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A teoria do inadimplemento eficiente

Como a mitigação terá lugar a partir do inadimplemento contratual, cabe inicialmente perquirir a explicação dada pela economia para o descumprimento de um contrato.

Ressalvadas trocas à vista, um contrato servirá para alocar riscos entre as partes316. Cada uma das partes reconhecerá os custos e riscos da sua prestação e a precificará, ou seja, exigirá uma contraprestação suficiente para arcar com tais custos e riscos, além de algo a mais, que representa sua lucratividade. O preço do contrato, então, será fixado tendo em vista as expectativas das partes para o futuro. No entanto, essas expectativas tendem a não se confirmar completamente na realidade, pois as partes não conseguem prever todas as contingências e estabelecer em seus contratos regras para tratá-las317. À medida que o tempo

314

Cf. POSNER. Economic... op. cit. p. 16.

315

FONSECA, Rodrigo Garcia. A função social do contrato e o alcance do artigo 421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 241.

316

Cf. POSNER. Economic... op. cit. p. 104-105.

317

A previsão de todas as contigências é impossível por dois motivos: racionalidade limitada (bounded rationality) e custos de transação. O primeiro representa a falta de conhecimento das partes sobre todas as contingências que podem ocorrer no futuro. A racionalidade humana é limitada e não consegue alcançar, por mais experiente que a pessoa seja no ramo em que está atuando ao contratar, todos os riscos e possibilidades envolvidos com aquele contrato. O segundo motivo indica que, mesmo que algumas contingências tenham sido previstas, as partes preferem não tratar delas, pois o custo para prever qual seriam as possíveis soluções para contingência, negociar uma delas e redigi-la em um contrato podem superar a perda gerada por aquela contingência, vezes a probabilidade de ela ocorrer. Cf. MEDINA, Barak. Renegotiation, ‘efficient breach’ and adjustment: the choice of remedy for breach of contract as a choice of a contract-modification theory. In: COHEN, Nili, MCKENDRICK, Ewan (ed.). Comparative remedies for breach of contract. Oxford, Portland: Hart, 2005. p. 52-53. COOTER, ULEN. Law... op. cit. p. 220. ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007. p. 148.

passa e se aproxima da data de cumprimento da obrigação, as partes obtêm mais informações sobre suas respectivas prestações e as reavaliam318.

No momento anterior ao cumprimento, uma das partes pode ter avaliado que o cumprimento da prestação devida resulta em prejuízo. Esse fato, por si só, não faz com que descumpra o contrato. Afinal, se o fizer, estará sujeita às sanções legais (indenização, execução específica, multa contratual) e extralegais (impossilidade de negociar com a outra parte novamente, perda de reputação no mercado). Portanto, uma parte pode decidir entregar a prestação devida, mesmo com perdas, pois os prejuízos de descumprir o contrato seriam ainda maiores.

No entanto, em certas situações, a melhor opção disponível para o devedor poderá ser descumprir o contrato. Isso ocorrerá sempre que os custos com o cumprimento superarem os custos com as consequências do inadimplemento, aí incluídos aqueles relativos às consequências legais e extralegais. Segundo Posner, o descumprimento poderá ocorrer por motivos oportunistas ou por outros motivos, que, por sua vez, poderão ser eficientes ou não319.

O inadimplemento será eficiente se o custo de cumprimento para o devedor for maior que o benefício que o credor obtém do contrato. Nessa hipótese, o devedor poderá descumprir o contrato, reparar os danos sofridos pelo credor entregando-lhe a totalidade dos benefícios que receberia e, ainda assim, ficar melhor do que se cumprisse o contrato320. Com o inadimplemento, o devedor fica melhor e o credor não fica pior do que se o contrato fosse adimplido, atendendo ao critério de eficiência de Pareto e de Kaldor-Hicks321.

Tome-se, a título de ilustração, o caso hipotético formulado por Scalise Júnior, com algumas adaptações322. A pessoa X foi contratada para fabricar e vender para Y 100 unidades de uma peça, ao preço unitário de $2. O custo de fabricação é $1 e, portanto, o lucro de X para cumprir o contrato é $100. Y usará essas peças em um equipamento, cujo uso lhe renderá

318

Cf. GOETZ, SCOTT. Mitigation principle..., op. cit. p. 972.

319

Cf. POSNER. Economic... op. cit. p. 108-109.

320

Cf. ARAÚJO. Teoria... op. cit. p. 735.

321

Cf. COOTER, ULEN. Law... op. cit. p. 209. COLLINS, Hugh. The law... op. cit. p. 368.

322

Cf. SCALISE JR., Ronald J. Why no “efficient breach” in the civil law? A comparative assessment of the doctrine of efficient breach of contract. American Journal of Comparative Law. Ann Arbor, v. 55, p. 721-766, 2007. p. 723.

