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Do dever de observância da boa-fé à mitigação dos danos

Deve-se inicialmente fazer referência à distinção assente na doutrina entre duas modalidades de boa-fé: a subjetiva ou de conhecimento e a objetiva ou de comportamento441. A primeira liga-se ao estado de ignorância do indivíduo quanto a estar praticando algum ato em desconformidade com a ordem jurídica. Está presente, sobretudo, nos direitos reais (v.g. tratamento diverso dado ao possuidor de boa-fé ou de má-fé) e na proteção à confiança gerada pela aparência (v.g. impossibilidade de opor cláusula restritiva à cessão ao cessionário de boa- fé)442.

A boa-fé objetiva, por sua vez, é a boa-fé de conduta. Impõe que o destinatário da norma aja de forma consentânea com aquela socialmente esperada de um homem probo. Determina a conduta leal, honesta e correta dadas as circunstâncias do caso443.

Assim Judith Martins-Costa distinguiu as duas modalidades de boa-fé:

A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que excusável, acerca da existência de uma situação irregular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da

441

Menezes Cordeiro defende, entretanto, que a noção de boa-fé é una, podendo ser vista sob dois prismas: o objetivo e o subjetivo. O objetivo estaria relacionado ao direito objetivo e, desta forma, fixaria qual é a conduta esperada do agente. Sob o prisma subjetivo da boa-fé, avaliar-se-ia se a parte agiu ou poderia ter agido de acordo com aquele padrão de conduta. Se está em estado de ignorância desculpável com relação à conduta esperada, está de boa-fé sob o prisma subjetivo. Se age de forma contrária à esperada, mas sabia qual era a conduta socialmente adequada ou deveria saber, está de má-fé sob o prisma subjetivo. Cf. MENEZES CORDEIRO. Da boa fé... op. cit. p. 512-513. MENEZES CORDEIRO, António. Direito das Obrigações. v. 1. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986. p. 125-127. No mesmo sentido: Mário Júlio de Almeida Costa. Cf. COSTA, Mário Júlio de Almeira. Direito das obrigações. 9. ed. rev. aum. Coimbra: Almedina, 2006. p. 102. A distinção entre duas “boas-fés” é, entretanto, corrente na doutrina, com base no desenvolvimento pela doutrina alemã a partir das expressões contidas gunter Glauben (boa-fé subjetiva) e da Treu und Glauben (boa-fé objetiva). SOARES, Renata Domingues Balbino Munhoz. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato: doutrina e jurisprudência. São Paulo: LTr, 2008. p. 83.

442

Cf. BETTI, Emilio. Teoria Generale delle Obbligazioni. v. 1. Milão: Giuffrè, 1953. p. 69. SOARES. A boa-fé ... op. cit. p. 80.

443

Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Deveres gerais de conduta nas obrigações civis. In: Questões controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005. p. 77. SOARES. A boa-fé ... op. cit. p. 82. COSTA. Direito... op. cit. p. 420.

ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.). (...)

Diversamente, ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do “alter”, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional. A boa-fé objetiva qualifica, pois, uma norma de comportamento leal.444

A boa-fé objetiva insere-se, claramente, como um conceito indeterminado e, dependendo da forma de sua utilização na norma jurídica, poderá se caracterizar como cláusula geral445. Desta forma, permite o diálogo com valores, princípios, padrões e arquétipos de condutas que não estão definidos na própria norma que a prevê ou no conteúdo semântico da boa-fé, mas em elementos que se situam além do dispositivo normativo em que se insere, estejam estes situados no próprio sistema jurídico ou fora dele. Em razão da abertura proporcionada pela vagueza semântica do termo, não se pode listar, a priori, todos os comportamentos que serão considerados em conformidade com a boa-fé. Cada conduta concreta deverá ser cotejada com o padrão de homem probo, com o ideal de lealdade e honestidade e com os valores perseguidos pela ordem jurídica em determinado contexto social e histórico446.

