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Recebi a indicação de Dona Santinha no porto de Icoaraci, lá me deram as referências que ela benzia e puxava, passei a visitá-la. Sua casa parece um santuário, na sala não há espaço em que não se veja imagens de santos católicos, entre eles Sant’ana, Santa Luzia, Nossa Senhora de Nazaré entre outras. Diz que todas as imagens foram herança da mãe, a qual sempre teve afinidade com a santa de devoção Sant’ana.

Dona Santinha é tranqüila, me recebeu bem e fez questão de dispor de seu tempo, não oferecendo qualquer resistência como muitas vezes aconteceu com outros profissionais. Hoje, ela está com 66 anos, nasceu no Município de Vigia, é a filha mais velha de três irmãos, mudou-se para Icoaraci aos 12 anos logo após o falecimento de seu pai. Sua mãe neste período foi trabalhar como doméstica enquanto ela durante o dia assumiu a criação dos irmãos menores que, na época, estavam com dois e três anos e a responsabilidade com a casa. Estudou até o ginasial, o que corresponde, hoje, ao ensino fundamental.

Narra que desde criança sentia vontade de rezar colocando a mão na cabeça das pessoas, a mãe a incentivava, dizia que ela parecia um anjo, com o tempo, foi criada freqüentando a igreja católica, adaptou algumas orações que usa intuitivamente para realizar as benzeções. Aos 15 anos começou a exercer realmente a função de puxação, de rezar e benzer as pessoas. Afirma possuir o dom para curar e que este foi lhe dado por Deus. Lembra que desde menina sempre teve muita intuição e até hoje sonha com coisas que acabam acontecendo, faz relação com o fato de seu bisavô ter sido benzedor e acredita que o dom dele

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ficou para ela, porém nega ter aprendido com alguém. Sob a luz da teoria da magia de Mauss (2003) a história de Dona Santinha reflete o processo de transmissão social, pois ao mesmo tempo em que toma o “dom” como inato, acredita que recebeu do bisavô, como uma espécie de “sina”, por outro lado a mãe a estimulou lhe dando por imagem idealizada “o anjo”, o que a princípio suas características físicas, loura, de cabelos anelados e olhos azuis, suscitam o imaginário religioso da candura fortalecendo a crença na dádiva de Deus.

Diz-se muito católica e que todas as vezes que faz a prática de cura reza e sente a intuição de seu anjo da guarda, guiando sua mão e fazendo com que ela pense no remédio mais adequado àquela pessoa. Afirma ser conhecedora de vários remédios caseiros, alguns utilizados pela mãe, no entanto a fórmula de quase todos vieram em sua mente por meio do pensamento durante às orações ou em sonhos. É extremamente avessa as práticas da umbanda, acredita que nos terreiros é o diabo que toma conta e diz que pessoas do bem não freqüentam tal espaço, afirma ter medo de ser confundida com os adeptos de religiões que falam com os mortos. Dona Santinha faz tudo para resguardar a imagem de santa construída ao longo da vida, me parecendo que qualquer crença ou outro elemento contrário às regras do catolicismo significam ameaça a sua individualidade.

Sua história de vida é bem marcada pelo sentimento de decepção e frustração com a figura masculina, narra que aos 20 anos casou-se e que um ano depois do enlace, o marido foi se transformando em pessoa perversa, a proibindo de fazer curas, de freqüentar a igreja, tentou tirá-la do convívio com a mãe, demonstrando agressividade com ela, começou a ter casos extraconjugais, justificando que ela era incapaz de lhe dar filhos, tentou por mais de 20 anos manter a relação, pois acreditava nos mandamentos da igreja católica, porém depois da briga que culminou com agressão física, Dona Santinha saiu de casa e voltou a morar com a mãe pedindo a separação. Nesse período estava com 41 anos e não mais manteve relacionamentos afetivos, retomou as atividades na igreja e as práticas de cura. A esta altura fez a escolha pelo celibato, acredita que os sofrimentos passados foram provações à sua fé e significaram o caminho de retorno ao catolicismo. Tal convicção não fica distante das trajetórias dos outros profissionais de saúde tradicional estudados. Semelhantes aos achados de Quintas (2007), encontrei a tendência ao enaltecimento do sofrimento como elemento de reafirmação do “dom”, espécie de prova das habilidades diferenciadas. Em outro aspecto é

possível pensar da forma de Caroso e Rodrigues (1999)93 em que o sofrimento tem por objetivo a obtenção da purificação espiritual como relação de espelhamento aos santos e mártires.