$50. Depois de celebrado o contrato, W entra em contato com X e lhe pede 100 unidades de tal peça, oferecendo pagar o preço unitário de $3. X não consegue atender os dois pedidos simultaneamente. Pela teoria do inadimplemento eficiente, X deve descumprir o seu contrato com Y e vender as peças para W. Desta forma, ela vende as 100 unidades por $300, incorre em $100 para fabricá-las e paga a Y o benefício que obteria, ou seja, $50. X tem, então, $150 de lucro e se cumprisse o contrato teria $100. Está, portanto, melhor com o inadimplemento que com o cumprimento do contrato. Y receberia $50 de lucro se pudesse usar as peças, mas, em compensação, receberá $50 de indenização, ficando assim na mesma situação em que ficaria se o contrato fosse cumprido. Portanto, se comparado ao cumprimento do contrato, o inadimplemento gera uma eficiência de $50.

A situação de inadimplemento eficiente pode ser analisada também por uma muito simples aplicação da teoria dos jogos323. Para tanto, adotar-se-á a seguinte ilustração: A, que presta serviços educacionais, contrata B para realizar a impressão de 1.000 apostilas. O preço contratado é $10 por apostila e o custo é $7. No entanto, antes da entrega, o equipamento de B estraga, sendo possível ser consertado a tempo de cumprir o contrato, mas ao custo de $8.000. B já estava planejando a substituição do equipamento por um novo e mais moderno, mas este não chegaria antes do prazo de entrega das apostilas para A. Se B descumprir, A terá que contratar uma outra gráfica que, pelo menor tempo disponível, cobrará $11 por apostila. Essa situação pode ser analisada pela seguinte tabela de resultados:

B Cumprir ao custo normal Cumprir depois do defeito Não cumprir Contratar 3.000 -5.000 -1.000 1.000 1.000 1.000 Não contratar 0 0 0 A 0 0 0

Essa matriz indica que A tinha duas opções inicialmente: contratar ou não contratar B. Se não contratasse, não seria gerado valor para nenhuma das partes; por isso, essa linha está preenchida por zeros.

323

A teoria dos jogos procura identificar qual o processo de decisão de uma pessoa quando sua ação depende das opções que forem adotadas pela outra pessoa. A teoria dos jogos lida, portanto, com as estratégias racionais adotadas pelos indivíduos diante de certas situações, que equivalem a “jogos”. Cf. COOTER, ULEN. Law... op. cit. p. 38-42, 210-212. BAIRD, Douglas G., GERTNER, Robert H., PICKER Randal C. Game theory and the law. Cambridge: Harvard University Press, 1994. PINHEIRO, SADDI. Direito... op. cit. p 157-200.

Se A contrata, a matriz indica os benefícios ou prejuízos suportados pelas partes diante das três opções disponíveis para B. A terceira coluna (“cumprir ao custo normal”) representa o que as partes obteriam de benefício com o contrato se não tivesse havido o defeito do equipamento e ele fosse cumprido conforme planejado. B obtém $3.000, que é o lucro de produzir aquela quantidade de apostila. A obtém $1.000, que é a diferença entre obter as apostilas de B e obtê-las de outra gráfica. A soma dos dois valores mede a eficiência geral da transação, que é de $4.000. A quarta coluna representa os benefícios/prejuízos das partes se o contrato for cumprido, o que exigirá o conserto do equipamento. B tem um prejuízo de $5.000, pois recebe $10.000 pelas apostilas, mas tem que pagar $8.000 de manutenção da máquina e $7.000 de custos da produção. A continua com o mesmo benefício de $1.000, pois recebe as mesmas apostilas que valem $11.000, pagando o preço de $10.000. Se o contrato é descumprido, B tem um prejuízo de $1.000, representado pela indenização que terá que pagar a A. A continua com o mesmo benefício de $1.000, podendo contratar a impressão das apostilas por $11.000.

A matriz demonstra que cumprir o contrato conforme havia sido planejado pelas partes gera uma eficiência de $4.000 e é vantajoso para ambas as partes. Por outro lado, cumpri-lo com a contingência surgida (defeito no equipamento), gera uma ineficiência de $4.000 (soma do prejuízo para B com o ganho para A). Descumpri-lo é neutro em termos de eficiência, pois a soma será zero.

