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“a ventosa é muito bom, tem doença que o vento entra na pessoa, por isso que dói, quando as carnes rasga vem o vento e fica na rasgadura, quando a gente passa a mão sente aquelas bolinhas espocando, ai quando faz a ventosa elas sai tudinho.” (Dona Mocinha. Entrevista concedida em 19/10/2006).

Na aplicação da ventosa é necessário copo de vidro de 200 ml, álcool líquido, palito semelhante ao

que é usado para assar carne de churrasco, chumaço de algodão e fósforos. Dona Mocinha enrola o algodão em uma das pontas do palito, embebe-o no álcool e acende o fósforo colocando fogo na ponta encapada com algodão. Em seguida, passa a chama rapidamente no

Foto 8 - Aplicação de ventosas

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fundo do copo pelo lado de dentro e imediatamente aproxima o copo da região tratada emborcando no local. O copo em contato com a pele realiza o processo de sucção, deixando o local avermelhado, quando atinge tal estado, Dona Mocinha retira o copo, faz a puxação suave, repetindo o procedimento por três vezes ou mais.

A ventosa é prática utilizada pelos profissionais de saúde tradicionais observada em Icoaraci. Segundo Dona Mocinha, tem por objetivo eliminar vento ou gases que ficam retidos em locais que apresentem algum tipo de problema oriundo de traumas como as rasgaduras, esforço físico demasiado, doenças provocadas por animais (cobreiro), doenças na região da barriga entre outras. Segundo a profissional entrevistada, quando se está doente em algum lugar do corpo, o vento fica preso e não deixa que a região seja curada, por causa do sangue que não consegue passar direito. Dona Mocinha acredita que o vento é o causador de muitas doenças ou o elemento que piora gerando agravamento do mal-estar. Afirma que durante a aplicação da ventosa, o vento sai pelos buracos da pele, deixando o sangue livre, predispondo a cura.

Tal prática pertenceu à medicina antiga hipocrática, é possível que depois de abandonada pela prática médica convencional, foi sendo incorporada no funcionamento do STAS, no entanto a concepção de que o vento é prejudicial nos estados de desequilíbrio do corpo é mais antiga, data aproximadamente cinco mil anos com advento da medicina oriental indiana e depois da medicina chinesa, atualmente, o sistema oriental de saúde usa de vários métodos de massagem para livrar o corpo daquilo que chamam de “ventos perversos”115, assim como é comum a utilização de ventosas entre outras técnicas menos divulgadas como a sangria, lavagens internas, escalda pés, suador, utilizadas por profissionais adeptos da naturopatia116.

Costurar/puxar rasgadura

“A rasgadura é quando a carne está afastada; a gente pode até colocar os dedos dentro da carne, que entra, se fica assim dói muito, num se consegue fazer movimento, fisga, tem que puxar, benzer e colocar emplasto”. (Dona Maninha. Entrevista concedida em 03/07/2006).

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Ventos perversos, segundo a concepção da medicina chinesa, são gases acumulados em estruturas não compatíveis para alojá-los como músculos, articulações e glândulas. Dessa forma, se tornam prejudiciais ao organismo, bloqueando o sistema energético do corpo, causando doenças, Conferir: CHIA, Mantak. Chi Nei

Tsang: massagem dos órgãos internos. São Paulo: Cultrix, 1990. 116

Naturopatia é uma espécie de terapia holística, a qual aborda o corpo do indivíduo em seus aspectos, físico, mental e espiritual, se propõe a tratar por meio de métodos naturais como: massagens, alimentação, exercícios corporais, remédios fitoterápicos e técnicas de meditação e relaxamento.

“A rasgadura é quando esgarça as carnes da pessoa, eu benzo, eu puxo, faço massage e costuro a carne rasgada” (Seu Jorge. Entrevista concedida em 07/03/20060.

Segundo Seu Jorge, para costurar rasgadura é necessário puxar o local para tirar o vento que ficou preso e que faz doer. A rasgadura segundo o profissional é um “esgarçamento das carnes”. De acordo com a demonstração de Seu Jorge, entendi que as carnes para ele, representam todo o tecido do corpo que corresponde à pele e camadas de músculo. Afirma que este desconforto exige reza e puxação com movimentos vigorosos sobre o local e ao redor dele, para depois iniciar o procedimento da costura da rasgadura.

