• Nenhum resultado encontrado

2. A INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

2.1 Evento, Fato e Fato Jurídico

2.1.2 Distinção entre evento, fato e fato jurídico

Ao ocorrer um determinado acontecimento natural, ele somente fará parte de um determinado sistema, seja jurídico ou social, ou até mesmo qualquer outro, quando for constituído por intermédio da linguagem própria do sistema a que faz parte. Ou seja, caso o acontecimento seja relatado pela linguagem social, logo, ele virá a caracterizar-se como um fato social, e, de modo diverso, caso o evento venha a ser relatado na linguagem jurídica, ensejará a caracterização de um fato jurídico.

Nesse sentido, é a lição de Fabiana Del Padre Tomé:

88 FERRAGUT, M. R. Presunções no Direito Tributário..., 2005. p. 53. Afirma, ainda, a autora: “E se é assim, a

realidade só passa a ter relevância no momento em que for vertida em linguagem; até então, pode-se dizer que o fato não existe, pois dele não se tem conhecimento (...)”. (Ibidem., p. 02)

O acontecimento natural, pertencente ao mundo da experiência, não integra o sistema jurídico ou sequer o social. Como já mencionado, as coisas só existem para o homem quando constituídas pela linguagem. Assim, qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressa apenas os enunciados compostos pela forma lingüística própria daquele sistema. Relatado o acontecimento em linguagem social, teremos fato social; este, vertido em linguagem jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. Os fatos da chamada realidade social, enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como eventos em relação ao mundo do direito.90

Partindo, então, da premissa de que os eventos somente são transmitidos por intermédio da linguagem, pois é ela que os constitui, quando vier a ocorrer um determinado fato no mundo natural, ele somente será considerado jurídico caso seja vertido em linguagem própria, ou seja, na linguagem jurídica.

Para Clarice von Oertzen De Araujo, “os sistemas jurídicos utilizam a linguagem

natural (língua vernáculo) como verdadeira substância de sua constituição. Para qualquer fenômeno ingressar dentro do sistema normativo ele deve estar expresso em algum tipo de linguagem”.91

Cabe destacarmos que sendo o fato jurídico constituído pela linguagem do Direito, é tal circunstância que o distingue dos demais fatos - social, econômico, político, entre outros. De outro modo, tudo o que não encontrar-se relatado na linguagem admitida pelo Direito, não será reconhecido por ele.

Mas o que é o fato jurídico?

Paulo de Barros Carvalho define fato jurídico como o “enunciado protocolar,

denotativo, posto na posição sintática de antecedente de uma norma individual e concreta, emitido, portanto, com função prescritiva, num determinado ponto do processo de positivação do direito”.92

90 TOMÉ, F. D. P. A prova no direito tributário..., 2005. pp. 32-33. 91 ARAUJO, C. v. O. Semiótica do Direito..., 2005. p. 19.

Assim, um fato tornar-se-á jurídico quando possuir o condão de irradiar efeitos jurídicos.93

Esse é o posicionamento do professor Paulo de Barros Carvalho, ao expor que “instaura-se o vínculo abstrato, que une as pessoas, exatamente no instante em que aparece a

linguagem competente que relata o evento descrito pelo legislador. Em um só tempo, constroem-se fato e relação jurídica, bem como ocorre incidência e aplicação no ordenamento posto”.94

Daí a conclusão de que para que um determinado acontecimento venha a ingressar no mundo da facticidade jurídica, faz-se necessário que seja convertido na linguagem própria do Direito. Tal como afirma André Felipe Saide Martins, “é por meio de linguagem competente

que a realidade jurídica se constitui”.95

Distinguimos, então, eventos como meros acontecimentos da realidade social, enquanto ainda não forem constituídos em linguagem jurídica própria, de fato jurídico, enquanto enunciados denotativos que encontram-se no antecedente da norma individual e concreta, já relatados em linguagem própria do Direito Positivo, com função prescritiva.

Nesse mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho atesta que determinado fato somente se dará juridicamente verificado e, por conseguinte, podendo ser considerado verdadeiro, quando ocorrer o relato do acontecimento em linguagem própria, nos ensinando que “para o

alcance da verdade jurídica, necessário se faz o abandono da linguagem ordinária e a

93 Cimentando tal assertiva, André Felipe Saide Martins exemplifica: “A comete homicídio contra B no deserto

do Sahara. Esse homicídio, per se, é um evento desprovido de qualquer juridicidade, ou seja, absolutamente desconhecido e inexistente para o direito. Mas, se for possível reportá-lo em linguagem própria, isto é, em linguagem aceita pelo direito, e descrevê-lo conforme as provas legalmente admitidas, esse simples fato passa a ser capaz de desencadear efeitos jurídicos e de converter-se em fato jurídico. Obviamente, no processo de juridicização, o fato deverá ser subsumido à norma penal correspondente prevendo que matar alguém seja crime. (...) é bem possível que o crime nem sequer tenha ocorrido. Mesmo assim, se as provas requeridas o indicarem, para o direito ele estará constituído, porque para o reconhecimento jurídico basta que a linguagem certifique o evento.” (MARTINS, A. F. S. A prova do fato jurídico tributário..., 2007. p. 16)

