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Estava no trapiche de Icoaraci esperando o barco que me levasse a Chipaiá, junto a mim duas mulheres conversam sobre determinada senhora que tinha puxado as costas de uma delas, comecei a me interessar pelo assunto e em determinado momento da conversa interagir com as interlocutoras, pedindo informações sobre a pessoa dos comentários, elas então me indicaram o endereço.

Na semana depois me encaminhei à residência de Dona Iniciada, ao chegar, fui recebida pelo esposo que deu a informação que ela tinha saído para fazer atendimento, me convidou a entrar e esperar. Após uma hora Dona Iniciada chegou em casa, me apresentei e lhe falei sobre a pesquisa, ela se mostrou atenta, dizendo que seria muito bom falar sobre sua história, pois se considera pessoa com grande experiência de vida e isso poderia ajudar outras pessoas.

Dona Iniciada conta que nasceu no município de Monte Alegre, está com 68 anos, foi a terceira filha de prole de cinco, única mulher. Diz que a mãe era benzedeira e puxava as pessoas e a avó materna era parteira, apesar do fato afirma não ter aprendido a curar com elas. Lembra que aos dez anos começou a apalpar barriga de mulher, porém não sentia afinidade no ofício de parteira, tanto que apenas aparou uma criança aos 19 anos, segundo ela por não ter outro jeito. Afirma possuir mediunidade desde o ventre da mãe, recorda-se das histórias de ter “chorado na barriga da mãe” fato que indica ser dotada de dom especial.

Lembra que na infância, com aproximadamente sete anos, começou apresentar desmaios. Após consultar médicos, sem diagnóstico, a mãe levou-a à mãe-de-santo, que disse que Dona Iniciada tinha missão para cumprir, e que ela iria passar o tratamento para suspender temporariamente tais crises por ainda ser criança, porém tornariam a voltar no momento de aceitar o carma. A história de Dona Iniciada assemelha-se ao caso da filha de Dona Benta relatado por Galvão (1976), esta apresentava igualmente o “dom de nascença”, caracterizado por ter emitido gritos ainda no ventre da mãe, precisou recorrer a pajé experiente a fim de suspender o dom, o qual retornou na adolescência, como também prometido à Dona Iniciada.

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Dona Iniciada lembra que nesse tempo, foi morar na casa da tia (Antonia) no interior, em colônia próxima, não sabe ao certo qual. Narra que foi o melhor período da vida, pois Dona Antonia, era irmã de sua mãe, especialista em remédios feitos de ervas, atrás da casa possuía grande quantidade de plantas medicinais, quando a tia percebeu o interesse de Dona Iniciada, passou a ensiná-la sobre os remédios. A puxadora recorda muito emocionada, quando a tia a ensinava a pegar nas plantas e procurar ouvir para que elas serviam. Com o tempo, diz que passou realmente a ouvir a indicação e que até hoje escuta, basta andar no meio das plantas para que a mais indicada salte aos olhos, vindo a receita na mente. Tal forma de expressão pode refletir a intenção de demonstrar sua capacidade extra-sensorial. Durante o aprendizado pôde ajudar a tia nos tratamentos de várias pessoas que a procuravam, diz que a tia experimentava os remédios que ela escutava e as pessoas ficavam boas, assim como, começou igualmente adivinhar algumas coisas, por exemplo, quem iria chegar em casa, o que vinham pedir e outras coisas do cotidiano. Afirma ter aprendido quase tudo sobre remédios com a tia e que até hoje é agradecida por isso.

Aos 14 anos as crises de desmaios retornaram e ela voltou à casa da mãe, começou a ouvir vozes e ter visões, algumas vezes falava frases ininteligíveis e, posteriormente, não se lembrava de nada, caía no chão com crise que às vezes eram necessárias três pessoas para segurá-la. A mãe resolveu mudar-se para Belém e procurar a mãe-de-santo chamada Nenê Gaia89, a qual na época era famosa, esta lhe disse que era preciso seguir seu destino, submeteu-a a alguns tratamentos e, foi iniciada na umbanda, chegou a fazer o axé na Bahia, se tornando mãe-de-santo. Mais tarde, ainda em Belém, teve seu próprio terreiro, casou-se e foi morar em Santo Antonio do Tauá aonde também fez terreiro, porém garante que sempre trabalhou na linha de cura e que nunca fez trabalhos para o mal.

Percebi durante a narrativa sobre a experiência religiosa, que apesar de Dona Iniciada reconhecer sua passagem pela umbanda, faz questão de afirmar que nunca realizou trabalhos que não fosse para o bem das pessoas, tal preocupação coincide com a opinião de outros profissionais de saúde tradicionais sobre a umbanda e pajelança demonstrando o cuidado de não serem vistos como praticantes de feitiçarias. Esse desvelo pode estar relacionado ao fato referido por Quintas (2007) no qual a sociedade em seu discurso discrimina as religiões afro-

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Maria Júlia Gaia, mãe-de-santo, foi presidente da Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro- Brasileiros do Pará (FEUCABEP) nos anos de 1970. Conferir: MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira (orgs). IN: Pajelanças e religiões africanas na Amazônia. Belém, EDUFPA, 2008.

brasileiras, o que gera estigma social para os religiosos e adeptos das mesmas. Por outro lado, é possível que a negação esteja simplesmente associada a necessidade que a interlocutora sente em se apresentar a outras pessoas que não possua afinidade ou mesmo a mim na qualidade de pesquisadora, pois a narrativa indica o papel que a umbanda exerceu, auxiliando- a no aprendizado de como usar o “dom” manifesto.

