• Nenhum resultado encontrado

No primeiro contato, Dona Maninha não me pareceu receptiva a estabelecer qualquer relação, se mostrou desconfiada e arredia, porém aos poucos se permitiu ao diálogo, no entanto avisou que não é muito de “prosa”, que andava adoentada ultimamente e sem

82

Braio é termo nativo usado no STAS em Chipaiá para referir os trabalhos encomendados em terreiros aos pajés por pessoas que desejam fazer mal a outras.

83

Cf. IBAÑEZ-NOVION, Martin Alberto; IBAÑEZ-NOVION, O. C. L; TRINDADE SERRA, O. J. O anatomista popular: um estudo de caso. IN: Anuário antropológico 77, p. 87-119, 1978.

53

disposição para qualquer coisa. Narra sua história de vida como sendo de muito sofrimento. Encontra-se com 65 anos de idade, é uma das irmãs do Seu Jorge, mora próxima a ele, conhecida na localidade como benzedeira e puxadora de juntas, atividades estas reconhecidas pela mesma.

Dona Maninha reside em casa de três compartimentos juntamente com uma das filhas, Maria da Conceição, e quatro netos, é viúva há quase vinte anos e reclama muito do que denomina “lida” da vida. Segundo ela, foi amigada com o companheiro por 30 anos, reforça que ele foi o único homem que teve, criticando as mulheres que são separadas. Diz que não se casou na igreja por não ter tido oportunidade, mas sempre foi boa esposa, criou os sete filhos, trabalhou no roçado e até na pesca para ajudar o sustento da casa, agüentou tudo até ficar viúva e depois preferiu ficar só, acha que mulher que se preza, deve se resguardar, é de opinião que a falta de cuidado da maioria das mulheres possibilita a “mãe-do-corpo”84 ficar fora do lugar, justifica tal posição por atender muitas mulheres que a procuram para se tratar.

Alega que chegou a Chipaiá com aproximadamente cinco anos com a família, desse tempo tem pouca lembrança, no entanto conta que era comum nessa época ter pessoas indo em sua casa chamar sua mãe para fazer partos ou para rezar em alguém. Perguntei sobre esse fato ter influenciado na sua atividade de cura, ela nega dizendo que não tinha idéia do que era ou significava o que sua mãe fazia e que esta jamais permitiu ser assistida por ninguém, quando a pessoa chegava, se tivesse que ser atendida lá mesmo, todos tinham que sair do recinto. Ao falar sobre o assunto, Dona Maninha demonstra tristeza e diz que chegou a sentir muita mágoa da mãe, pois ela não aceitava o dom de nenhum dos filhos e no início os tratava sempre muito mal.

Lembra que o período mais difícil foi na adolescência entre 13 e 14 anos de idade, nesse tempo começou a sentir coisas estranhas na cabeça, ouvia vozes e sempre quando alguém ao seu lado estava com alguma dor sentia vontade de tocar a pessoa, ela percebia que isso irritava a mãe, que brigava fazendo com que Dona Maninha se sentisse culpada e envergonhada, e como conseqüência ela se isolava; algumas vezes procurou o irmão (Seu

84

Mãe-do-corpo é termo nativo da Amazônia, de acordo com entrevista é uma “[b]ola que pulsa na região do umbigo e quando se espalha na barriga da mulher dá trabalho”(Dona Maninha, Chipaiá, junho, 2006). Algumas pessoas pensam que a mãe-do-corpo tem correspondência com o útero, no entanto o útero não pulsa, consultando as referências anatômicas penso que a mãe-do-corpo pode ter relação com a artéria aorta na região abdominal, porém não encontrei explicação para o fato de “sair do lugar ou se espalhar”, como afirmam os profissionais entrevistados. Melhor detalhada no cap. III.

Jorge) que a ouvia, porém ela não podia ficar com ele, pois ele tinha constituído família. Junto com as vozes também começou a ter visões, diz hoje, enxergar “além do corpo” das pessoas, e que é capaz de ver o que tem dentro do corpo e isso a ajuda na hora das rezas a identificar o tipo de doença que a pessoa tem, assim como o remédio mais indicado.

