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Capítulo 1 Perspectivas possíveis da diversidade festiva

1.3. Diversidade festiva em camadas

Com base na classificação sugerida por Amaral (2012), organizei as festas nas seguintes categorias:

1. Festa-abrangente com visibilidade (turística-midiática): tem uma celebração capaz de ultrapassar o espaço de origem. A ocupação de área envolve, além de um bairro, as regiões vizinhas. Ela é convergente, ou seja, é “a festa do dia” no calendário festivo da cidade. Geralmente, empresta à cidade o clima de feriado, mesmo que ele não seja oficial, com modificações que se impõem na rotina, interferindo no trânsito, suspendendo parcialmente serviços, entre outras alterações. É o caso da Lavagem do Bonfim e da Festa do Rio Vermelho. Em alguns casos, a festa pode começar com essa característica e tornar-se mais reduzida ou vice- versa. Costuma ser usada pela indústria do turismo e canais de mídia como um dos traços de diferenciação da Bahia, reforçando uma ideia de especialidade baiana para festejar, fazendo parte do conjunto de signos que compõem a “baianidade”.

2. Festa-local com média visibilidade turística e midiática são as que têm os ritos restritos ao bairro onde acontecem. Seus ritos não ultrapassam a área de origem. Não possuem um alto impacto para as regiões que estão distantes do seu centro. O público é majoritariamente formado pela comunidade local, como acontece com as festas da Lavagem de Itapuã e a de Santa Luzia. Sua repercussão no “capital festivo” é mais discreta na mídia e nas propagandas do poder público em relação ao turismo.

Tabela 1: Modelo das festas

Festa Temporalidade Modelo

São Nicodemus Anual com data móvel (última segunda-feira de novembro

Local

Santa Bárbara Anual (4 de dezembro) Abrangente

Nossa Senhora da Conceição

Anual (8 de dezembro) Abrangente

Santa Luzia Anual (13 de dezembro) Local

Bom Jesus dos Navegantes Anual (1º de janeiro) Local

Festa de Reis Anual (6 de janeiro) Local

Festa do Bonfim Anual (2ª quinta-feira após o domingo da epifania) Abrangente Festa da Ribeira Anual (Segunda-feira após a Lavagem do Bonfim Local

Festa de São Lázaro Anual (Último domingo de janeiro) Local

Festa da Pituba Anual (2 de fevereiro) Local

Festa do Rio Vermelho Anual (2 de fevereiro) Abrangente

Festa de Itapuã Anual (Quinta-feira antes do Carnaval) Local

Das festas que formam o conjunto analisado nesta pesquisa, quatro podem ser consideradas abrangentes, ou seja, extrapolam seu espaço de origem e têm apelo para atrair um público difuso, e a visibilidade midiática também é maior. Estão nesta categoria as festas de Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição da Praia, Bonfim e Rio Vermelho. As outras nove festas ficam restritas ao seu endereço e têm um espaço já reduzido, inclusive nas páginas dos jornais. A Lavagem de Ondina era organizada para atrair um público específico – quem poderia pagar o ingresso – e estava restrita ao espaço do hotel.

Nos dados analisados nesta pesquisa, a partir da documentação do Cedoc – A Tarde, três das festas que classifiquei como abrangentes são as que registraram o maior número de ocorrências nas 6.992 reportagens consultadas no período de 104 anos: Bonfim, Rio Vermelho, e Nossa Senhora da Conceição da Praia. Bom Jesus dos Navegantes aparece em quarto lugar no ranking, mas é uma festa que tem um apelo mais local. Esta visibilidade maior em A Tarde pode ter sido por ocorrer no dia 1º de janeiro, dia em que não há oferta maior de temas para basear a reportagem. Faltou Santa Bárbara, mas a festa, a partir da análise das reportagens de A Tarde, experimentou um período de invisibilidade, na década de 1980 até o fim da década seguinte, quando foi reestruturada.

Das quatro festas que lideram o ranking construído a partir desta análise, três obtiveram um pico de visibilidade em A Tarde no período de 1993-2002. Esta é a fase em que a indústria do entretenimento, que também engloba as festas de largo na sua condição de aquecimento para o Carnaval, está estabilizada, após a sua terceira inflexão, nos anos 80, que permitiu a “empresarialização”, de acordo com a concepção de Miguez (2012)40.