94 CARVALHO, P. de B. Curso de Direito Tributário..., 2009. pp. 281-282.

95 MARTINS, A. F. S. op. cit., p. 37. Nesse mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho ressalta que “O direito,

portanto, é linguagem própria compositiva de uma realidade jurídica”. (CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit.,

observância de uma forma especial. Impõe-se a utilização de um procedimento específico para a constituição do fato jurídico (...)”.96

Assim sendo, os fatos de uma realidade social que ainda não encontrarem-se constituídos por intermédio da linguagem jurídica própria, devem ser considerados como meros eventos em relação ao mundo do Direito. Um determinado fato do mundo social, ou evento, somente será considerado como fato jurídico quando for introduzido no Direito Positivo, sendo que, somente ao fato jurídico devem ser atribuídas as consequências previstas no ordenamento jurídico. Somente quando o fato for considerado jurídico, ele passará a integrar o universo jurídico, não sendo cabível ao fato social ingressar o universo jurídico.97

Leonardo Furtado Loubet e Charles William Mcnaughton abonam esse entendimento, afirmando:

Nesse passo é importante registrar que o fato jurídico, enquanto construção lingüística, não se confunde com a ocorrência fenomênica que lhe serve de fundamento. Uma coisa é o evento, a situação concreta ocorrida no mundo real, que se perde no tempo e no espaço – pois o real é irrepetível; coisa diversa é o enunciado lingüístico que relata esse evento. A ocorrência fática é o que capta pelos órgão sensoriais no domínio da experiência, ao passo que o fato jurídico é o revestimento lingüístico dessa circunstância fenomênica. Seguindo o léxico do movimento do Círculo de Viena, enunciado com a característica de colher um acontecimento real na sua coordenada espaço-temporal devidamente individualizada é denominado

enunciado protocolar – próprio dos fatos jurídicos. A distinção é salutar: enquanto o

enunciado das normas gerais e abstratas é composto por uma estrutura hipotética, conotativa, o enunciado das normas individuais e concretas é marcado pela concretude espaço-temporal, pela individualização, o que lhe confere tons de denotatividade.98

Cabe ressaltarmos que, mesmo que um fato não tenha efetivamente ocorrido, mas, caso seja possível demonstrá-lo legalmente, por intermédio de provas admitidas em direito, enquanto linguagem competente, ele encontrará-se juridicamente constituído. De modo

96 CARVALHO, P. de B. apud TOMÉ, F. D. P. A prova no direito tributário..., 2005. p. 25.

97 Diz ainda o ilustre professor Paulo de Barros Carvalho, “a respeito do fato que realmente sucede no quadro

do relacionamento social, dentro de específicas condições de espaço e de tempo, que podemos captar por meio de nossos órgãos sensoriais, e até dele participar fisicamente, preferimos denominar evento jurídico tributário, reservando a locução fato jurídico tributário para o relato linguístico desse acontecimento”. (CARVALHO, P.

de B. Curso de Direito Tributário..., 2009. pp. 278-279).

98 LOUBET, L. F.; MCNAUGHTON, C. W. ; SALOMÃO, M. V.(org.); PAULA JUNIOR, A. de (org.). A prova

contrário, caso tal demonstração legal não seja possível, logo, o evento não produzirá os efeitos jurídicos necessários, por mais inequívoco que seja o evento.

Por sua vez, Joana Lins e Silva adverte:

Sem a linguagem, que confere realidade aos eventos, um acontecimento não relatado não traz nenhuma consequência para o mundo. Caso haja o relato do evento por uma linguagem natural, poderá falar-se em fato social, revelando para o mundo as características daquele acontecimento. Mas, ainda assim, tal relato não trará nenhuma repercussão para o mundo jurídico. A linguagem natural não se mostra suficiente para fazer ingressar no mundo jurídico algum dado novo, nem muito menos para desencadear consequências jurídicas.99

Assim, distingue-se um mero fato simples, que se referem àqueles fatos cuja constatação não produz qualquer conseqüência relevante ao Direito, sendo fatos indiferentes ao Direito, dos fatos jurídicos, que se refere a um ato humano ou um acontecimento natural que se torna juridicamente relevante, por está apto a produzir efeitos ou consequências jurídicas.100

André Felipe Said Martins aponta a seguinte distinção:

Fatos simples são aqueles dos quais a constatação não produz nenhuma conseqüência relevante para o Direito, p. ex: o convite para um passeio, uma visita de cortesia, o uso de calça de certa cor etc.

(...)

