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Capítulo 5 De santa a orixá: transformação na Festa do Rio Vermelho

5.2. Visibilidade gradativa da Festa

Após a reportagem jocosa de 1930, A Tarde voltou a noticiar o presente, em 1935. A notícia, mais uma vez, está na capa do jornal, mas na metade inferior. É também a primeira vez que há um registro fotográfico do rito.

Figura 51: “Janaína” se encheu de presentes, A Tarde, 2/2/1935, capa

A referência ainda é a “mãe-d’água”, Janaína, e, no caso deste último registro, a Iara, uma divindade indígena. A mudança no discurso de A Tarde sobre o culto a Iemanjá no Rio Vermelho tornou-se mais evidente na década de 1940. Em duas edições do mês de fevereiro de 1944, o presente ganhou destaque. A primeira reportagem foi publicada no dia 2, com uma descrição detalhada, indicando que o presente está completamente inserido nas festas do bairro. A narrativa começa pela movimentação inicial até os momentos após a entrega da oferta. Com base nessa narrativa, percebe-se que essa estrutura festiva já é bem parecida com a atual:

Brancos e pretos, ricos e pobres, reuniram-se todos na praia de Sant’Ana, para a oferta dos presentes. Belas mulatas de saias rodadas, torços de seda, pano da costa, chinelinhas nas pontas dos pés, pulseiras e colares de oiro, barangadans, juntavam-se às senhoras de vestidos de seda, de moças de calças de casemira, a rapazes de blusões havaianos. (Minha sereia, rainha do mar..., A TARDE, 2/2/1944, p.2).

No entorno dessa festa acontece uma mistura de som de atabaques com os repiques do samba de roda. O autor do texto até conta detalhes de uma rusga entre um casal de idosos porque o homem encontra-se embevecido por uma jovem que seduz com seu samba. O texto tem uma pontuação e estilo narrativo que indica a duração do evento por mais de uma manhã. De acordo com o texto, o presente saiu da Casa do Peso sob a condução de uma mãe de santo:

Um grande balaio coberto de flores. Dentro dele, pentes, peças de pano, metros de fita, sabonete, frascos de perfumes, objetos de “toilette”, uma infinidade de coisas diversas. Cada um leva, também, o seu presente particular, um embrulhinho, um ramo de flores, muito ou pouco – que importa? O que importa é que a Senhora das Águas, Dona Yemanjá, não deixe de receber a oferenda, a prova de um afeto, de uma veneração do culto que ela desperta nos corações das gentes simples. (Minha sereia, rainha do mar..., A TARDE, 2/2/1944, p.2).

O texto dá pistas também sobre o roteiro. A procissão marítima não segue mais até Monte Serrat. Agora prossegue das imediações do Largo de Sant’Anna, onde está a Casa do Peso, até a Pedra da Sereia, ainda no Rio Vermelho, mas na direção de Ondina. Dois dias depois, uma nova matéria informa que a festa reuniu três mil pessoas, mas os objetos acabaram voltando para a areia, o que, segundo o texto, é motivo de preocupação para os devotos:

A praia da Paciência, no Rio Vermelho, amanheceu, hoje, coberta de presentes, deixados pela baixa-mar. Encharcados, desfeitos, sujos de areia, eram os ex-votos que Iemanjá não aceitara. E foi com pesar e desassossego que os fiéis do culto da sereia souberam do que aconteceu com suas dádivas. Eles temem, agora, que a mãe-d’água, enraivecida como seu povo, na terra, manifeste lançando calamidades a sua cólera irresistível. (Iemanjá está zangada, A TARDE, 4/2/1944, p.2).

O repórter termina seu texto atribuindo a Iemanjá a instabilidade que ele considera própria das mulheres: “A deusa é mulher. Como as mulheres, nela ninguém pode se fiar...” (A TARDE, 4/2/1944, p.2). A festa para Iemanjá, portanto, embora ainda de forma secundária, já tem visibilidade e narrativas que diferem do tom jocoso das décadas anteriores. O que havia mudado para que o jornal de maior circulação na cidade passasse a tratar o evento como algo positivo? Uma pista pode estar nos movimentos na indústria cultural.