40 Segundo o autor, a primeira fase ocorreu nos anos 50 com a invenção do trio elétrico, e a segunda, em meados

da década de 1970 a partir da proliferação de blocos afros. Conferir MIGUEZ, Paulo. O Carnaval da Bahia: um

desafio para as políticas culturais, Repertório Salvador, n. 19, 2012.2. Link:

Figura 4: Ranking de festas por número de ocorrências – parte 1

Com maior ou menor abrangência sobre o espaço da cidade, essas festas também têm um forte componente lúdico a partir da aglomeração em barracas estabelecidas nos largos das igrejas. Por esse motivo, na Bahia, usa-se mais frequentemente o termo “festas de largo” para se referir a estes festejos, inclusive o jornal A Tarde, na perspectiva definida por Serra (2009), que destaca a relação íntima entre duas categorias, sagrado e profano, que à primeira vista poderiam parecer opostas:

Muitas vezes se encontra usado o termo “profano” como equivalente de “não religioso”. Mas a ideia do profano só tem sentido numa perspectiva religiosa, ou seja, no domínio fenomenológico em que se opõe à noção do sagrado. Essa oposição liga as duas referidas categorias de forma necessária, numa estreita correlação. Aquele para quem não há nada sagrado, nada pode considerar profano. A religião é que divide o mundo nesses dois domínios”. (SERRA, 2009, p.69).

Algumas dessas festas perderam a visibilidade, deixando de ser abrangentes e tornando- se locais, quando tiveram a área de abrangência diminuída. É o caso da de São Nicodemus e da Pituba. Atualmente, as duas estão restritas aos ritos religiosos – missa, procissão. No caso da primeira, a distribuição de caruru persiste. A Festa de São Nicodemus perdeu visibilidade quando deixou a área pública, pois, a partir de 2001, uma mudança na normatização dos portos, devido aos ataques ocorridos em Nova Iorque ligados ao terrorismo, restringiu a entrada ao principal palco da festa, que é o cais da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba), onde atracam os navios de carga e passeio que chegam e partem da cidade. Até então a procissão passava pelas principais ruas do bairro do Comércio, até com o registro de shows. Agora, os ritos são feitos apenas no ambiente fechado, com participação de funcionários da ativa, aposentados e convidados.

Já na Pituba, onde a festa começava na quinta-feira e incluía lavagem das escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Luz, corrida de carros, procissão terrestre e marítima, os ritos resumem-se atualmente a missas e procissão. Há quatro anos, a procissão marítima voltou, mas a comemoração é ofuscada por acontecer no mesmo dia que a festa do Rio Vermelho: 2 de fevereiro. Anteriormente ela tinha data móvel e geralmente era realizada na segunda semana de fevereiro.

A Festa da Ribeira, que em outros tempos poderia ser classificada como abrangente, perdeu visibilidade e, para muita gente, até já acabou. Essa festa tem uma trajetória curiosa. Até meados da década de 1950 era considerada parte dos festejos do Bonfim, conhecida como “Segunda-feira Gorda”, até que foi desmembrada, ganhando a denominação da região onde acontece. Passou a ter como principal característica a animação por trios elétricos, mas acabou ficando conhecida como violenta até que definhou. Hoje resume-se ao consumo de bebida e comida nas barracas à beira da praia, não muito diferente de uma segunda-feira comum no bairro. A segunda classificação das festas envolve as categorias de espaço e endereço para a realização das festas, além dos ritos:

Tabela 2: Endereços e ritos das festas

Festa Espaço Endereço Ritos

São Nicodemus Privado Porto/Comércio Missa, procissão e

caruru Santa Bárbara Misto (público – ruas

do Centro Histórico); privado: mercado, quartel do Corpo de Bombeiros, igreja Centro Histórico, Barroquinha e Baixa dos Sapateiros Missa, procissão e caruru Nossa Senhora da Conceição

