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As práticas de “Cultura cidadã” de Antanas Mockus foram um conjunto de programas e projetos adotados, em seus dois mandatos, orientado ao desenvolvimento – consciente – do comportamento cultural dos habitantes de Bogotá em termos de cidadania. Reformular a cultura cidadã dos bogotanos tornou-se prioridade em seus governos, e as principais ferramentas utilizadas para a promoção de mudança foram os métodos pedagógicos e de comunicação, por meio dos quais, paulatinamente, tomariam os habitantes da cidade consciência de seu papel na gestão política, econômica e social de Bogotá.99

Os programas e projetos de Cultura cidadã de Antanas Mockus eram reflexos de seus pensamentos – anteriores ao seu mandato como prefeito – acerca das relações entre lei, moral e cultura e o papel dos educadores na progressão das sociedades.

Para Mockus, existiriam três sistemas reguladores do comportamento humano: o legal, o moral e o cultural. Em apertada síntese, o sistema legal seria composto pelo conjunto de normas jurídicas vigentes e os mecanismos instituídos para a consecução de seu cumprimento. O sistema moral seria o agregado de juízos ou argumentos a respeito dos fatos e dos valores que formulariam as pessoas, particular ou intersubjetivamente, no âmbito de sua

autonomia individual ou “consciência”. Por fim, o sistema regulador cultural constituiria os

Para efeitos de comparação, em 2013, na cidade de Washington, capital dos Estados Unidos da América, a taxa registrada era de 34 homicídios para cada 100 mil habitantes. Nesse sentido: CAVALCANTE, Murilo. Bogotá fez o dever de casa. In: As lições de Bogotá e Medellín: do caos à referência mundial. Murilo Cavalcante (org.) Recife: INTG, 2013, p. 138.

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MARTÍN, 2013, p. 88.

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MOCKUS, op. cit. p. 1. Disponível em:

comportamentos aceitáveis ou reprováveis, independentemente dos sistemas legal ou moral, em determinado contexto social, comportamentos esses que seriam aprovados ou reprovados pelos indivíduos quando exercidos em público.100

Na maioria das sociedades contemporâneas, haveria um desencontro ou, como determinou Mockus, um divórcio entre os três sistemas regulatórios (precisamente, entre lei, moral e cultura). Esse divórcio daria origem a diversos problemas sociais de orientação de comportamentos e obtenção de resultados. Por exemplo, em sociedades onde houvesse desarmonia entre lei e cultura ou lei e moral, constatar-se-ia, em maior ou menor escala, o descumprimento das normas jurídicas por meio da reiteração de condutas ilícitas. Estas, entretanto, poderiam ser culturalmente aprovadas ou moralmente justificadas, dando origem a crises institucionais de ordem.101 Seria o caso, para o filósofo, também de Bogotá.

Nesse contexto, Mockus ressalta o papel determinante dos anfíbios culturais, os quais, desta forma, explica:

La metáfora del anfibio se relaciona en su origen con una corriente de investigaciones (liderada por Basil Bernstein en la Universidad de Londres) que ve en la educación un proceso social de circulación del conocimiento, processo que en buena parte determina tanto la fortaleza externa de una sociedad como su estructura interna. (...) En la "teoría de la recontextualización" de Basil Bernstein, se entiende la educación como un processo que toma conocimientos de manera selectiva y jerarquizada de un contexto para llevarlos a otro. Cada educador es um "recontextualizador" que sólo alcanza óptima calidad cuando, por una parte, es capaz de desempeñarse con solvencia em el eslabón del cual toma el conocimiento que difunde y, por otra, es sensible al contexto en el cual trabaja al escoger, ordenar y "traducir" el conocimiento que enseña. Sin buenos recontextualizadores el conocimiento no circula y sin uma sólida articulación a los processos mundiales de recontextualización, la generación de conocimiento científico y técnico es imposible o irrelevante.102

Para Antanas Mockus, os educadores seriam responsáveis, em toda sociedade, por realizar o intercâmbio de conhecimento entre diversos contextos distintos. A habilidade de captura, decodificação e apresentação de conhecimento, qualidade inerente à condição de educador, seria fundamental em seu papel de difusão de ideias, porquanto, ciente do conhecimento que mereceria (por seleção e hierarquização) ser propagado, restar-lhe-ia utilizar-se do método mais adequado para difundir-lhe no contexto de onde ele não veio, mas

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MOCKUS, Antanas. Anfibios culturales y divorcio entre ley, moral y cultura. Análisis Político, nº 21, janeiro-abril de 1994, p. 4.

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Seria o caso, por exemplo, de sociedades onde o consumo e o comércio de entorpecentes é legalmente proibido, contudo culturalmente reproduzido em larga escala ou moralmente justificável para os defensores da liberdade de escolha. Outro caso seria o do suborno de autoridades de trânsito, o qual, embora tipificado penalmente e sancionado moralmente, é praticado por diversos motoristas flagrados em testes de alcoometria.

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no qual deveria chegar. Desse modo, a circulação do melhor conhecimento dentro de uma sociedade plural seria viável.

No que diz respeito ao divórcio dos sistemas regulatórios, a função de anfíbio cultural do educador seria determinante para, na medida do possível, restabelecer as relações harmoniosas entre lei, moral e cultura.

