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O Estado Fiscal e a separação fundamental entre Estado e economia

A República Federativa do Brasil, assim como outros Estados que assumem os valores do constitucionalismo democrático e as premissas do Estado de Direito, adota a ordem econômica do sistema capitalista. Malgrado não o faça expressamente, é certo que o Título

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BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 188.

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TORRES, Ricardo Lobo. A ideia de liberdade no estado patrimonial e no estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 88.

VII da Constituição Federal de 1988, ao determinar a ordem econômica e financeira do País,

consagra, em seu art. 170 do Capítulo I (“Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”), os

princípios da propriedade privada dos meios de produção, da livre iniciativa e concorrência e outros inequivocamente vinculados às diretrizes do que se pode chamar, grosso modo, de economia de mercado.

A adoção, a nível constitucional, da ordem econômica capitalista pelo Brasil e outros países não é refutada pela possibilidade de intervenção do Estado na economia ou de exploração direta por parte deste da própria atividade econômica. Tais competências estatais, institutos tão caros aos Estados do Bem-Estar Social (ou, em moldes exagerados, aos Estados Socialistas), são plenamente compatíveis com o sistema econômico em tela desde que limitadas, por meio do estabelecimento do critério da imprescindibilidade, à condição de exceção, não de regra, pelo ordenamento jurídico vigente.

Essa limitação, entretanto, que constitui, em outros e abrangentes termos, o afastamento do Estado da atividade econômica e garante, sem opressão, a liberdade de atuação na economia dos indivíduos, requer o pagamento de um preço: o da tributação.

A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização da economia.31 Embora se vá demonstrar adiante, pormenorizadamente, por que o tributo, para além de sua concepção basilar como decorrência da autolimitação da liberdade,32 não deve ser entendido como fruto de uma relação de poder do Estado ou exclusivamente como mero sacrifício para os cidadãos,33 compreendê-lo, inicialmente, como preço que se paga pela liberdade de iniciativa e concorrência, pela apropriação privada dos meios de produção e por outras notas características do sistema capitalista é acertado. Com o pagamento, o valor do tributo é transferido do indivíduo para o Estado para que este possa, primeiramente, atender à grande parte de suas necessidades financeiras – sendo o resultado da tributação a sua principal fonte de receita – e, dessa forma, condicionar sua atividade econômica à excepcionalidade.

31

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 24.

32

TORRES, 1991, p. 3.

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Nesse caso, quando se fala de um Estado cujo perfil da receita pública consiste, principalmente, nos ingressos derivados do trabalho e do patrimônio do contribuinte, está-se diante de um Estado Fiscal.34

Pode-se afirmar, com segurança, que o modelo do Estado Fiscal consagrou-se como regra no Estado moderno.35 Após a superação dos formatos do Estado Patrimonialista, em que a principal fonte de renda do Estado consistiu nos derivados do próprio patrimônio do príncipe (confundindo-se a fazenda deste com a pública), e o qual que perdurou do colapso do Feudalismo até o advento do Absolutismo Esclarecido, e do Estado de Polícia, em que imperou o sistema de economia mercantilista (impregnado de seus elementos intervencionistas), e o qual se desenvolveu até a consagração, de fato, da estrutura econômica capitalista e do liberalismo político e financeiro, o modelo de Estado Fiscal, com a tributação como principal fonte da receita pública, foi adotado, paulatinamente, pela maioria das nações.36

É verdade que há exceções. Os Estados Socialistas subsistentes, por exemplo, podem ser considerados predominantemente produtores, porquanto suas bases financeiras de rendimentos são constituídas, em maior parte, pelas atividades econômicas produtivas por eles monopolizadas ou hegemonizadas, limitando inclusive a incidência de tributos sobre atividades econômicas dos particulares devido à raridade do pressuposto. Outros Estados, como alguns árabes, Mônaco ou Macau, caracterizam-se como empresários, em virtude das volumosas receitas provenientes da exploração matérias-primas (petróleo, ouro, gás natural etc.) ou da concessão das atividades de jogos de azar, assim desobrigando, parcialmente, seus cidadãos do suporte financeiro da tributação.37

Como, entretanto, já ressaltado, a predominância do modelo do Estado Fiscal não é abalada pela existência de modelos produtores ou empresários e, na verdade, está relacionada tanto a Estados Liberais como a Sociais.

Não obstante se reserve maior atenção, quanto ao estudo das duas vertentes, à investigação sobre o Estado Democrático de Direito infra, é pertinente assegurar que o Estado Fiscal manteve-se uma realidade do advento do Estado Liberal (já configurado o Estado de 34 TORRES, 1991, p. 97. 35 NABAIS, 1998, p. 192. 36 TORRES, 1991, p. 13-14, 51-52 e 97. 37 NABAIS, 1998, p. 193.