Caymmi já fazia sucesso cantando elementos da cultura negra como preciosidades da Bahia. Em 1942, Saludos Amigos, de Walt Disney, apresentava o personagem Zé Carioca, embalado por Aquarela do Brasil na voz de Ary Barroso e com participação de Carmen Miranda. Três anos depois, o estúdio trazia um de seus emblemáticos personagens, Pato Donald, para protagonizar o episódio Você já foi à Bahia?, do filme The three caballeros.

O livro de exaltação, inclusive às festas populares de Salvador – Baía de Todos os Santos, guias de ruas e mistérios –, foi publicado por Jorge Amado em 1944. No campo da comunicação, Assis Chateaubriand comandava a primeira cadeia nacional de rádios e jornais, os Diários Associados, que inaugurou o primeiro sistema de televisão brasileiro, TV Tupi, em 1950. Além disso, a ditadura do Estado Novo tomou medidas para criar a ideia de um país unificado, enaltecendo símbolos que formariam a “identidade brasileira”, como a feijoada, o samba e a miscigenação. Para o seu projeto de poder, Vargas buscava criar unidade no país. Se a censura mantinha os jornais na linha no conteúdo em relação ao governo, Vargas acenava com mais flexibilidade em relação ao uso de símbolos, sobretudo da cultura negra, como o candomblé e a capoeira122.

Assim, em 1947, o presente aparece incluído na programação da festa, inclusive no título, em texto publicado também na parte superior da página. Esse evento antecede o desfile do Bando Anunciador, segundo a matéria.

Figura 52: Começam hoje os festejos do Rio Vermelho, A Tarde, 4/2/1944, p.2

122 Em 1890, a capoeira tornou-se uma prática proibida. Para fundar suas academias, o Mestre Bimba, baiano,

introduziu elementos de artes marciais, abrindo espaço para que a descriminalização viesse ainda no primeiro governo de Getúlio Vargas. A tradição oral do candomblé conta que Mãe Aninha, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, pediu a Osvaldo Aranha, ministro de Vargas, que conseguisse do presidente a licença para que os terreiros usassem os atabaques sem restrição. Até o momento não foi encontrado o documento referente a este caso, embora ele seja largamente citado na tradição oral de muitos terreiros de candomblé.

A década de 1950 marca o início do processo de protagonismo dos festejos para a orixá que rege os mares. A primeira referência encontrada na coleção de reportagens citando diretamente o nome “Festa de Iemanjá” é de 1950.

Figura 53: A Festa de Iemanjá, 3/2/1950, p.2

O texto foi publicado na parte inferior (mas tem tratamento de destaque), inclusive com foto. O rito é descrito sem análises ou tom preconceituoso. É a festa sendo incorporada pela cidade não mais como um evento marginal, mas de prestígio. Ao mesmo tempo vai diminuindo a proeminência dos outros elementos da comemoração no Rio Vermelho, como o Bando Anunciador.

A partir da coleção de reportagens é possível afirmar que a consolidação total dos festejos para Iemanjá no Rio Vermelho aconteceu na década de 1970. Por considerar que o bairro havia perdido a condição de localidade de veraneio, o então pároco da igreja, monsenhor Antônio da Rocha Vieira, resolveu transferir a festa da padroeira para julho, mês da sua festa no calendário litúrgico da Igreja Católica123.

123 Site da Paróquia Sant’Ana consultado em 4/7/2017:http://www.igrejadesantana.org.br/quem/a-padroeira.

Segundo a mesma fonte, a festa começou por iniciativa de veranistas e, por isso, era celebrada em fevereiro. Em 5 de abril 1913 foi criada a Paróquia Sant’Anna, até então vinculada à Paróquia da Vitória. As festas eram realizadas na igreja do século XIX, até que em 1959 começou a construção da atual matriz, localizada ao lado da Casa do Peso.