Discusiones del planteamiento hecho llevan a entrever la posibilidad – incluso futura – de sociedades sin ley (basadas em una congruencia grande entre cultura y moral) o de sociedades sin moral (basadas en una congruencia grande entre Estado y cultura) al lado de sociedades que armonizan ley, moral y cultura. En las sociedades contemporáneas altamente diferenciadas, la triple regulación parece necesaria y el anfibio cultural puede contribuir a reducir, a evitar o a mantener dentro de ciertos límites el divorcio entre moral, cultura y ley. En las sociedades existentes se puede ver al anfibio cultural como un intensificador de la vida social que ayuda a explicitar las tensiones que introduce la diversidad cultural en esa triple regulación. De cualquier modo, en la medida en que el orden social depende notablemente de la regulación cultural de la acción, y creemos que es así pues la aprobación o el rechazo cultural son em general más eficaces para regular la acción que la ley o la moral, el papel del anfibio es crucial.103

Identificando os princípios a respaldar cada um dos três sistemas regulatórios e, por consequência, as tensões sociais provocadas pelas incompatibilidades entre eles, o anfíbio cultural seria responsável por promover o diálogo social e a consideração crítica da lei, moral e cultura. A argumentação promovida, por meio do intercâmbio didático de diversas fontes de conhecimento a respeito das particularidades de cada um dos sistemas de regulação do comportamento humano, reduziria as discrepâncias, identificando os fins comuns e o que seria, por sua vez, dispensável, entre os três sistemas regulatórios. A pluralidade de opiniões seria, em vez de combatida, investigada – a partir da agregação de conhecimento materializada pelo anfíbio cultural – em busca de objetivos semelhantes entre segmentos distintos. Dessa forma, independentemente do sistema regulatório predominante na orientação do comportamento de cada grupo, as mesmas leis seriam ferramentas para a consecução dos mesmos objetivos de pacificação da ordem social.

É como argumenta, anos mais tarde, Antanas Mockus:

La distinción entre los tres sistemas regulatorios, ley, moral y cultura, es el resultado de un processo histórico de diferenciación. Aún hoy en día, posiciones fundamentalistas reivindican la unidad, la identificación, entre los tres. Por el contrario la Modernidad, con su invitación a la autonomía moral del individuo y su énfasis en el Estado de derecho y sus garantías ha generado una marcada diferenciación y separación entre los tres. Mientras el ciudadano cumpla la ley, goza de una gran autonomía individual (moral) y mientras respeten el ordenamiento legal

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pueden convivir tradiciones culturales muy distintas. Es más, para Rawls, la solidez de las democracias contemporáneas depende del hecho de que tradiciones culturales apoyen por razones distintas unas mismas leyes.104

Na prefeitura, Antanas Mockus – educador por formação e, portanto, anfíbio cultural – assumiu o desafio de combater o divórcio entre lei, moral e cultura presente em Bogotá. Promovendo programas e projetos voltados à interação da sociedade civil, Mockus estabeleceu a via, em sua opinião, mais adequada dentre as três para a difusão de conhecimento e modificação consciente de comportamentos que as ferramentas constitucionais de gestão pública ofereciam-lhe: a regulação cultural dos comportamentos dos cidadãos, ou, em outras palavras, a Cultura ciudadana.

Para atingir o objetivo de modificação do comportamento cultural cidadão dos habitantes de Bogotá, Antanas Mockus investiu na difusão do conhecimento a partir da comunicação. Pressupondo a limitação que se instaurara na comunicação entre governantes e governados e entre governados e os próprios governados, o ex-reitor colombiano concentrou esforços, primeiramente, na promoção de interação social entre os cidadãos, de forma que estes pudessem, no espaço público, verificar in loco a relação pertinente entre direitos e deveres. O convívio social procurou ampliar a compreensão de que, para além das convicções morais particulares ou das leis impostas, os comportamentos intersubjetivamente aprovados ou reprovados pelos cidadãos estariam intrinsecamente ligados aos direitos e deveres possuídos por cada um.105 Nesse sentido, analisando o caso das placas com polegares distribuídas pela prefeitura mencionado anteriormente, por exemplo, o comportamento reproduzido da transgressão de normas de trânsito seria (e foi) também reprovado, culturalmente, a partir da manifestação negativa dos cidadãos em interação social no trânsito. O direito dos transeuntes de atravessarem as ruas em cima de faixas especiais para pedestres foi comunicado como correspondente ao dever-cidadão de respeitar os limites das faixas, o qual, quando não observado, foi culturalmente reprovado pela população por meio da utilização das placas.

Ademais, Antanas Mockus valeu-se dos observatórios de Cultura cidadã criados para formular e comunicar os resultados das medidas postas em prática pelo governo à sociedade civil. Se, por um lado, Estado e sociedade civil estabeleceram outro e eficiente

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MOCKUS, op. cit., p. 5. Disponível em:

<http://www.iadb.org/wmsfiles/products/publications/documents/362225.pdf>. Acesso em: 1º de maio de 2014.

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MOCKUS, op. cit., p. 5. Disponível em:

canal de comunicação para a avaliação das transformações sofridas pela cidade, por outro, os observatórios de Cultura cidadã valeram-se, principalmente, das próprias informações fornecidas pelos cidadãos a respeito dos fenômenos presenciados na cidade, para a informação de estatísticas e, posteriormente, elaboração de conclusões. Comunicou-se conhecimento do governo para governados e dos governados para o governo.

A partir deste ponto, é possível, finalmente, retomar-se o mérito do principal objeto de investigação deste excerto colombiano estudado: as relações entre o papel do anfíbio cultural, os sistemas regulatórios legal, moral e cultural, as ferramentas da comunicação e da pedagogia em políticas públicas, a política tributária do governo de Mockus e o fundamento do dever jurídico de pagar tributos no Estado Democrático de Direito.

4.2 Da Cultura cidadã e suas relações com o dever fundamental de pagar