Fato jurídico, assim definido, compreende o ato humano ou o acontecimento natural juridicamente relevante. Essa relevância jurídica, no alvitre de Carlos

99 SILVA, Joana Lins e. Fundamentos da norma tributária. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 56.

100 André Felipe Saide Martins exemplifica: “Tomemos como exemplo um acontecimento recente – o

desabamento na linha IV, do metro de São Paulo. Se for possível demonstrar, consoante as provas juridicamente aceitas, que o desabamento ocorreu e que as estruturas das casas adjacentes ruíram em decorrência disso, então as empresas responsáveis pela obra deverão ser responsabilizadas perante os respectivos proprietários. Porém, se não pudermos fazê-lo, ou seja, se não pudermos relatar o fato em linguagem competente, por mais evidente que tenha sido o desabamento e a conseqüente destruição das residências vizinhas, ele não desencadeará os efeitos jurídicos a ele atribuídos e não se poderá falar em dano nenhum”. (MARTINS, A. F. S. A prova do fato jurídico tributário..., 2007. p. 37). Sob o tema, assevera Fabiana

Del Padre Tomé: “Assim, qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressam apenas os enunciados

compostos pela forma lingüística própria daquele sistema. Relatado o acontecimento em linguagem social, teremos fato social; este, vertido em linguagem jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. Os fatos da chamada realidade social, enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como meros eventos em relação ao mundo do direito. O mesmo se dá com o fato político, econômico, biológico, psicológico, histórico, etc; quaisquer desses, enquanto não traduzidos em linguagem jurídica, permanecem fora do campo de abrangência do sistema do direito posto, na qualidade de meros eventos”. (TOMÉ, F. D. P. A prova no direito tributário..., 2005. p. 33).

Alberto da Mota Pinto, significa produção de efeitos ou de consequências jurídicas.101

Tal distinção é muito bem apontada também pelo mestre Lourival Vilanova:

Uma tormenta em alto-mar, que não atinja coisa (um navio) ou pessoa, é fato natural juridicamente irrelevante, quer dizer, nenhuma relação mediata ou imediata tem com condutas humanas, e, por isso, nenhuma conseqüência jurídica traz. Mas, se atinge navio, com carga e pessoas, e o fato foi tido, em contrato de seguro, como sinistro, como evento futuro e incerto, a mesma tormenta reveste-se da qualidade de fato jurídico, trazendo consequências como a indenização de vidas e cargas pelo segurador em favor do segurado.102

Analisando sob a ótica do processo de positivação do Direito e da constituição da norma jurídica pela bimembridade antecedente/conseqüente, a norma geral abstrata, em seu antecedente, descreve um evento de possível ocorrência no mundo físico, concreto, e, se ocorrido, será meramente denominado como um fato social, que ainda não ingressou no mundo jurídico. Mas, após o ato de aplicação realizado pelo homem, e a constituição desse fato em linguagem jurídica, ensejará o surgimento do fato jurídico, compondo o antecedente da norma individual e concreta. É o fato social o suporte do fato jurídico que encontra-se previsto na norma jurídica.

Nesse contexto, sendo o fato uma alteração individualizada do mundo fenomênico, mediante a determinação das condições de tempo e de espaço em que se deu a sua ocorrência, logo, no Direito Positivo, tal individualização corresponde ao antecedente das normas individuais e concretas.

Ressaltamos, o evento ocorrido no mundo social não será reconhecido no mundo jurídico enquanto não for relatado em linguagem própria do direito, não gerando qualquer conseqüência no mundo jurídico. É o que ressalta Maria do Rosário Esteves:

101 MARTINS, A. F. S. A prova do fato jurídico tributário..., 2007. p. 40.

102 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.

Porém, o enunciado lingüístico de uma dada realidade só se torna relevante juridicamente se, uma vez previsto em norma jurídica geral e abstrata, for produto de um ato de aplicação. Em outras palavras, o enunciado não será reconhecido no campo jurídico enquanto não for relatado em linguagem própria do direito. É o relato em linguagem própria do direito que dá ao fato o status de jurídico. Fato jurídico será, portanto, o enunciado lingüístico produto de um ato de aplicação do processo de positivação do direito.103

É a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático que torna jurídico o fato. O fenômeno da incidência jurídica somente irá caracterizar-se quando o mero evento descrito na hipótese de incidência da regra tributária adquire expressão em linguagem competente transformando-se em fato. Somente o fato jurídico pertence ao mundo jurídico, de modo que isso ocorre mediante a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático.

Assinala Joana Lins e Silva:

(...) no antecedente das normas jurídicas há a descrição hipotética de um fato, com a indicação das notas que certos fatos do mundo devem apresentar para que possam ser considerados fatos jurídicos. Por isso, o antecedente serve de porta de entrada da realidade factual para o mundo do direito positivo.104

Portanto, o que torna jurídico o fato é a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático, mediante o relato em linguagem competente, tornando-os apto a ingressarem no mundo jurídico e a irradiar efeitos de direito, mediante a instauração de vínculo jurídico entre os sujeitos de direito, caracterizando o fato jurídico, enquanto elemento fundamental de toda a juridicidade.