A comparação desses valores permite concluir que, em condições normais, B provavelmente não descumprirá o contrato, pois o ganho no cumprimento é maior que no descumprimento. Diante da contingência, B terá um grande estímulo em descumprir o contrato, porque evitará uma perda de $5.000 com um prejuízo de $1.000. Observa-se que o descumprimento gera uma eficiência global para as duas partes, que será igual a zero, maior do que o cumprimento, que será igual a -$4.000. O descumprimento, assim, não é apenas melhor para B, mas é mais eficiente socialmente. É possível constatar, ainda, que a opção de B não interfere na decisão de A contratar ou não, pois, qualquer que seja a escolha de B, A recebe o mesmo valor ($1.000) se contratar e um valor menor ($0) se não contratar.

A partir da constatação de que existem inadimplementos que são eficientes, juristas, sobretudo norte-americanos, passaram a defender que o direito não deveria criar mecanismos que barrem a possibilidade de uma das partes descumprir o contrato se tal inadimplemento é

eficiente324. Conforme visto no item 2.1 acima, essa é a explicação econômica que se dá para a common law preferir conceder à parte prejudicada pelo inadimplemento uma indenização pelas perdas e danos do que execução específica da obrigação. No exemplo da venda das peças, se fosse fixada, por exemplo, uma astreinte para que X entregasse as 100 peças para Y, o direito determinaria uma solução que não é a mais eficiente. Da mesma forma, no caso da gráfica, a execução específica determinaria que um contrato fosse cumprido com uma ineficiência de $4.000, quando o inadimplemento poderia ter sido neutro sob o ponto de vista de eficiência.

A teoria do inadimplemento eficiente parte do pressuposto que o credor pode obter, como indenização, todo o benefício que teria do contrato. Essa presunção, embora correta do ponto de vista teórico325, não se verifica na prática, pois a mensuração das perdas e danos não é perfeita. Retomando os exemplos acima, no caso da venda das peças, provavelmente será de difícil determinação os lucros que o credor Y teria ao utilizar seu equipamento. Além de grandes possibilidades de erro nessa determinação, Y incorrerá em custos elevados para demonstrar seu prejuízo e o julgador terá também custos significativos para determinar a indenização correta. No caso da gráfica, em que há uma prestação substituta idêntica no mercado, a apuração das perdas e danos é mais simples, disponível a baixos custos, sendo pouco provável a ocorrência de erro. Em razão da dificuldade de se mensurar os prejuízos sofridos pelo credor em certos casos, pode ser que o credor receba uma indenização menor ou maior que os danos efetivamente sofridos. Por isso, assim observaram Cooter e Ulen:

Em geral, a melhor medida de perdas e danos gera um nível eficiente de comprometimento do devedor, enquanto a medida errada de perdas e danos cria um nível ineficiente de comprometimento. Perdas e danos abaixo do melhor nível fazem com que o devedor descumpra o contrato com muita freqüência, o que faz com que o credor se torne relutante em contratar. Perdas e danos acima do melhor nível fazem com que o devedor cumpra quando é muito oneroso, o que faz com que ele se torne relutante em contratar.326

Assim, a aceitação da teoria do inadimplemento eficiente não é irrestrita, havendo críticas em razão dos altos custos em se determinar as perdas e danos e do inexorável erro em

324

Cf. COLLINS, Hugh. The law... op. cit. p. 368. POSNER. Economic... op. cit. p. 109. BIRMINGHAM, Robert L. Breach of contract, damage measures, and economic efficiency. Rutgers Law Review. Newark, v. 24, p. 273-292, 1969-1970. p. 284.

325

Seja nos países de common law, em que a regra geral para definição da indenização é pelos danos de expectativa, cf. item 2.1, ou nos países de civil law, em que vige o princípio da reparação integral do dano, que abrange os danos emergentes e os lucros cessantes.

326

sua determinação para várias situações. Além disso, a teoria não é suficiente para explicar porque o mesmo critério não deve ser usado para inadimplementos que, apesar de originados de oportunismo, sejam eficientes327.

Além disso, a teoria se fundamenta no chamado princípio da indiferença, que reza que, para o credor, não há diferença entre receber a prestação devida e a indenização, desde que essa permita a completa recuperação das perdas e danos. No entanto, é de se reconhecer que o credor pode ter um interesse subjetivo na prestação e não ser indiferente entre perdas e danos e prestação in natura328.

Portanto, o favorecimento do inadimplemento eficiente privilegia a maximização da eficiência, mas faz com que se torne mais frequente o descumprimento contratual. Outros valores de um sistema jurídico – e.g. maior garantia à palavra dada, proteção dos interesses sujetivos dos credores – podem, entretanto, determinar que não seja adotada uma política de favorecer inadimplementos eficientes329.

No entanto, a teoria do inadimplemento eficiente fornece informações interessantes sobre o comportamento das partes ao decidir a respeito de cumprir ou descumprir o contrato, o que será útil para a avaliação dos impactos gerados pela adoção da evitabilidade em determinado sistema jurídico.