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Capítulo 2 A cidade que faz da festa sua identidade

2.2. Os mensageiros da festa

2.2.3. O elogio ao Bonfim apresentado por Stefan Zweig

A edição de 1941 da Festa do Bonfim em Salvador foi especial. A Tarde, por meio de reportagens, não conteve o seu entusiasmo com a presença na cidade do celebrado escritor, romancista, ensaísta, biógrafo e crítico literário Stefan Zweig (1881-1942). Austríaco, de origem judaica, o autor de trabalhos que corriam o mundo, como os romances Amok e Confusão de Sentimentos, além de Três poetas de sua vida. Casanova – Stendhal – Tolstoi, dentre muitos outros títulos em uma vasta obra, havia chegado para uma visita à capital baiana que tinha objetivo de pesquisa para a elaboração de um novo ensaio.

Os festejos na Colina Sagrada integraram o roteiro de passeio do intelectual pela cidade e acabaram virando seção de Brasil, um país de futuro, que ele publicou no mesmo ano. Em uma extensa matéria que ocupou mais de um quarto da página, o autor do texto, não assinado,

descreveu minuciosamente as primeiras impressões de Zweig sobre a Festa do Bonfim, na edição de 16 de janeiro de 1941 (página 2). Um ano após a visita à Bahia, Zweig suicidou-se em Petrópolis, Rio de Janeiro, ao lado da mulher Lotte69. Durante a Festa do Bonfim, segundo a reportagem, Zweig acompanhou tudo atentamente a ponto de ter buscado explicações sobre as vestes de uma baiana. De acordo com o mesmo relato ele anotava tudo em uma caderneta:

Zweig continua a tomar incansavelmente as suas notas. E enquanto bebemos um guaraná, ele nos confessa que os mais interessantes aspectos do Brasil, ele os está colhendo entre nós. Aqui, diz, o povo aumenta o pitoresco da cidade. – Creia-me. Somente a Bahia daria um livro. (A visita de Stefan Zweiger à Bahia, A TARDE, 16/1/1941, p.2).

A narrativa sobre a Festa do Bonfim está na seção de Brasil um país do futuro intitulada Igrejas e Festas. O texto de Zweig traz impressões carregadas dos estereótipos mais comuns nas narrativas de viajantes sobre a Bahia: misticismo, religiosidade aflorada, terra em que o passado mantém-se praticamente intacto. Isso, mesmo para alguém como Zweig, que se encontra em êxodo pelo mundo, passando por tantas e tantas cidades diferentes. As suas impressões são muito parecidas com os elementos que foram disseminados pela literatura de Jorge Amado:

Por toda a parte nessa cidade sentimos a tradição. A Bahia, ao contrário de todas as outras cidades brasileiras, possui um traje próprio, uma cozinha própria e uma cor própria. Em nenhuma outra parte as ruas mostram tanta variedade de cores como a Bahia, onde a população africana e a colonial antiga se conservaram sem grande modificação; sem cessar julgo estar vendo, como quadros vivos, as cenas do “Brasil pittoresque” de Debret, todas aquelas coisas de outrora que já há muito tempo desapareceram das outras cidades grandes [... ]. (ZWEIG, 1941, p.366).

A Lavagem do Bonfim, portanto, se descortina aos olhos de Zweig como a tradução em movimento dessas cenas coloniais que ele apreendeu. O escritor cita o entorno das igrejas, o cortejo de baianas e as carroças enfeitadas. No lugar de uma análise sobre o que representa a persistência de uma festa religiosa, com traços coloniais, no Brasil que deseja estabelecer-se no

69 Na entrevista para A Tarde, Zweig já demonstra um pouco do desencanto com o cenário da geopolítica no

período: intelectuais refugiados e avanço do regime de horror comandado por Hitler, o que lhe levou ao desespero diante da falta de esperança, como registrou em sua carta de despedida. Este documento foi reproduzido em outra reportagem de A Tarde, publicada 40 anos depois da visita do escritor a Salvador, na edição de 26 de novembro de 1981. O texto foi assinado pelo jornalista Maria Edísia Almeida: Antes de, por minha livre vontade e de espírito lúcido, deixar este mundo, impõe-se-me cumprir um último dever: o de agradecer efusivamente ao Brasil, a este maravilhoso país que, de forma tão amável e hospitaleira, me deu o repouso necessário para poder trabalhar... Mas depois de sessenta anos seria preciso uma força muito especial para mais uma vez começar inteiramente de novo. E a minha foi-se esgotando nos muitos anos de desterro errante. Saúdo todos os meus amigos! Oxalá eles ainda possam ver a aurora após esta longa noite! Eu, por demais impaciente, vou adiante. (Stefan Zweig, A TARDE, 26/11/1981, p.1, Caderno 2).

dito mundo moderno, o ensaísta está seduzido por toda a carga de fascínio com que historicamente se descreveu os eventos festivos da cidade.

A sua explicação para a origem dos festejos é filiada à versão de que foram os negros que criaram o rito de lavagem da igreja, ao transformar em brincadeira o que era uma cerimônia para preparar o templo para os ritos do dia seguinte. E nesse tom Zweig prossegue descrevendo a festa até a chegada do cortejo ao adro da igreja:

[...] Quando o primeiro tiro morteiro avisou que numa curva do caminho aparecera o cortejo, deu-se uma dessas explosões de júbilo que raramente eu vira. As crianças bateram palmas e sapatearam de alegria, os adultos gritaram: “viva o Senhor do Bonfim”, e a igreja inteira retumbou durante um minuto esses brados de júbilo. (ZWEIG, 1941, p.379).

Na narrativa, Zweig compara a lavagem a uma histeria coletiva, a ponto de confessar que poderia ter sido cooptado pelo mesmo sentimento:

Havia algo de tão violentamente arrebatador e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que se tornou mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante. (ZWEIG, 1941, p.381).

O texto ainda tem a parte instigante em que Zweig conta que foi levado a uma cerimônia que define como “macumba”, mas que desconfia ter se tratado de uma armação para turistas. O espetáculo que viu e que destoa de uma cerimônia pública de candomblé, pois teve, de acordo com o autor, o consumo de cachaça, é comparada por ele ao que presenciou no Bonfim:

[...] O que no resto do Brasil já foi polido pelos costumes modernos, o que já tem suas origens encobertas, pelo que é europeu e foi por ele suplantado – tudo isso, o primitivo, o instintivo, e o extático ainda se conserva em vestígios misteriosos na Bahia, e em algumas raras manifestações sentem-se ainda resquícios da sua existência (ZWEIG, 1941, p.383).

O texto de Zweig marcou a Bahia. Tanto que na edição de cobertura sobre a festa, dez anos depois (11 de janeiro de 1951, página 2), ao reclamar da interferência policial na organização dos festejos, o autor do texto cita que a descrição difere da que foi apresentada pelo ensaísta austríaco reiterando que ele é um gênio.

Na década de 1990, o texto de Zweig mais uma vez voltou a ser citado no jornal. Desta vez baseou um editorial, espaço em que o jornal expressa sua opinião sobre determinado tema.

Após apresentar o cenário otimista sobre o país pintado pelo autor, o texto critica a sucessão de planos econômicos e um possível retorno da inflação como impedimentos de que o futuro anunciado finalmente se concretize70.

Figura 17: Stefan Zweig incluiu a Bahia em seu ensaio Brasil: um país de futuro. Foto: Internet livre