Narra que por muito tempo se sentiu maltratada pela mãe e ao completar dezoito anos procurou um pajé, como no caso do irmão, este lhe propôs que trabalhasse no terreiro para evitar mais sofrimentos, ela, porém se negou, concorda que veio com o dom de curar, mas acha que a vida de pajé é muito sacrificada e não aceita ser guiada pelas entidades. Acredita que esta decisão pode ser a causa dos inúmeros sintomas de doença que hoje apresenta, a principal é o que ela chama de doença dos “neuvos”, a qual justifica dizendo que esse estado de adoecimento a deixa de mau humor, sente raiva das pessoas, tendo dias que não tem vontade de falar com ninguém e nota muitas vezes que seu corpo treme todo. No entanto, apesar do sofrimento relatado diz não se sentir arrependida por não ter escolhido a vida de pajé.

A narrativa de Dona Maninha é similar à do Seu Jorge em que o “dom” ao ser revelado, vai à busca de um pajé para tratá-la fazendo assim sua iniciação. Dados semelhantes encontrei no estudo de Andrade (2003), o qual constata que a iniciação dos benzedores por ele estudados em Icoaraci foi comumente realizada por curadores (pajés), igualmente as pesquisas de Quintas (2007), que reafirma os dados estudados na região de Belém.

Dona Maninha quando ainda morava com a família de origem, conta que certa tarde o marido de certa jovem veio procurar sua mãe pedindo ajuda dizendo que a esposa estava grávida e com muita dor por ter a criança atravessada na barriga. Como a mãe estava doente e impossibilitada, Dona Maninha resolveu socorrer a jovem. Chegando lá, fez suas orações e começou a puxar a barriga da moça até que a dor foi passando e o bebê também foi para o lugar certo. Depois desse dia, mesmo contra a vontade da mãe foi observando a puxação de barriga que esta fazia e se tornando parteira, função que exerceu por mais de vinte anos. Conta que a mãe ainda passou muito tempo até aceitar o fato, lembra do que ela dizia: “vai te meter? Isso dá muito trabalho. Nunca mais se tem sussego, e se tu mesmo sabe fazer, a reza aparece na cabeça. Num precisa ninguém ti insinar.” (Dona Maninha. Entrevista concedida em 12/04/2006).

55

Nas primeiras entrevistas, Dona Maninha afirmava que seu aprendizado não possuía interferência de ninguém, entretanto com a convivência novas elucidações eram feitas, observei as contradições dos fatos, a influência da mãe antes negada parecia ter importância significativa para construção do saber de parteira e puxação de barriga, em vários momentos comentou sobre a forma como a mãe atuava, deixando perceptível a contribuição desta no desenvolvimento da prática que possui. Sobre o fato, as elucidações de Mauss (2003) fazem sentido à medida que a família assume o papel na transmissão social do “dom”, pois é provável que se nela existir algum membro portador de diferencial, esse diferencial passa a ser incentivado a outros membros do núcleo familiar mesmo que tal incentivo não seja declarado ou reprovado como o caso da família de Dona Maninha, se assim for, é provável que a família potencialize o dom do profissional de saúde tradicional.

À medida que o tempo foi passando, Dona Maninha se tornou conhecida na localidade, sendo procurada por muitas pessoas para que puxasse as juntas, os músculos e tratasse os vitimados de quedas, baques, fraqueza no corpo e outras doenças. Durante a narrativa demonstrava que sempre teve muito interesse para desenvolver suas aptidões curativas, dizendo que quanto mais fazia as curas, mais procurava saber de outras coisas consultando as pessoas que tinham experiência superior a dela. Foi assim que aprendeu a fazer os remédios de matos como as garrafadas, os chás, banhos, ungüentos, emplastos e outros. Faz questão de dizer que jamais freqüentou escola e diz não saber ler, quando questionada como se sente em relação ao fato, com certa ironia declara: “ ...não sou letrada, não sei ler as palavras que têm letra, somente meu nome, vocês inxerga a leitura, mas outras coisa vocês num inxerga, eu sou cega na leitura e outras coisa eu inxergo”. Deixando subentendido a capacidade extra-sensorial que possui. (Dona Maninha. Entrevista concedida em 13/04/2006).

No entanto, ouvindo Dona Maninha, atento para a dualidade do significado de ser possuidora do dom de curar, em alguns momentos ela justifica que a causa de seus males físicos é uma forma de castigo por não ter seguido a pajelança, semelhante ao caso do pajé João referido por Maués (1990), o qual desprezou inicialmente a manifestação do dom, vindo posteriormente ficar cego, atribuindo o fato a rejeição de se tornar curador. Em outros momentos esse dom surge como compensação pelos sofrimentos impostos pela vida, e é tomado como privilégio que a faz diferente das outras pessoas, tornando-se detentora de poder que resulta em reconhecimento na comunidade, penso que Dona Maninha esteja exercendo

papel similar ao mágico referido por Mauss (2003, p. 69), capaz de “[s]er objeto de fortes sentimentos sociais”, à medida que utiliza sua habilidade diferenciada para obter reconhecimento do grupo.