Geralmente, após breve exame da região acometida, o profissional inicia fazendo reza para os santos de sua devoção, em Chipaiá Seu Jorge recitou a seguinte oração: “Meu Senhor São Jorge, minha mãe Guia, hoje rezo, hoje benzo e, em teu nome, eu curo. Curo esta carne do mal que está nela” e ao mesmo tempo em que rezava, com a mão direita realizava movimentos em cruz na direção da região dolorida, repetindo o ato três vezes. Posteriormente, solicita para a pessoa atendida deitar-se no chão, pega o vidro contendo ungüento de manipulação caseira, passa em suas mãos e começa a massagear profundamente o local da dor, com a palma da mão e com os dedos polegares em movimentos de vai e vem durante alguns minutos. Depois toma pedaço de tecido (retalho de aproximadamente 5 cm) e uma agulha enfiada com linha, dando início à costura da rasgadura, segurando o tecido com uma das mãos, à distância de 10 cm do local massageado. Com a outra mão Seu Jorge, segura a agulha com linha, e torna a rezar para ao santo de devoção: “Meu paizinho, São Jorge, hoje rezo, hoje benzo e em teu nome eu curo, curo esta carne do mal que está nela, costuro agora os quatro cantos pra que a dor passe por encanto” e passando a agulha por dentro do pano ele costura, dando um ponto, em cada canto que costura fala e pergunta: “com linha e agulha eu costuro, e o que é que eu costuro?” A pessoa atendida responde: “é carne rasgada”. Repete o procedimento quatro vezes. Finalizando o ritual, pedindo que a pessoa se levante com a recomendação que volte por mais dois dias para fazer o atendimento.

A “costura da rasgadura” usa elementos simbólicos como o pano para representar a carne rasgada e o procedimento de costurar o retalho como forma de concretizar a restauração do local que “estava rasgado”, é possível que a lógica neste caso se assemelhe à do mágico ou feiticeiro referido por Lévi-Strauss (2003), o qual representando a doença em algum objeto que tira do corpo do doente, reforça a eficácia da magia. Entre os profissionais de saúde

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tradicionais de Chipaiá e Icoaraci, observei poucas diferenças na execução de tal medida, basicamente consiste na composição da oração a qual, como foi falado depende do repertório e experiência de cada profissional, outra diferença é a utilização de folha de alguma planta ao invés de tecido para realização da costura. No entanto, o processo simbólico é o mesmo e possui por objetivo a cura e recuperação da normalidade da área afetada.

Congestão

“quando se tá com corpo quente aí pega aquele vento frio que entra no corpo, a cara fica torta, a boca vai pro lado, a gente faz chá de alho, limão e escalda-pé e banho de catinga de mulata até milhorar.” (Dona Maninha. Entrevista concedida em 04/07/2006).

A congestão, segundo Dona Maninha, é a doença que a pessoa adquire quando está dormindo e sai no frio com o corpo quente, ou quando está tomando café quente e logo depois vai tomar banho, segundo ela, o corpo não agüenta sofrendo choque térmico, ficando com a cara torcida, trata dando à pessoa chá de alho com limão, faz escalda pé, colocando os pés da pessoa imersos em água quente, indica tomar banho molhando a cabeça em jejum com chá de catinga de mulata (Leucas martinensis) em estado morno, orienta que a pessoa não saia de casa e fique em repouso durante uma semana.

Para os profissionais de saúde tradicionais, a congestão é estado de adoecimento provocado pelo choque de temperaturas entre o meio externo e o corpo, portanto no STAS é possível encontrar explicação tanto na síndrome quente–frio, como na ação do vento que prejudica o corpo, por outro lado para os profissionais do SOAS, a congestão corresponde ao processo de inflamação viral que compromete os nervos da expressão facial, levando à paralisia da face, neste caso é indicado medicação e repouso durante o ciclo viral, que dura em média dez dias.

Embrocação

“Quando a pessoa tá com muita febre e num consegue nem falar, porque a garganta tá apertada que num passa nem água, o jeito é curar a garganta, coloca o dedo com andiroba e mel, eu quero ver se num fica bom.” (Dona Maninha. Entrevista concedida em 12/04/2006).

A embrocação é o ato de curar a garganta realizado pelos profissionais de saúde tradicionais, nele Dona Maninha envolve o dedo indicador com pedaço de algodão, embebe-o na mistura de mel de abelha e azeite de andiroba (Carapa guianensis), pede para a pessoa abrir a boca, introduzindo o dedo fazendo uma pressão nas paredes laterais da garganta. Ao

terminar, Dona Santinha recomenda que o procedimento seja repetido por mais três dias até que fique curado.

Assim como o tratamento para os gases presos no intestino da criança, a embrocação é igualmente considerada medida curativa de senso comum, bastante difundida no STAS, conhecida no meio familiar principalmente nas classes populares e médias como primeiro cuidado nos processos de adoecimento da garganta que apresente febre e dificuldade de ingerir alimentos.

Fazer massagem

“a massage nós faz quando puxa, porque a gente tem que ficar assim amassando até aliviar a

aflição da pessoa...” (Seu Ceará. Entrevista concedida em 11/11/2006).

De acordo com as entrevistas realizadas, observei que a massagem representa o elemento da prática da puxação, todos os profissionais de saúde tradicionais a utilizam em algum momento, como elemento principal, associado a rezas, benzimentos, não parecendo importar a forma, são feitas geralmente com as mãos realizando movimentos coordenados, usando de maior ou menor força, pressionando e puxando o local dolorido, procurando sanar a queixa da pessoa atendida.