Um episódio narrado por A Tarde indica que mesmo com a transferência de data da festa de Sant’Anna, a comissão organizadora tentou reeditar a lavagem da igreja que já não acontecia há 15 anos. O pároco, padre Raimundo Rocha Filho, não permitiu.

A lavagem da Igreja de Santana, prevista para o dia 3 de fevereiro, durante os festejos em louvor a Yemanjá não será mais realizada, segundo informações da Comissão de Festejos Populares do Rio Vermelho, para evitar choques entre a Comissão e o vigário da paróquia, que proibiu a realização do ato. (Padre não quer lavagem, A TARDE, 24/1/1977, p.2).

Dois dias depois o assunto voltou a ser noticiado na matéria intitulada Vigário fecha igreja do Rio Vermelho para evitar atos profanos:

Não haverá lavagem da Igreja de Santana, na festa de Iemanjá, no Rio Vermelho. O templo vai permanecer fechado porque o vigário Raimundo Rocha Filho não concorda com a mistura de festa profana com atos religiosos. A igreja fecha amanhã às 20 horas – depois da missa e só reabrirá no dia 7, após o encerramento da festa. (A TARDE, 29/1/1977, p.2).

O texto permite, portanto, inferir que houve uma tentativa de manter alguma ligação com o modelo do Bonfim, mesmo com a transferência da festa católica de fevereiro para julho. Mas com a retirada da festa para Sant’Anna, finalmente Iemanjá ganhou total protagonismo como homenageada. Nos 30 anos seguintes, a festa passou a ganhar cobertura especial em A Tarde: notícias sobre preparativos, movimento na véspera e a cobertura no dia seguinte.

Nos anos 2000, por dois anos seguidos, a festa ganhou um “especial” no jornal. O primeiro foi realizado em 2006 e publicado em série, ou seja, com um capítulo diário do período de 28 de janeiro a 2 de fevereiro. Intitulado O Mar de Iemanjá, o especial foi concebido pelo jornalista Paulo Oliveira, que foi secretário de redação de A Tarde por dez anos.

A ideia central do projeto era apostar em linguagem com predominância gráfica (fotografias e infográficos) destacando aspectos relacionados ao culto de Iemanjá na cidade. Uma das reportagens (que foram realizadas por mim) trouxe em página dupla a caracterização de Iemanjá e Oxum mais próximas dos mitos de origem africana para se distanciar da imagem europeia que aparece em iconografias mais difundidas:

Figura 54: Arte sobre série “O Mar de Iemanjá”, A Tarde, 2/2/2007, p.6-7

Outros suplementos do jornal também investiram em especiais com temas relacionados à festa, como A Tardinha (voltado para crianças), o Caderno 2+ (especializado em linguagens artísticas) e a revista Muito (revista dominical). É a festa com sua dinâmica de transformação, incluindo e descartando elementos que expressam as novas configurações da cidade.

Com base na coleção de reportagens, podemos perceber como a festa foi se modificando ao longo das décadas do século passado. O orixá do candomblé passou a ser protagonista da celebração; a procissão marítima para entrega do presente hoje é restrita aos limites do bairro, e a festividade já incorpora representantes dos mais diversos segmentos sociais, inclusive os de maior poder aquisitivo, que frequentam as feijoadas dos hotéis cinco estrelas localizados nas proximidades da praia ou acompanham a procissão em lanchas e outras embarcações de luxo.

No entorno da comemoração tornaram-se mais comuns os eventos em ambientes fechados que são conhecidos como “festas de camisa”. Na edição de 2017, o Rio Vermelho abrigou festas variadas, atraindo, talvez, a média de público mais jovem no conjunto das festas de largo. Mais uma vez o evento parece passar por uma nova reformulação mantendo o núcleo central que é o presente para Iemanjá.