Depois de dez anos a mãe adoeceu vindo falecer, Dona Santinha ficou morando com o irmão mais novo, Alberto, e a cunhada, Mariângela, ambos trabalham sendo responsáveis pela manutenção financeira da casa, Dona Santinha toma conta de todas as outras responsabilidades do lar, cria a afilhada que está com 12 anos de idade e fica sempre em casa à disposição para atender as pessoas que a procuram, algumas vezes reclama, pois diz ficar sem tempo para fazer os afazeres domésticos, mas, relata que não se arrepende dizendo que gosta de ajudar as pessoas. Apesar de não cobrar pelos atendimentos, é comum as pessoas lhe darem algum tipo de pagamento pelo feito como dinheiro ou presentes, explica que o dinheiro recebido dá quase todo para as obras assistenciais da igreja e fica com pouco para ajudar em casa. Assim, Dona Santinha estabelece a relação de reciprocidade aos modos das reflexões de Mauss (2003) naquilo que chama “sistema de prestação total”, em que a dádiva (dom manifesto) predispõe obrigatoriedade de retribuição (prática de curar). No caso da interlocutora esta vai mais além, pois, aquilo que ela recebe por meio do “dom”, não se acha no direito de ficar sob pena de ferir a vínculo espiritual estabelecido com Deus, portanto, é provável que em virtude desta crença doe a igreja quase tudo que recebe94.

Possui várias habilidades para tratar as pessoas, diz saber puxar e rezar nas partes do corpo que tem dores nas carnes, nos ossos e nas juntas, sabe benzer quebrante, susto, vento caído e outras. Quando pergunto como ela conhece o corpo para saber a diferença entre dismintidura, rasgadura e tantos outros tipos, ela responde que nunca estudou além da escola, mas foi aprendendo sozinha, diz gostar de ler revistas que falam sobre doenças e sobre o corpo, também diz que muitas vezes procurou ver semelhanças entre os órgãos e as carnes do boi, do frango como o corpo do homem, afirma que todas as vezes que vai ao médico procura saber os nomes das partes do corpo que ele trata e o que acontece quando adoece, dessa forma procura tirar suas dúvidas com relação às doenças que cuida. Tais considerações podem

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Cf. CAROSO, Carlos; RODRIGUES, Núbia. A sina de curar: a palavra de um terapeuta religioso IN:

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 12. p.183-212, 1999. 94

Comparei as afirmações de Dona Santinha aos comentários de Mauss (2003) no “ensaio sobre a dádiva”: o propósito do hau que significa o espírito das coisas, com tal conceito expressa para as sociedades polinésias que se alguém possua algo e doa a outrem, e depois de certo tempo decide doá-lo a um terceiro, vindo posteriormente este último retribui o fato com outro presente, tal presente não deve ficar com esta pessoa, deve devolvê-lo a quem é de direito, pois ele é o hau do tonga, caso contrário pode advir um mal a pessoa. Conferir: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. IN: Antropologia e Sociologia. São Paulo: Cosac & Naify, (2003).

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refletir em alguma medida ao que Boltanski (2004) considera por “medicina imitativa”, em que membros das classes populares reproduzem ações médicas por meio de conceitos e gestos, sendo possível que Dona Santinha construa o corpo de saberes a partir dos elementos que entra em contato no dia a dia, mesmo que o fato não lhe pareça significativo.