Fazer parto

“Comecei nesta lida tava com uns 15 anos, já era noite e a vizinha começou a sentir dor pra ter o filho, não tinha ninguém para ajudar, forramos o chão, a mulher ficou deitada, peguei um óleo que tinha lá na casa e comecei a puxar a barriga dela, mandei ela fazer força, como se fosse fazer necessidade, até que a criança veio saindo, peguei o minino esquentei a tesoura na lamparina, puxei a corda do umbigo e cortei e amarrei e dei ele pra minha tia limpar o neném e fui limpar a mulher, que ainda soltou a bolsa, peguei tudo aquilo enrolei nos panos e mandei o marido dela enterrar...” (Dona Saluca. Entrevista concedida em 02/05/2006).

Consiste em assistir à mulher na hora de parir, no entanto, para as parteiras a hora do parto corresponde a uma etapa do processo que se começa na gravidez. Para Dona Saluca, o trabalho inicia ao acompanhar a mulher grávida durante a gestação, o acompanhamento inclui visitas sistemáticas à casa da profissional para puxar a barriga e endireitar a criança, colocando o feto na posição correta de nascer. Às vezes compreende a ingestão de alguns remédios caseiros feitos com ervas, vinho e ovos de pata usados como fortificante; suco de laranja da terra (Citrus aurantium) “aserenada” (deixada ao ar livre durante a noite) com leite de magnésia para limpar o sangue da mãe e da criança e prevenir a albumina, evitando

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anemia; os banhos de assento igualmente são usados para evitar doenças do aparelho genital; a orientação à limpeza do intestino usando a lavagem de bico, orientado para fazer ao sentir as primeiras dores. Após o parto é receitada outra garrafada ou água inglesa (compra quem tem posses), a qual deve ser ingerida diariamente após as refeições serve para limpar o útero durante o resguardo, outros cuidados a serem observados é com a alimentação a fim de evitar a reima.

O parto é feito na casa da parteira ou em alguns casos na casa da mulher grávida. Faz- se necessário ter tesoura amolada e desinfetada, luva, gaze limpa, duas bacias de água morna previamente fervida e certa quantidade de panos limpos, iodo ou álcool iodado. Dona Saluca espera a placenta romper para começar o parto. No quarto ficam a mulher que vai parir, a parteira e a auxiliar (pessoa da família que ajuda a limpar a criança e a cama). A cama onde a mulher vai parir é forrada com plástico, por cima deste coloca-se outro pano grosso ou manta, para receber a mulher que se deita nua de barriga para cima, com as pernas dobradas e apoiadas na cama.

Ao iniciar o trabalho, a profissional examina a barriga fazendo a puxação de cima para baixo e apertando os lados da barriga e quadril, explicando para a mulher como deve respirar, orientando que faça força como se fosse defecar. Continua a puxar até a cabeça da criança aparecer (coroar) no assoalho pélvico117, calça então a luva e vai puxando levemente a cabeça da criança enquanto a mãe continua fazendo força para expulsar o bebê, nesse momento se a criança não chorar ela dá uma palmada para estimular o choro do neném e o coloca na cama de lado para vomitar a secreção, no entanto, no caso da criança não expelir nenhum líquido, a parteira suga a boca da criança até sair a secreção clara e viscosa que ela chama de “parto”.

Posteriormente mede então um palmo de cordão umbilical, dando o laço e corta fazendo um nó e entrega para a outra pessoa da família limpar o neném com pano e água morna e passar o iodo ou álcool no umbigo, após esse procedimento coloca o penço118 e veste a criança. Volta para a parturiente e aguarda a placenta ser expulsa, enquanto faz outra puxação na barriga da mulher, quando sente que saiu todo o conteúdo do parto, começa a limpa-la com água morna, tirando a manta que forra a cama, colocando outros panos limpos,

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Termo utilizado em obstetrícia que corresponde às estruturas musculares que ficam ao redor e próximo à vagina e ao ânus.

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após o asseio, forra a mulher com os panos, fazendo uma espécie de fralda, posiciona a pessoa de lado, sentando no quadril, de um lado e de outro, posteriormente enfaixa o quadril da pessoa bem apertado, afirma que tal procedimento é para as ancas não ficarem alargadas e voltarem as medidas normais, ao término, passa a mulher para rede armada ao lado da cama e lhe entrega o filho para amamentar. Os restos de parto junto com os panos ela coloca em saco plástico e manda entregar ao marido da pessoa que pariu para enterrar. Dessa maneira o parto é finalizado, porém a mulher parida permanece sob a responsabilidade da parteira por alguns dias e esta lhe administra garrafadas e alimentação leve que é indicada por cerca de 40 dias, o que equivale ao resguardo. Nesse período, a mulher deve se abster de trabalhos domésticos assim como de manter relações sexuais com o parceiro.

A competência de executar o parto é função singular exercida pelos profissionais do STAS em locais como Chipaiá, o qual não há atuação do SOAS ou qualquer outro sistema de saúde. Nesta localidade todos os profissionais entrevistados afirmaram saber exercer a atividade, porém, somente Dona Saluca é considerada como parteira. Em Icoaraci, apenas Dona Mocinha exerceu quando mais jovem tal função, hoje abandonou a prática, pois, segundo ela, exige dedicação completa, justificando que na idade que se encontra não possui mais saúde para fazer esse tipo de atividade.