Direito) à evolução para o Estado Social. Tanto a característica da tributação limitada pelo ideal de Estado Mínimo do primeiro quanto a expansão da atividade tributária, em virtude do crescimento dos gastos para manter a aparelhagem estatal e do objetivo de distribuição de renda, no segundo, são compatíveis com a nota caracterizadora do abastecimento dos cofres públicos com receitas provenientes principalmente dos tributos cobrados dos contribuintes.38

A questão, portanto, que se coloca é a de que a estadualidade fiscal consiste, essencialmente, na separação institucional entre Estado e economia por meio da ferramenta da cobrança dos impostos e de outras figuras tributárias, não no grau de intervencionismo econômico do ente estatal. Ao Estado reserva-se a preocupação permanente com a política, e à sociedade civil, as rédeas, em regra, da atividade econômica. Se o dualismo Estado e sociedade, conforme se argumentará posteriormente, não é fato superado pelo Estado Social, suas diferenças neste e no Estado Liberal são irrelevantes para a caracterização do Estado Fiscal, uma vez que o dualismo faz-se deste, na verdade, o próprio pressuposto.

É como pensa Casalta Nabais:

A “estadualidade fiscal” significa assim uma separação fundamental entre estado e economia e a consequente sustentação financeira daquele através da sua participação nas receitas da economia produtiva pela via do imposto. Só essa separação permite que o estado e a economia actuem segundo critérios próprios ou autónomos. O estado orienta-se pelo interesse geral ou comunitário na realização da justiça, critério que pode falhar uma vez que nem sempre o mesmo suficientemente claro (...). A economia, por seu turno, guia-se pelo critério do lucro, ou seja, pela existência de uma relação positiva entre proveitos ou benefícios, de um lado, e custos e perdas, de outro, lucro que não tem de ser o maior possível nem tem necessariamente de se verificar todos os anos econômicos, pois que ao empresário, para manter a viabilidade da sua empresa, é indispensável apenas que, ao menos a longo prazo, os ganhos compensem as perdas ou prejuízos acumulados, compensação que, a não se verificar, conduzirá inexoravelmente ao perecimento da empresa. Através deste mecanismo, o sistema económico orientado para o lucro apresenta-se muito mais produtivo do que o estado, já que a separação estado/economia lhe assegura a possibilidade de desencadear a sua própria produtividade.39

Evidente que a razão do sistema econômico renuncia, em sua lógica, à persecução de outros objetivos não voltados à consecução do lucro e pode gerar prejuízos à sociedade. Portanto, a garantia dos demais interesses não econômicos – ou, a dizer de outra forma, dos interesses comunitários (por exemplo, a proteção ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, à saúde etc.) – resta ao Estado, o qual, para resguardá-los, deve valer-se da competência regulatória ou intervencionista. 38 Ibid., p. 194. 39 Ibid., p. 196.

Essa dinâmica proveniente do distanciamento entre Estado e economia, a qual consiste, em primeiro lugar, na defesa da liberdade do indivíduo, atribuindo-lhe, como determina ainda a lógica verdadeiramente mais produtiva, a iniciativa nas atividades econômicas (em regra), e, no momento seguinte, no controle pelo Estado de seu potencial destrutivo para assegurar outros valores não econômicos resguardados constitucionalmente, dá origem a debates infindáveis a respeito de sua (melhor) configuração.

O dualismo estudado é, plenamente, compatível com duas das maiores expressões do Estado de Direito, quais sejam o Estado Liberal (com o qual este, inclusive, veio a nascer) e o Social. As questões a respeito da dinâmica da separação no Estado Fiscal, contudo, deslocam-se da unanimidade acerca da pertinência da estadualidade fiscal para outra seara, indiscutivelmente, mais espinhosa: a do Estado Fiscal Liberal versus o Estado Fiscal Social.

Abarcar, digna e holisticamente, a essência desse debate ultrapassa, definitivamente, os limites deste trabalho. Na esteira da investigação do fundamento do dever de pagar tributos no Estado Democrático de Direito, assimilar, no entanto, o pagamento dos tributos como decorrência exclusivamente da autolimitação da liberdade, ou, a dizer de outro modo, como ônus cujo valor é convertido em principal fonte de receita pública na justificativa da garantia da liberdade individual (e econômica), não é mais suficiente. Para compreender-se tal impropriedade, faz-se imprescindível perquirirem a justificativa da tributação tanto no Estado Liberal quanto no Social e, posteriormente, a sua evolução.