O recurso a esses valores é que faz com que a aplicação da boa-fé seja de caráter estritamente técnico-jurídico e não uma autorização para que o julgador aplique uma solução de cunho moral, em que prevaleça a sua opinião subjetiva sobre a conduta em questão447. Portanto, a boa-fé objetiva promove o reenvio a padrões e valores socialmente aceitos, os quais deverão pautar o julgamento do caso concreto, mas não a abertura para o arbítrio das convicções pessoais e morais de cada julgador448. Embora tenha mais discricionariedade do que na aplicação de conceitos com maior precisão semântica, o Juiz está vinculado pelo fato de ter que fundamentar sua decisão em valores, princípios, padrões e condutas socialmente

444

MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 411-412.

445

Cf. MENEZES CORDEIRO. Da boa fé..., op. cit. p. 1192. O autor cita dispositivos do Código Civil português em que a boa-fé tem o papel de conceito indeterminado e outros em que vem atrelada a uma cláusula geral.

446

Cf. LÔBO. Deveres... op. cit. p. 78. THEODORO JÚNIOR. O contrato... op. cit. p. 19.

447

Cf. THEODORO JÚNIOR. O contrato... op. cit. p. 135.

448

aceitos, os quais, inclusive, poderão ter sido identificados em julgamentos reiterados anteriores, dotando de maior concreção a norma que prescreve a observância da boa-fé objetiva449. Conforme destacou Clóvis do Couto e Silva:

A aplicação do princípio da boa-fé tem, porém, função harmonizadora, conciliando o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do direito do século passado com a vida e as exigências éticas atuais, abrindo, por assim dizer, no hortus conclusus do sistema do positivismo jurídico, “janelas para o ético”.

Nessa conciliação, a atividade do juiz exerce tarefa de importância.

Seu arbítrio, no entanto, na aplicação do princípio da boa-fé, não é subjetivo, pois que limitado pelos demais princípios jurídicos, os quais, igualmente, tem de aplicar.450

A Comissão que preparou o anteprojeto do que viria a ser o Código Civil de 2002 intencionalmente pretendeu caracterizá-lo como um sistema aberto, inserindo em seu texto normas que se valem de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais451. Essa abertura, segundo Miguel Reale, foi proporcionada pela adoção da operabilidade como princípio norteador da elaboração do anteprojeto452. Contribuiu para sua confecção, adicionalmente, o princípio da eticidade, a determinar a inserção, na nova legislação, de regras que exigissem a adoção de padrões éticos de condutas453.

Embora a Comissão tenha preferido manter a estrutura do Código Civil de 1916 e, tanto quanto possível, a redação de seus dispositivos454, a orientação de pautar os trabalhos pelo princípio da operabilidade promoveu mudanças pequenas de texto, mas significativas de conteúdo. Na redação do Código Civil anterior, Clóvis Beviláqua havia intencionalmente evitado utilizar a boa-fé em qualquer concepção que não fosse a subjetiva, pois tinha como finalidade dotar o Brasil de uma legislação civil segura e completa, dotada de normas claras e precisas455. É de se reconhecer que, apesar da sua ausência como texto constante do Código

449

Cf. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 331. COSTA. Direito... op. cit. p. 104.

450

COUTO E SILVA. A obrigação... op. cit. p. 42.

451

Sobre uma crítica ao modelo adotado, por entender que se fundamenta em paradigma ultrapassado: Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais, a. 89, v. 775, p. 11-17, maio 2000.

452

Cf. REALE, Miguel. O projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 12.

453

Cf. REALE. O projeto... op. cit. p. 7-8.

454

Cf. REALE. O projeto... op. cit. p. 85.

