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Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado de Direito Liberal

3.2 Os fundamentos do dever de pagar tributos no Estado Fiscal de Direito

3.2.1 Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado de Direito Liberal

consolidação, finalmente, do Estado Liberal encontraram respaldo nas doutrinas do contratualismo social.

No pensamento liberal contratualista, estabeleceu-se a relação entre indivíduo e Estado como necessária, porém antinômica. Na sociedade pré-estatal, estariam os indivíduos

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CARDOSO, 2014, p. 70-71.

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Deve-se ressaltar que, já onde se identificou a prática do Despotismo Esclarecido (conformação ainda não propriamente desvinculada do Estado Absolutista), obtiveram êxito algumas ideias liberais e, consequentemente, a implementação de algumas das características do Estado de Direito.

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MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Tradução da edição portuguesa. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72.

sujeitos à liberdade ilimitada, plena. Nesse contexto, as ações humanas, impregnadas de uma liberdade primitiva, careceriam de organização ou, ao menos, de melhor organização. Assim, a figura do Estado, uma conformação antagônica aos indivíduos, deveria surgir justamente para, limitando-lhes a liberdade sem freios, garantir-lhes o desfrute dos direitos naturais.43

Essa limitação institucionalizada pelo Estado, entretanto, não o colocaria acima dos indivíduos, mas a serviço destes. A organização da liberdade no campo social seria um fato posterior ao indivíduo pré-estatal, e, portanto, nasceria não apenas do consentimento de todos que a ela submeter-se-iam como em função da proteção dos direitos naturais dos homens. Em nenhum momento, o pressuposto da proteção jusnaturalista deveria ser confundido com a possibilidade de violarem-se as prerrogativas inatas do indivíduo; a base para a limitação seria o consentimento, nunca a autoridade.

Destarte, o Estado seria uma manifestação consentida pelo indivíduo com o propósito de organizar-lhe a melhor conformação social e defender-lhe os direitos inerentes à condição de homem, nem que para isso fosse imprescindível limitar-lhe a liberdade primitiva. A atuação limitadora do Estado, contudo, encontraria limites no conteúdo dos próprios direitos naturais. O contrato social estaria assinado para traçar limites às liberdades dos homens e à própria atividade estatal. Falhando quanto aos seus objetivos, como fruto de uma criação mecânica dos indivíduos, sua existência seria perfeitamente revogável (ou seja, o convívio em sociedade seria consentido, e não um elemento orgânico ou instintivo do homem).44

O entendimento da autolimitação da liberdade como ônus necessário ao funcionamento do contrato social também repercutiu no sistema tributário. Se a criação do Estado seria derivada do consentimento dos indivíduos, os tributos por ele estabelecidos também o seriam. A imposição tributária opressiva, arbitrada conforme mandos e desmandos do despotismo, respaldada pela suposta delegação divina que o monarca haveria recebido, encontrou, no Estado Liberal, o seu fim.

É nesse sentido a argumentação de John Locke:

Verdade é que os governos não podem sustentar-se sem grande dispêndio, sendo natural que todos quantos gozam de uma parcela de proteção paguem do que possuem a proporção necessária para mantê-lo. Todavia, será ainda com o seu

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BONAVIDES, 2013, p. 40.

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próprio consentimento, isto é – o consentimento da maioria, dado diretamente ou por intermédio dos seus representantes. Se alguém pretender possuir o poder de lançar impostos sobre o povo, pela autoridade própria sem estar por ele autorizado, invadirá a lei fundamental da propriedade e subverterá o objetivo do governo; por que qual a propriedade que terei naquilo que outrem tiver o direito de tomar para si quando lhe aprouver? 45

O pensamento exposto do contratualista inglês suscita a investigação da propriedade no Estado Liberal. Neste, a propriedade é concebida como um dos direitos naturais do indivíduo, anterior ao surgimento do Estado, e alçado ao patamar de, juntamente com os direitos à igualdade, liberdade e vida, prerrogativa fundamental. Portanto, a limitação ao direito natural de propriedade passou a submeter-se ao critério da menor intervenção necessária.