Com o passar do tempo teve que escolher entre a vida profissional e a vida pessoal, ou seja, o terreiro ou a família abandonou a umbanda, passando a se dedicar às curas em sua residência ou nas casas das pessoas. Após ter deixado a umbanda procurou trabalhar fora de casa para ajudar na renda da família, nesse tempo, lembra que exerceu a função de serviços gerais em hospital, fez amizade com a médica do setor de urgência, esta notou a curiosidade e interesse de Dona Iniciada em saber sobre as coisas do corpo, começou então a mostrar-lhe os casos que chegavam ajudando-a a fazer a diferença entre osso quebrado e osso deslocado e como proceder em vários casos de acidentes. Confirma que esse fato veio a fortalecer sua prática de puxação. É relevante notar que neste ponto a interlocutora demonstra a preocupação em mostrar o nível de conhecimento que possui, afirma em algumas falas que durante o trabalho no hospital chegou a atuar mais do que a própria médica, em certa medida, passou a fazer o diagnóstico e os atendimentos de dismintidura e sacadura, deixando para a médica apenas os casos de quebradura dos ossos. É possível que tal declaração constitua prova de competência em relação à médica, uma espécie de “revanche de classe” como refere Boltanski, “[f]ornece a prova de que o médico não é infalível nem o único depositário do saber médico, e dá o exemplo de um profano que, por uma espécie de virtude intrínseca ou escolha, tornou-se dono do discurso médico” (2004, p. 50).

Dona Iniciada se diz católica, mas é simpatizante do espiritismo, o qual ela chama “espiritismo de Allan Kardec”, afirma que nessa religião passou a entender a mediunidade e isso a ajudou imensamente. Tentou anteriormente ser protestante, porém sentiu dificuldades, os pastores não aceitavam que ela usasse o dom fora da igreja, então voltou ao catolicismo, no entanto não abandonou por completo as práticas umbandistas, mantém o altar com imagens em seu quarto e participa de alguns eventos como a festa de oito de dezembro, em Icoaraci, em homenagem a Iemanjá.

Narra que na vida várias foram as dificuldades, dos dez filhos que teve, três vieram a falecer ainda criança, sofreu muito preconceito por ter sido mãe-de-santo e muitos, ainda,

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acreditam que ela é feiticeira. Há dez anos fixou residência em Icoaraci, mora com o marido que está aposentado, uma neta e um bisneto de três anos, o qual acha que vai puxar o dom de curar, pois, ainda criança, sabe puxar e benzer as pessoas.

Diz que realiza quase todo tipo de cura, porém quando vê que não sabe, manda para o hospital, afirma que a mediunidade não a abandonou e não raro, ainda sente mal-estar, mas tem muita fé. Nas orações que faz refere tanto os santos da igreja católica, entidades da umbanda como também, pessoas falecidas que são reconhecidas por feitos milagrosos como o Dr. Camilo Salgado90 e o Dr. Bezerra de Menezes91.

Afirma que hoje em dia passa por período mais calmo na vida, em sua casa sempre há pessoas a espera para o que ela chama de “consulta”. Segundo Dona Iniciada, as pessoas a procuram tanto para tratamento do corpo, buscando as puxações, benzeções ou indicação de remédios caseiros como igualmente, esperam recomendações no sentido de dar direção nas próprias vidas, afirmando poder ver o “entrave” da pessoa e diz que tenta ajudar com a orientações e conselhos, mas também passa banhos de descarrego, passes, orações e novenas.

Em seu quarto mantém o altar organizado em mesa coberta por toalha branca, nele há tanto imagens da umbanda quanto de santos do catolicismo, velas, fitas coloridas, e buquê de flores artificiais no vaso. Diz que antes de qualquer “atendimento ou consulta”, vai até o altar e faz a preparação proferindo orações, às vezes durante o dito ritual fica sabendo o que vai acontecer, outras vezes, Dona Iniciada diz perceber aquilo que perturba a pessoa, segundo ela o espírito obsessor vai junto e ela pode sentir sua proximidade.

A narrativa de Dona Iniciada apresenta muitos pontos semelhantes à história do Seu Arari em Chipaiá, ambos viveram experiências significativas na umbanda, são simpatizantes do espiritismo, apresentam certo conhecimento do corpo adquirido por intermédio de estudo e orientações de pessoas conhecedoras da anatomia humana. Os fatos repercutem na prática da

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Sobre o assunto, consultar Costa (2002), que fala da relação medicina, cura e milagre no culto a Camilo Salgado, médico paraense que viveu entre 1874 e 1938 em Belém do Pará. Conferir: COSTA, Éden Moraes da.

Médico de ontem e de hoje. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará (UFPA), Centro de Filosofia e

Ciências Humanas, Departamento de Antropologia, Belém, 2003. (mimeo)

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Dr. Bezerra de Menezes foi médico espírita, homeopata que viveu no século XIX, o qual assumiu em 1984 a presidência da Federação Espírita Brasileira, ficou conhecido como o "Kardec brasileiro” por sua contribuição à causa espírita, assim como a sua capacidade de doação aos necessitados.

cura realizada por eles, em que se nota uma junção de vários rituais de crenças religiosas experienciadas e conhecimentos adquiridos ao longo da vida.