455

Cf. COUTO E SILVA. O princípio... op. cit. p. 62. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 259-267. Segundo a autora: “A pretensão da plenitude, a preocupação com a segurança, certeza e clareza (no sentido de precisão semântica) que marcam a obra de Beviláqua não permitiram espaço para a inserção de cláusulas gerais

anterior, a boa-fé objetiva era, mesmo na vigência daquele diploma, aceita como um princípio geral que norteava todo o direito privado, por obra da doutrina e da jurisprudência brasileiras do Século XX456. Entretanto, sua previsão expressa teve o efeito de promover a oxigenação do direito das obrigações e dos contratos, com o surgimento de novos estudos acerca das derivações dessa norma, bem como com seu emprego menos tímido por parte da jurisprudência. Assim, pode-se aplicar ao direito brasileiro a afirmação feita por Menezes Cordeiro a propósito do direito português: “as atuais exigências (...) têm conduzido a um crescente interesse pela boa-fé, apetrecho ideal para conseguir uma maior prossecução da justiça real, nos casos concretos.”457

A previsão da boa-fé objetiva em matéria contratual pelo Código Civil de 2002 veio em seu artigo 422, in verbis:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

De acordo com a distinção adotada no item anterior, trata-se de norma que contém cláusula geral, que atribui significativo poder ao julgador no momento de aplicá-la ao caso concreto458. O legislador utilizou intencionamente a vagueza semântica da expressão “boa-fé” de forma a deixar que o aplicador da norma cotejasse a conduta dos contratantes no caso concreto com padrões e valores intra e extra-sistemáticos, mas não definidos a priori na própria norma. Caso verifique que a conduta não está de acordo com a boa-fé, deverá talhar a solução para o caso. A norma inscrita no artigo 422 não traz, em si, a consequência para a hipótese de a parte contratante não ter agido de acordo com a boa-fé. Deverá o Juiz assim,

e, por isso, a boa-fé ficou restrita às hipóteses de ignorância excusável, em matéria de direito de família e no tratamento da proteção possessória.” (p. 267)

456

Cf. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 265. COUTO E SILVA. A obrigação... op. cit. p. 33. COUTO E SILVA. O princípio... op. cit. p. 62. O autor anota, entretanto, as dificuldades que a ausência de dispositivo legal que se referisse à boa-fé trazia para que os Juízes pudessem fundamentar suas decisões. João Baptista Villela anota que a boa-fé é um princípio amplamente disseminado e acolhido pelo direito privado de todos os ordenamentos jurídicos. Cf. VILLELA. Em busca... op. cit. p. 43.

457

MENEZES CORDEIRO. Direito... op. cit. p. 118.

458

Com base na redação do Projeto de Lei que viria a ser o Código Civil de 2002, Judith Martins-Costa reconheceu a natureza de cláusula geral a essa norma. Cf. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 351. Igualmente, com base no Código já promulgado, Paulo Luiz Netto Lôbo: Cf. LÔBO. Deveres... op. cit. p. 77. Comentando o §242 do Código Civil alemão e o artigo 762°, 2, do Código Civil português, que têm estruturas semelhantes ao artigo 422 do Código Civil brasileiro, Menezes Cordeiro também lhes reconhece a característica de cláusula geral. Cf. MENEZES CORDEIRO. Da boa fé..., op. cit. p. 1192.

dentre os vários expedientes existentes no ordenamento jurídico, escolher aquele que melhor se ajusta à finalidade de assegurar observância da boa-fé459.

Para dar a solução ao caso, diante da norma que contenha uma cláusula geral, deverá o Juiz se valer de várias referências, desenvolvendo raciocínio descrito da seguinte forma por Martins-Costa:

A escolha do conteúdo que há de ser conferido à norma que caracteriza cláusula geral, não estando indicado no texto legislativo, implica ponderações e valorizações que se reportam a um âmbito de referência tecido por variadas escalas: os precedentes, a história institucional, as opiniões consolidadas doutrinariamente, os usos e costumes do tráfego jurídico, as soluções advindas do direito comparado. Os precedentes, de modo especial, têm a relevantíssima função de fixar, embora de maneira não rígida, o concreto desenho dos valores aos quais reenviam as cláusulas gerais, possibilitando a solução do caso. (...)

