2010, p. 73) – em oposição a representações adultas, que tendem a ter traços “mais longos e retilíneos” (p. 73) –, como se pode constatar na atividade reproduzida a seguir.

figura 51 exemplo de uso de estética infantil em material para adultos (coleção BI, Ciclo Básico).

A dificuldade de construir uma identidade adequada para os MDs não depende, portanto, exclusivamente da contratação de profissionais de diversas especializações, mas também do alinhamento de critérios a serem utilizados na sua produção. A partir da definição de seu público-alvo e de seus objetivos, podem ser estabelecidas, por exemplo, uma tipografia adequada, que garanta a legibilidade e a organização das unidades, dos tópicos e subtópicos; uma paleta de cores que produza uma identidade compatível com o público-alvo e contribua na organização estrutural do projeto; elementos fixos de organização “dos conteúdos”, de acordo com as grades institucionais (por exemplo, seções de atividades de produção oral, de tarefas comunicativas de produção escrita) etc.

Considerando as práticas didáticas e usos previstos do material, por exemplo, nas atividades de leitura de textos mais longos, um recurso comumente utilizado nos MDs é o espaçamento duplo entrelinhas – o que permite ao usuário anotar eventuais dúvidas de vocabulário nas linhas correspondentes – e a numeração das linhas ou dos parágrafos, que facilita a localização de passagens específicas, caso necessário.

figura 52 exemplo de espaçamento duplo e numeração de linhas (coleção BNC, Ciclo Básico, Nível 4).

Entretanto, no caso em tela, a numeração das linhas do texto ficou prejudicada pelo fato de a diagramação ter extrapolado a margem de segurança das provas enviadas à gráfica para impressão. O processo de corte, alinhamento e colagem das páginas fez com que essas numerações ficassem parcialmente cortadas nas bordas internas, muito rentes ao miolo ou muito próximas do corte nas bordas externas em diversos volumes da coleção.

Outro exemplo de estratégia interessante, adotado na apostila do Nível Básico 1 do CCBA (que, como mencionamos, havia sido reestruturada para publicação), é a disponibilização de atividades de produção textual a serem entregues para correção em folhas separadas das demais atividades, disponibilizando a grade a ser usada na correção – que remete intertextualmente a grades do Celpe-Bras – e indicação para corte, o que facilita a organização desse tipo de tarefa e padroniza as entregas feitas pelos estudantes.

figura 53 tarefa comunicativa escrita com marcação para corte (material do CCBA, Nível Básico 1).

fonte: CCBA (2018, p. 43).

Outro aspecto considerado importante é a necessidade de a apostila ter um formato compacto, portátil, “um livro amigável para trazer na mão ou na bolsa”, como frisou a coordenadora do CCBA.

COORDENADORA: nós estamos fazendo a suposição que a gente precisa que não seja tanto desperdício de espaço, né... Que fique um livro com menos desperdícios, para que não seja um livro tão pesado para levar, e que seja um livro amigável pra trazer na mão ou na bolsa, todo esse tipo de coisa. Ele vai ter umas 60, umas 70 páginas, com os exercícios e tudo, tudo incluído. Então a ideia é que não seja um livro pesado para levar e que seja uma coisa assim, até porque a pessoa que vai trabalhar leva o livro, vem pro curso – a gente tem aqui todo perfil de aluno (Fragmento de entrevista – Neucilene Teixeira, CCBA, 2017).

Muitos outros aspectos da formalização dos MDs também condicionam sua recepção e seu uso: a diagramação, a iconografia, a proporção dos elementos na página, eventuais (ou recorrentes) erros gramaticais, semânticos ou conceituais... Como dissemos anteriormente, os materiais de PLE não são regulados por nenhuma legislação específica, sendo produzidos de acordo com necessidades locais ou sob demanda de editoras para vendas a instituições particulares.

No mercado didático brasileiro contemporâneo, os editais de seleção de livros para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) são uma fonte de referência para a observação de exigências editoriais consideradas padrão, ainda que não abarquem a área de PLE. No edital do PNLD 2021, por exemplo, são “Critérios eliminatórios comuns”, segundo o Item 2.1,

3. Coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica; [...]

6. Observância às regras ortográficas e gramaticais da língua na qual a obra tenha sido escrita;

7. Adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico;

8. Qualidade do texto e a adequação temática (BRASIL, 2019, p. 40).

Além disso, o edital também exige, no Item 2.1.2, a “observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano” (p. 42), segundo os quais a obra deve:

a. Estar livre de estereótipos ou preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, religioso, de condição de deficiência, assim como de qualquer outra forma de discriminação, violência ou violação de direitos humanos. b. Estar livre de doutrinação religiosa, política ou ideológica, respeitando o caráter laico e autônomo do ensino público.

c. Promover positivamente a imagem de afrodescendentes considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social;

d. Promover positivamente a imagem da mulher considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder,

valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não-violência contra a mulher; e. Promover positivamente a cultura e a história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo, de forma recorrente ao longo da obra, valorizando seus valores, tradições, organizações, conhecimentos, formas de participação social e saberes;

f. Representar a diversidade cultural, social, histórica e econômica do país; g. Representar as diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais de povos e países;

h. Promover condutas voltadas para a sustentabilidade do planeta, para a cidadania e para o respeito às diferenças.

i. Estar isenta de publicidade, de marcas, produtos ou serviços comerciais, exceto quando enquadrar-se nos casos referidos no Parecer CEB no 15 de

04/07/2000 (BRASIL, 2019, p. 42).

Embora não tenhamos como desenvolver uma análise de cada um destes pontos no presente trabalho, podemos observar que, de modo geral, a iconografia utilizada nos MDs de PLE representa, majoritariamente, pessoas brancas de origem social privilegiada, e em poucos casos mostra mulheres em profissões e espaços de poder de modo naturalizado.