É possível observar a competência de Dona Maninha quando ela fala sobre os sofrimentos que acometem as pessoas, as causas85 e formas de tratar. Na sua concepção, os sofrimentos são “males” ou desconfortos dos mais variados tipos, provocados no corpo, no espírito da pessoa, ou mesmo estando inter-relacionados, isto é, a pessoa com “mau-olhado”, segundo Dona Maninha, foi vítima de “malineza86” (espécie de mal provocado por outra pessoa ou por bicho ou espírito da mata), apresenta entre outros sintomas fraqueza no corpo, dor, febre, falta de apetite, em tais casos devem ser tratados tanto o corpo como o espírito da pessoa.

Afirma tratar dos diversos tipos de sofrimento, porém se resguarda quando identifica ser “mal pra pajé curar”, nesses casos esclarece a pessoa atendida, deixando que a mesma faça a escolha. Outro mal que diz não tratar é quebradura de osso, afirmando que nem mexe, manda a pessoa procurar o que ela chama de “médico doutor”, diz ter receio das complicações que podem levar a pessoa a perder o membro quebrado, considerando muito perigoso. Relata ter visto o que chama de “gangrenia” (grangrena/tétano) no caso em que a perna da pessoa ficou podre, devido a demora em ir para o hospital, quando resolveu procurar era tarde, de acordo com Dona Maninha, os médicos disseram que tinha dado essa “doença feia” e eles tiveram que cortar a perna.

Atualmente, das práticas que não realiza é a assistência como parteira, justificando ser atividade muito cansativa, diz que exerceu tal função durante 20 anos, porém, atualmente sente seus nervos abalados e não dá mais conta de se deslocar principalmente no rio. Concorda que nesse caso a mãe tinha razão, dizendo que é o tipo de coisa que nunca se tem

85

As causas dos sofrimentos narradas por Dona Maninha se dão de forma semelhante às encontradas nas pesquisas de Maués (1990) sobre a “pajelança cabocla”, em que as doenças podem ter causas naturais e não- naturais, sendo as naturais aquelas que podem ser tratadas pela medicina considerada oficial e as não naturais as que dependem de outros fatores alheios aos recursos médicos, como a influência espiritual. Outro achado semelhante encontrei em Loyola (1984), ao estudar “saúde e doença nos terreiros” classificando-os como doença material e espiritual.

86

O termo “malineza” foi discutido por Maués (1990), expressão nativa falada pelos habitantes de Itapuá, correspondendo à causa de doença espiritual, o mal provocado pela intenção dos homens e ou dos espíritos.

57

descanso, afirma que a irmã Saluca ainda exerce a atividade e que ela gosta mais de fazer parto.

Na comunidade, Dona Maninha, apesar de ser reconhecida como possuidora do dom da cura, as opiniões quanto ao seu temperamento não parecem muito positivas. Sua comadre, Dona Maria da Luz, conta que Dona Maninha é “de lua”, querendo dizer que seu temperamento oscila, tendo dias que está de bom humor e outros de mal humor. No entanto, a mesma afirma que entende porque todo mundo que tem esse dom acaba ficando com os nervos fracos e afirma que apesar dessa característica Dona Maninha é muito boa nas curas que faz. A própria filha que mora com ela diz que a mãe sofre de muitas dores, constantemente fica doente e se aborrece por tudo. Dona Maninha confirma que hoje em dia tem pouca paciência até mesmo com aqueles que vêm à procura de tratamento, justifica o fato falando que muitas pessoas quando a solicitam, querem tudo na hora, que não sabem pedir e, às vezes ela acaba brigando, mas sempre volta atrás, fazendo tudo o que a pessoa precisa.

A partir do aspecto temperamental de Dona Maninha, vou buscar em Mauss (2003) elementos para análise do fato quando coloca as qualidades dos mágicos, as quais em alguma medida são semelhantes às características de personalidade de Dona maninha, referindo que o mágico se diferencia do grupo social por aspectos físicos e emocionais. Tal qual o mágico, a interlocutora possui particularidades como: voluntariosa, nervosa, apresenta habilidades manuais e um senso extra-sensorial aguçado, dessa maneira parece que Dona Maninha mesmo reconhecendo em certos momentos os aspectos negativos de sua conduta os utiliza como forma de justificar o “dom” que lhe é peculiar.