A tributação, como ferramenta limitadora do direito inato de propriedade, por exigir coercitivamente dos cidadãos contribuições para o financiamento das atividades estatais, dever-se-ia limitar, estritamente, à cobrança do que fosse necessário para o patrocínio dessas mínimas, porém essenciais, atividades. Qualquer desvio na motivação da cobrança corresponderia, equivocadamente, não mais ao consentimento dos indivíduos, mas ao interesse de poucos violadores do contrato social. É o magistério de Alessandro Mendes Cardoso ao referir-se à doutrina liberal sobre a tributação:

Entre os direitos que são naturalmente inerentes ao homem sobressai o de propriedade. Não se aceitam mais entraves arbitrários ao seu exercício, e a exigência de contribuições ao poder estatal é limitada, estando vinculada ao prévio consentimento e sendo devida por todos, excluídos os benefícios advindos de privilégios de nascimento ou classe social. O tributo é uma limitação ao direito de propriedade, cuja validade está em sua justificação e na forma como são aplicados os recursos públicos. Sua validade é decorrente do próprio contrato social, em que os indivíduos abrem mão de uma parcela de sua liberdade em favor do Estado, mas não de uma organização que seja um fim em si mesmo e que esteja a serviço do interesse de poucos. O Estado detém a legitimidade tributária à medida que se enquadra em suas funções inerentes de garantia e segurança dos direitos de liberdade.46

A construção do Estado de Direito Liberal, conforme anteriormente anotado, consagrou a fórmula da estadualidade fiscal. A doutrina liberal da oposição entre indivíduo e ente estatal, com a consagração dos direitos à propriedade e à liberdade, coincidiu com a separação institucional entre economia e Estado no Estado Fiscal. Se, por um lado, aos indivíduos deveriam ser garantidos os direito à apropriação privada dos meios de produção e à

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LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. In: Locke. Coleção Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 89-90.

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liberdade de iniciativa no meio econômico, por outro, o Estado, para além de outras funções básicas, deveria dispor de recursos para assegurar tais direitos, e a solução compatível com o ideário contratualista para a obtenção desses recursos era a tributação, a qual, por meio da limitação consentida do direito de propriedade, consistiria na principal fonte para o abastecimento das receitas públicas.

Dessa forma, o fundamento do dever de pagar tributos tornou-se o ônus, consentido pelos indivíduos e respaldado pelo contrato social, da autolimitação necessária do direito à propriedade para o financiamento das atividades do Estado. Sem esse preço, não haveria meios para, primeiramente, patrocinar as atividades mínimas atribuídas ao Estado no Estado de Direito Liberal; em segundo lugar, para afastar o Estado da economia, que seria uma responsabilidade dos indivíduos no exercício de suas liberdades.

A atribuição de atividades mínimas ao Estado consubstanciou uma das características mais expressivas do Estado Liberal: a defesa de um Estado Mínimo.

Malgrado perscrutar as diferentes concepções da doutrina liberal a respeito da configuração devida ou indevida do Estado Mínimo fuja ao objetivo deste trabalho,47 pode-se resumir, em apertada síntese, na generalidade dos casos, consistirem os objetivos do Estado Mínimo Liberal nas tarefas da defesa dos cidadãos contra ameaças externas, do provimento da segurança interna e da justiça necessária ao cumprimento das leis e da destinação de gastos públicos necessários à criação de condições favoráveis ao comércio.4849

Esses objetivos sintetizaram a preocupação liberal com a paz, os tributos módicos e uma administração eficiente da justiça. Qualquer atividade estatal fundada em demais preocupações não apenas não encontraria justificativa para o financiamento por meio da

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Para uma análise não somente das divergentes interpretações liberais dos objetivos e limites do Estado Mínimo como das diferentes fases do próprio pensamento jurídico-econômico no Estado Liberal: FALCÃO, Raimundo Bezerra. Direito Econômico (teoria fundamental). São Paulo: Malheiros, 2013, p. 25-40.

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CARDOSO, 2014, p. 80.