A resposta à determinação de qual dessas conseqüências se configurará concretamente não será encontrada, contudo, mediante uma relação de identidade, como ocorre nos casos sujeitos à subsunção, mas através de relações de semelhança, ou com casos figurados na realização jurisprudencial precedente, ou indicados pela

communis opinio, assim entendido o que vem sendo consagrado através de processos,

lentos, mas contínuos, da elaboração do direito. Daí surge a questão da argumentação

através do exemplo, a qual não tem natureza propriamente lógica, mas quase-lógica.

A resposta, enfim, foi alcançada topicamente, atuando a boa-fé como topos que possibilitou a solução do problema. Ao mesmo tempo, a resposta, finalmente dada, passará a integrar, então, a experiência jurídica, por forma a alargar os contornos do sistema. É nesse sentido que se afirma que as cláusulas gerais têm função

ressistematizadora. (...)

O juiz desenvolve, mais propriamente, um pensamento pragmático, operando mediações entre as relações de finalidade da norma e suas diversas implicações, considerando a que se apresenta como a mais convincente.”460

Desta forma, a boa-fé tem função integradora do direito das obrigações, ao exigir que as partes – credor e devedor – ajam de forma considerada correta no meio social em determinado tempo. Conforme Clóvis do Couto e Silva, “a boa-fé enriquece o conteúdo da obrigação de modo que a prestação não deve apenas satisfazer os deveres expressos”461. Deverá o aplicador realizar avaliação objetiva da conduta, cotejando o comportamento concretamente adotado com aquele socialmente tido como o esperado do homem probo462. A aplicação da boa-fé ao direito das obrigações permitiu a percepção da relação obrigacional

459

Cf. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 368.

460

MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 368-369; 371-372. Itálicos no original.

461

COUTO E SILVA. O princípio... op. cit. p. 68.

462

como um processo, como uma totalidade orgânica orientada pela ordem de cooperação.463. Nos dizeres de Mário Júlio de Almeida Costa:

[N]uma compreensão globalizante da relação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como

deveres secundários –, os deveres laterais, além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas jurídicas, etc. Todos os referidos elementos se coligam

em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de caráter unitário e funcional: a relação obrigacional complexa, ainda designada

relação obrigacional em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”464. Portanto, a relação obrigacional não é modernamente vista apenas como vínculo pontual que liga credor e devedor, tendo como único elemento relevante a prestação, isto é, a atividade a ser realizada pelo devedor no interesse do credor. A compreensão moderna do direito obrigacional identifica-a como organismo ou processo dirigido à satisfação do credor, mas que não se exaure na prestação465. A relação obrigacional envolve também os chamados deveres secundários ou acidentais da prestação e os deveres laterais. Os últimos, segundo Almeida Costa:

são derivados de uma cláusula contratual, de dispositivo de lei “ad hoc” ou do princípio da boa-fé. Esses deveres já não interessam directamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais, antes ao exacto processamento da relação obrigacional, ou, dizendo de outra maneira, à exacta satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa.466

Segundo Couto e Silva, esses deveres são chamados de secundários, anexos ou instrumentais467 e abrangem toda a relação jurídica, podendo “ser examinados durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal”468.

Paulo Luiz Netto Lôbo adota a denominação deveres gerais de conduta, destacando que estes não se caracterizam como acessórios ou derivados da relação obrigacional. Segundo o autor, os deveres de conduta estão acima da relação obrigacional ou do dever de seu adimplemento e decorrem diretamente dos princípios normativos, dentre os quais a boa-fé

463

Cf. COUTO E SILVA. A obrigação... op. cit. p. 19.

464

COSTA. Direito... op. cit. p. 63. Itálicos no original.

465

Cf. COUTO E SILVA. A obrigação... op. cit. p. 20. COSTA. Direito... op cit. p. 64.

466

COSTA. Direito... op cit. p. 66.

