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Capítulo 1 Perspectivas possíveis da diversidade festiva

1.1. Questões de festas

Investigar esse campo festivo é um desafio permanente. Os eventos citados anteriormente têm, cada um, características muito específicas: o Réveillon é um festival, assim como o São João, que se espalha simultaneamente em espaços diferenciados e abriga diversos ritmos musicais e não mais exclusivamente o forró. Já as festas de São Cosme e São Damião acontecem em ambiente privado com um calendário que começa em setembro, mas, em alguns casos, invade o mês seguinte, quando se comemora o Dia das Crianças29.

O campo dos festejos, portanto, é polissêmico, como demonstram os estudos mais contemporâneos sobre antropologia da festa. Iniciando pelo conteúdo semântico, é necessário estabelecer parâmetros, pois as possibilidades de significados para a palavra “festa” são variadas. Um dos dicionários mais usados em português, o Houaiss, estabelece seis possibilidades. A primeira – “reunião de pessoas de caráter informal ou solene, em espaço público ou privado” – é desdobrada em seis pelo autor – agrupamento, regozijo, solenidade civil, festividade religiosa, procissão e romaria. Os significados incluem até fazer um mimo a alguém30.

Presença constante nas variadas sociedades, as festas sempre mereceram atenção como fenômenos importantes nas redes de sociabilidade, principalmente no campo da antropologia. Importância, função e descrição dos eventos festivos se alternaram, embora ainda tenhamos dificuldade em estabelecer uma resposta precisa sobre o que é uma festa. Alteração na rotina, mimetização de comportamentos, rito de passagem e outras possibilidades não definem, mas convivem no campo festivo. Mais do que descrições, essas possibilidades funcionam como ruídos ou fazem com que a capacidade de definição extrapole uma só perspectiva sobre festa, como explica Perez:

28 Loiola e Miguez (1996), Miguez (1999).

29 A data dessa festa é 12 de outubro e virou feriado porque se celebra a padroeira do Brasil, Nossa Senhora

Aparecida.

30 Dicionário Houaiss online em https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-0/html/index.htm#1 consultado

O termo festa performa um campo enunciativo que padece de uma polissemia aguda, seus limites são de tal modo fluidos que seu potencial pode ser, e frequentemente o é, desgastado pelo esgarçamento do seu alcance heurístico. (PEREZ, 2012, p.22).

Para a antropologia, esse caráter polissêmico da festa tem estabelecido a necessidade de investigar as potencialidades desse evento para além da descrição etnográfica ou da discussão sobre um caráter mais funcionalista. É o que Perez destaca:

Os cientistas sociais “vêm tentando, ao menos desde Durkheim, reduzir a ambiguidade característica do termo”, todavia, como “adotam uma concepção implícita do que seja festa a partir de casos particulares de festas, ou de aspectos de certas festas que tentam, depois, generalizar”, entretanto, “suas tentativas de definição carecem, igualmente, da abrangência e capacidade generalizante necessárias para transformar festas num conceito” (GUARINELLO, 2001, p.970). (PEREZ, 2012, p.23).

O atual desafio é ir além da descrição de um evento festivo. Mais do que descrevê-lo é necessário apreendê-lo em suas múltiplas perspectivas. Quando percebo que a Festa do Bonfim não é apenas a lavagem do adro da igreja, mas também a concentração na estação ferroviária da Calçada, no bairro vizinho ao Comércio onde está a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, de onde sai o cortejo, ou a caminhada solitária de um romeiro que foi pagar uma promessa, posso compreender a complexidade da representação da festa feita pelo jornal A Tarde nas reportagens e fotografias que analiso neste trabalho.

Essas possibilidades vão além de uma festa-fato e chegam à festa-questão, conceito apresentado por Perez como o desafio para aqueles que desejam ver a festa a partir de novas perspectivas. Mas, para isso, é preciso apreender o evento festivo para além da essencialização, da descrição do que significa como campo de experimentações, experiências múltiplas e conexões que expandem o espaço e tempo festivos em novas direções:

(...) Deixa igualmente de ser, este é o ponto fulcral do meu argumento, um fato socio- lógico para tornar-se uma virtualidade antropológica, que faz parte de atos, tais como o sagrado, o jogo, o sonho, o transe, a arte, a doença mental de “finalidade zero”, podendo atuar, operar fora, para além daquilo que convencionalmente chamamos de festa (DUVIGNAUD, 1977). (PEREZ, 2012, p.34-35).

O caminho, portanto, começa por deslocar a pergunta “o que é a festa?” para o “que a festa faz fazer?” (TAVARES: BASSI, 2015, p.258). Essa mudança nos permite estabelecer

como caminho metodológico a possibilidade de compreender que a festa não é apenas um modelo de experimentação coletivo, mas também individual sem limites precisamente demarcados. A festa cria, recria, impõe, ocupa espaços públicos, que inspira outros na esfera privada, retira elementos para resistir, transforma-se para atrair novos públicos, apresenta-se como tradição, mas continua a compor o contemporâneo. A perspectiva, portanto, muda do que é a festa para o que é capaz de fazer acontecer:

Seguir esse caminho nos livra, por um lado, de alguns dilemas sobre a delimitação de fronteiras substantivas (a festa é isso ou aquilo) ou semiológicas (a festa diz isso ou aquilo). Por um lado, no momento que um evento se transforma (ou “vaza”) em festa, cabe investigar o que foi criado, postulando, segundo um caminho indicado por Garrabé (2014, p.3), que toda criação performativa e estética envolve uma epistemologia da relação, esta sendo compreendida como um “fenômeno que age, forma, deforma e reforma o vínculo”. (TAVARES, BASSI, 2015, p.258).