Misto (público – rua e largo); privado: igreja

Comércio Novenas, missa,

procissão e festa de largo discreta Santa Luzia Misto (público – rua);

privado: igreja

Comércio Missa e procissão

Bom Jesus dos Navegantes

Misto (público – rua, praia, mar); privado: igreja

Boa Viagem Missa, procissão

marítima e procissão terrestre

Festa de Reis Misto (público – rua); privado: igreja

Lapinha Missa e desfile de

ternos Festa do Bonfim Misto (público – ruas);

privado: igreja

Bonfim Novenas, lavagem,

missa e procissão

Festa da Ribeira Público (orla) Ribeira Dança e música

Festa de São Lázaro Misto (público – rua, largo); privado: igreja

Federação Missa, procissão,

banho de pipoca Festa da Pituba Misto (público – rua,

praia, mar); privado: igreja

Pituba Missa, procissão

terrestre, procissão marítima

Festa do Rio Vermelho Público – rua, praia, mar

Rio Vermelho Presente, procissão marítima

Festa de Itapuã Público – rua Itapuã Bando Anunciador,

lavagem realizada pelos moradores, lavagem das baianas

Festa de Ondina Extinta Bahia Othon Palace Dança e música

Como podemos observar a partir da tabela, as missas e procissões são ritos característicos em dez das 12 festas que ainda ocorrem. Mesmo no Rio Vermelho, onde a comemoração é para saudar um orixá do candomblé, há uma procissão marítima com embarcações acompanhando a que leva o presente principal oferecido pela Colônia de Pesca Z-1, que organiza os festejos. Bom Jesus dos Navegantes e Pituba também possuem procissões pelo mar.

A procissão está ausente em Itapuã, que tem o cortejo terrestre para lavar as escadarias da igreja, repetindo o rito do Bonfim. Na Lapinha o destaque é para o desfile de ternos. Em São Nicodemus e Santa Bárbara tem caruru, embora o oferecido na primeira restrinja-se a convidados, diferentemente do acesso amplo que é a marca da outra festa. Já a Ribeira não tem um rito de fundo religioso, nem mais o de seguir o trio elétrico. Tudo agora resume-se a passar o dia nas barracas da orla do bairro. A Lavagem de Ondina, enquanto durou, resumia-se a uma festa no espaço interno do Bahia Othon Palace.

Em relação ao espaço, dez das festas fazem interagir o campo privado – geralmente o templo – e a área do seu entorno, além das ruas próximas. Bonfim e Itapuã são exceções, pois, devido a tensões do passado, os cortejos das lavagens chegam até o adro e as igrejas ficam fechadas. Recentemente, o reitor da Basílica do Bonfim, padre Edson Menezes, passou a dar uma bênção a partir de uma das janelas do santuário e, nesse ano, o adro chegou a ser aberto para o público.

Na Festa da Conceição, o templo “avança” até a área externa. A missa solene, geralmente celebrada pelo arcebispo titular da arquidiocese, acontece em um palanque montado no largo da igreja, que se mantém aberta. Nossa Senhora, sob essa invocação41, é a padroeira da Bahia. Portanto há uma íntima relação entre o ambiente da igreja e o largo.

Na Pituba, os ofícios acontecem na parte interna do templo, mas há os ritos públicos, como a missa na praia e a procissão pelas ruas do bairro, além da marítima. Itapuã e Ribeira mantêm apenas a ocupação do espaço público.

Em relação ao endereço, as festas começam pelo entorno da Baía de Todos-os-Santos, na região do centro antigo e da Península de Itapagipe (Comércio, Pelourinho, Lapinha, Boa Viagem, Bonfim e Ribeira) e deslocam-se no fim do ciclo para a orla atlântica (Pituba, Rio Vermelho e Itapuã). No primeiro grupo estão oito delas e no segundo, quatro.

41 Na liturgia católica, a devoção a Nossa Senhora é mantida por meio das chamadas invocações. Elas estão

relacionadas a localidades como Lourdes, França, onde se acredita ter acontecido uma aparição a camponeses, ou Aparecida, em São Paulo, essa escolhida como padroeira do Brasil. A invocação também pode estar relacionada ao pedido de proteção a uma particularidade como Nossa Senhora do Parto ou dogmas relacionados a Maria – “da Glória” – relativa à sua assunção (em corpo e alma) ao céu, como estabeleceu a teologia católica. Na Bahia, a igreja dedicada a sua padroeira ganhou o complemento de “da Praia”, pois a primeira igreja fundada por Thomé de Souza ficava à beira-mar. A atual foi construída séculos depois e já bem recuada em relação à praia.

Uma terceira categoria de classificação das festas do ciclo de verão envolve a relação entre terra e mar que as comemorações apresentam e a condição de proteção, por ser reconhecidas como patrimônio. Esse benefício vem por meio do tombamento, geralmente na categoria de bem imaterial.