467

Cf. COUTO E SILVA. A obrigação... op. cit. p. 91.

468

objetiva. Os deveres de conduta se irradiam sobre a relação obrigacional e seus efeitos, impondo-lhe limites e fixando a sua forma de acordo com os princípios e valores socialmente vigentes e reconhecidos pelo ordenamento jurídico em certo momento histórico469. O autor destaca, ainda, que os deveres gerais de conduta “se impõem tanto ao devedor quanto ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros”470.

A partir do núcleo ideativo da boa-fé objetiva como norma da conduta leal, honesta e correta que seria de se esperar do homem probo, a doutrina é fértil na tentativa de identificar o rol de deveres gerais de conduta ou deveres anexos que dela decorrem471, sendo despiciendo listá-las para o escopo do presente trabalho. Importa, entretanto, destacar o dever de cooperação que permitiu até mesmo que fosse repensada a natureza do vínculo obrigacional. Com efeito, como destaca Lôbo:

Tradicionalmente, a obrigação, especialmente o contrato, foi considerada a composição de interesses antagônicos, do credor de um lado, do devedor de outro. (...) Tal esquema era adequado ao individualismo liberal, mas é inteiramente inapropriado à realização do princípio constitucional da solidariedade, sob o qual a obrigação é tomada como um todo dinâmico, processual, e não apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe aos terceiros, como vimos na tutela externa do crédito. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das condutas positivas que facilitem a prestação do devedor.472

É importante notar que Emilio Betti já identificava a cooperação como núcleo da relação obrigacional, identificando-a como tema central do primeiro volume de sua obra sobre o tema473. Entretanto, esta é vista como pressuposto para a existência da obrigação, a partir de uma perspectiva de satisfação dos interesses do credor. Em outros termos, o autor aborda a cooperação como fundamento para que o devedor tenha que realizar a prestação em favor do credor. A obrigação é, então, vista como o meio técnico de que dispõe o credor para assegurar a cooperação do devedor para seus interesses.

469

Cf. LÔBO. Deveres... op. cit. p. 77.

470

LÔBO. Deveres... op. cit. p. 76-77.

471

Cf. LÔBO. Deveres... op. cit. MARTINS-COSTA. A boa-fé... op. cit. p. 437-472. SOARES. A boa-fé... op. cit. p. 114-129. GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 163-166. SAMPAIO, Laerte Marrone de Castro. A boa-fé objetiva na relação contratual. Barueri: Manole, 2004. p. 53-75.

472

LÔBO. Deveres... op. cit. p. 93.

473

Não há propriamente equívoco na visão tradicional da relação obrigacional. Efetivamente, o devedor fica adstrito a realizar a prestação para satisfazer os interesses do credor, o que é válido tanto sob a perspectiva de obrigação como vínculo quanto sob a mais moderna abordagem que a vê como processo. Assim, mesmo sob essa última, poder-se-ia enxergá-la como “um sistema, organismo ou processo, encadeado e desdobrado em direcção ao adimplemento, à satisfação do interesse do credor”474.

No entanto, pode-se olhar a relação obrigacional, notadamente a de natureza contratual, de maneira mais completa como forma de realização de um projeto comum entre as duas partes. No complexo de obrigações derivadas de um contrato, uma parte será, em algumas, devedora e, em outras, credora. Conforme raciocínio exposado no item 3.4 acima, um indivíduo que pretende desenvolver um projeto irá avaliar a conveniência de realizá-lo sozinho ou com a cooperação de outra pessoa. Optando pela segunda hipótese, convidará aquela pessoa a se integrar ao projeto. Se essa assim desejar, ou seja, se também tiver interesse em desenvolver aquele projeto de forma conjunta com outrem, manifestará seu consentimento. As duas partes estarão vinculadas por um contrato, do qual derivará um complexo de obrigações. A mesma cooperação que norteou o encontro das partes, as tratativas entre elas e o consentimento de cada uma delas para formalizar o contrato deverá