Ao optar por esse caminho teórico, as festas de verão, objeto deste objeto, apresentam- se como algo mais do que uma preservação de tradições religiosas. Estes eventos integram uma parte significativa da estratégia de Salvador para reivindicar uma identidade festiva dialogando com os caminhos para reforçar essa opção do ponto de vista simbólico. Essa ação é complexa e envolve investimento nesse sentido de poder público, mídia e outros agentes, como mostra a coleção documental do jornal A Tarde, um meio de representação das sociabilidades locais espelhando a dinâmica polissêmica dos festejos da cidade.

Para uso neste trabalho vou delimitar o conceito de “festa” aos eventos que ocupam uma parte considerável do espaço público. Essa distinção, inclusive, é presente no senso comum, pois a série de shows da banda Harmonia do Samba, realizada em todas as segundas-feiras do período de verão, por exemplo, não é compreendida por seu público como integrante da mesma categoria de uma celebração de largo, embora tenha música, dança, bebida, comida. É preciso pagar para participar do evento. Portanto, os ensaios de verão da banda de pagode é uma microfesta, mas já como extensão dos eventos que acontecem em área pública.

Portanto, as categorias espaço e tempo são importantes quando se fala das festas abordadas neste trabalho, afinal elas estão conectadas ao maior desses eventos, o Carnaval. Para dar conta de um panorama complexo com categorias como religião, sagrado, profano, tempo, espaço e representação é necessário revisitar as principais influências para a construção de uma teoria da festa. Durkheim é a referência na associação com a religião, como destaca outro autor de teorias importantes sobre elas: Jean Duvignaud (1983), principalmente na perspectiva de romper com a busca de finalidade na festa.

Para Duvignaud, a festa precisa transcender o lugar de baixa representatividade em que foi colocada muitas vezes nas ciências sociais, assim como o jogo e o sonho por ser analisada como algo fora de estruturas coerentes e com finalidade bem marcada: (...) Contudo, a meu ver, o que ressalta na festa – como também no jogo, na arte, no ingresso, em seu sentido mais dilatado – é, justamente, a sua “finalidade zero” (DUVIGNAUD, 1983, p.23).

A festa, para Duvignaud, é muito mais que a ruptura e quebra dos encadeamentos e tem como finalidade ser ela mesma. É criativa em seu próprio âmbito. Tem regras, mas ao mesmo tempo transgride essas normatizações dialogando com o contexto social no qual está inserida. Impõe demandas ao poder público e exige formas para representá-las.

A festa se apodera de qualquer espaço onde possa destruir e instalar-se. A rua, os pátios, as praças, tudo serve para o encontro de pessoas fora de sua condição e do papel que desempenham em uma coletividade organizada. Então, a empatia ou a proximidade constituem os suportes de uma experiência que acentua intensamente as relações emocionais e os contatos afetivos, que multiplica ao infinito as comunicações, e efetua, repentinamente, uma abertura recíproca entre as consciências na medida em que a festa não mais necessita de símbolo e inverte as sus figurações que desaparecem, muitas vezes, em segundo perecível (...). (DUVIGNAUD, 1983, p.68).

São muitas as possibilidades para ver a festa e que estão condicionadas à perspectiva do autor do olhar: o cientista social, o repórter do jornal, o fotojornalista que vai registrar as imagens que irão traduzir o que é a “festa” para os leitores que lá estiveram ou não; o agente do poder público, geralmente interessado em verificar a manutenção da ordem; o folião que quer apenas se divertir; e o devoto que foi pagar uma promessa.

Essa escolha por considerar os muitos olhares sobre as festas é uma proposta recente, como destaca Tavares (2012), afastando-se dos paradigmas estruturalista e funcionalista que a autora verificou como dominantes. O espaço ritual das festas e a dimensão cotidiana estão interligados e não separados, o que enriquece a perspectiva de análise.

(...) As propostas mais recentes tomam a festa como um espaço de performance, ritual mobilizador de metáforas e metonímias no intuito de contornar as dicotomias entre estrutura e evento (GEERTZ, 1978; TAMBIAH, 1979). O efeito transformativo implicado na abordagem performática do ritual permite compreender modos de ação em contextos cujo enquadramento já se encontra modulado. (TAVARES, 2012, p.121).

As festas do verão em Salvador, meu objeto de interesse, são polissêmicas em seu formato. São de fundo religioso dialogando em uma estrutura que pode ser denominada afrocatólica, por reunir elementos de duas práticas religiosas hibridizadas com acento em uma ou outra característica de cada um destes sistemas de crença, dependendo do momento.

São também eventos que estabelecem as próprias conexões de temporalidade, dialogando com o tempo “oficial” em continuidades e descontinuidades. Preparam o terreno, numa espécie de intermitência até o Carnaval. E, para efeito de delimitação de características em um campo tão amplo, uso a denominação de “festas de largo”, no sentido da dicotomia sagrado/profano, espaço público/privado que passo a discutir.