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George Marmelstein Lima, ao discorrer sobre a incoerência da divisão de direitos fundamentais em gerações, critica a doutrina que atribui aos “direitos de primeira geração” (da qual fariam parte os direitos consagrados pelo Estado Liberal) à característica da menor onerosidade. Para o autor, muitas vezes, proteger os direitos da primeira geração é, consideravelmente, mais dispendioso do que resguardar direitos sociais. Os volumosos gastos com segurança pública, para a proteção da propriedade privada, são exemplo disso. LIMA, George Marmelstein. Críticas á Teoria das Gerações (ou mesmo dimensões) dos Direitos Fundamentais. In: Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Unichristus. Fortaleza, nº 3, ano 2, p. 171-182, 2004.1. No mesmo sentido, Stephen Holmes e Cass R. Sustein criticam a concepção dos direitos fundamentais clássicos como “negativos”, haja vista que, para os autores, todos têm custos consideráveis para o Estado. Todos os direitos seriam “positivos”. HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: WW Norton & Company, 2000, p. 35-48.

atividade da tributação como seria considerada excessivamente intervencionista, especialmente quando na seara econômica. No Estado Liberal, a mínima intervenção do ente estatal seria bastante para o desenvolvimento, que seria, no mais, consequência da evolução natural das coisas.50

A ocupação, no Estado de Direito Liberal, com a legitimidade, legalidade, igualdade e modicidade dos tributos determinou, para sempre, avanços nos sistemas tributários dos Estados ocidentais. Dentre eles, pode-se mencionar, como exemplos de conquistas liberais presentes nas constituições desses países até hoje, a consagração dos princípios da certeza, das faculdades (ou igualdade de faculdades) e da economicidade, que atualmente encontram repercussão, respectivamente, nos princípios da legalidade, da capacidade contributiva51 e da própria economicidade no campo do Direito Tributário. A preocupação do Liberalismo com a cobrança de tributos determinados por leis, a igualdade na aplicação lei tributária e a menor oneração possível dos contribuintes face os objetivos do Estado Mínimo não apenas caracterizaram o início de novos tempos como elementos constantes em todos os Estados de Direito – Liberais ou não.52

Se, por um lado, o Liberalismo determinou, de vez, o final do regime absolutista e suas estruturas antieconômicas, antijurídicas e antidemocráticas e estabeleceu incontáveis avanços para as sociedades de mais de dois séculos atrás, por outro, deu origem a uma nova conformação social em que o individualismo predominante trouxe opressão econômica e espoliação social daqueles que não participaram diretamente das conquistas burguesas.

A liberdade política trazida pelo Liberalismo somente foi acompanhada por sua faceta social para os economicamente abastados. A grande massa anônima de desprivilegiados economicamente, embora desfrutasse das prerrogativas políticas da cidadania no Estado Liberal, não encontrou condições de desenvolver-se socialmente, o que, à época, significava emancipação econômica, ou, se esta não fosse imediatamente possível, ao menos, obtenção de condições materiais de existência com dignidade.

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FALCÃO, 2013, p. 30.

51

Deve-se ressaltar que, no Estado Liberal clássico, o conteúdo do princípio equivalente ao da capacidade contributiva ainda é resumido à proporcionalidade, estritamente matemática, entre base de cálculo e alíquota. Dessa forma, os elementos da subjetividade e progressividade na aplicação da lei tributária, próprias do princípio da capacidade contributiva hoje formatado, ainda não estavam configurados. Nesse sentido: CARDOSO, 2013, p. 83.

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DERZI, Misabel. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 3.

O egoísmo individualista institucionalizado, com a valoração negativa dos grandes gastos públicos estatais, não deu margem à distribuição de renda e, com o combate a intervenção do Estado na economia e nas relações do comércio, viabilizou a exploração descomunal do trabalho nas cidades. Dessa forma, o Liberalismo não foi capaz de superar a estreiteza da liberação política e fornecer liberdade social ou em coletividade para as vastas camadas proletárias.53

Somados a esse cenário político e jurídico, eventos como as duas fases da Revolução Industrial, as Grandes Guerras Mundial, a Crise Econômica de 1929 e as Revoluções Socialistas na Europa Oriental traçaram o fim do Liberalismo clássico. Das mudanças realizadas para a resolução dos conflitos instaurados, deu-se origem a um novo modelo de organização de gastos públicos, a uma nova determinação para o conteúdo das leis e, no que é especificamente pertinente para este trabalho, a uma nova fundamentação para o dever de pagar tributos. Ergueram-se o Estado de Direito Social (ou Estado do Bem-Estar Social) e a justificativa da solidariedade na tributação.

3.2.2 Do fundamento do dever de pagar tributos no Estado de Direito Social