Tabela 3: Relação terra/mar nas festas de largo

Festa Relação terra/mar Tombamento

São Nicodemus Sim, mas de forma indireta, pois a festa acontece no cais do porto

Não

Santa Bárbara Não Sim (patrimônio estadual)

Nossa Senhora da Conceição Não Não

Santa Luzia Não Não

Bom Jesus dos Navegantes Sim (procissão marítima) Não

Festa de Reis Não Não

Festa do Bonfim Não Sim (patrimônio federal)

Festa da Ribeira Não Não

Festa de São Lázaro Não Não

Festa da Pituba Sim (procissão marítima) Não

Festa do Rio Vermelho Sim (procissão marítima, presente)

Não

Festa de Itapuã Não Não

Festa de Ondina Não Não

De acordo com esta tabela, das 13 festas, quatro transcorrem na relação terra/mar: São Nicodemus, de uma forma indireta, pois, mesmo não tendo procissão marítima, é uma devoção dos funcionários do porto e acontece no cais; Pituba, Rio Vermelho e Bom Jesus dos Navegantes, que é a mais visível nesse sentido. No dia 31 de dezembro, à tarde, após uma missa, a imagem de Bom Jesus dos Navegantes sai da Boa Viagem e é levada na galeota Gratidão do Povo, uma embarcação construída no fim do século XIX, até o Comércio. Lá pernoita na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. No dia seguinte uma pequena procissão terrestre leva a imagem para ser embarcada novamente. Desta vez, via mar, ela segue até as imediações do bairro da Barra e retorna para a Boa Viagem, onde em procissão por terra é conduzida novamente para a Igreja da Boa Viagem.

Mais duas festas têm essa relação terra/mar com ligações muito próximas a devoções de pescadores: Pituba, que tem uma participação firme da colônia de pesca local, e Rio Vermelho. No caso dessa última, a devoção é a Iemanjá.

Aqui temos, portanto, um conjunto de festividades que acontecem em uma dinâmica muito própria interligando tempo, espaço e culturas religiosas. Elas mantêm estruturas que permitem transformações e assim a sua sobrevivência como marcos importantes para a sociabilidade soteropolitana.

Celebradas pelo jornal como um aceno à ruptura da rotina, espaço de irreverência, as festas de largo são extremamente organizadas. Por trás dessas celebrações há muito trabalho de irmandades católicas laicas42 e associações que as mantêm anualmente, além de investimento do poder público impondo regras de padronização de equipamentos como as barracas para a venda de comida e bebida e instalação de infraestrutura – segurança, postos de saúde e organização do trânsito.

Em uma festa como a do Bonfim são vários agentes interagindo de forma simultânea, às vezes separadamente, mas convergindo para um mesmo ponto: a Devoção43 e reitoria da Basílica; Bahiatursa, órgão do governo do estado; prefeitura, na organização do comércio ambulante, por exemplo; Irmandade de Nossa Senhora da Conceição; e Associação das Baianas de Acarajé, Vendedora de Mingau e similares (Abam), que cadastra baianas para formar o cortejo.

Dinâmicas, essas festividades ganham ou perdem elementos, como é possível perceber nas coleções imagéticas e das edições digitais de A Tarde. Distribuídas por espaços diferenciados, alteram o calendário oficial, estabelecendo um tempo próprio e estabelecendo-se, nessa polissemia, como um marco identitário da cidade.

42 As irmandades de leigos tiveram um papel importante no catolicismo colonial português. Essas instituições

permitiam suporte para os seus membros em casos de doença e também para garantir os ritos funerários semelhantes aos modernos modelos de previdência. Até mesmo os escravos podiam integrar essas associações criadas para organizar o corpo leigo em oposição às ordens e congregações para os que desejavam se dedicar ao serviço da Igreja professando votos de pobreza, castidade e obediência. A Festa de Santa Bárbara atualmente acontece em uma devoção abrigada na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos às Portas do Carmo, sediada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada na Ladeira do Pelourinho. Um estudo detalhado sobre essas instituições está em SILVEIRA, Renato. O Candomblé da Barroquinha processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto, Salvador, 2010, editora Maianga.

43 Devoção é o nome que se dá a uma organização de leigos da Igreja Católica que tem estrutura mais simples