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Os profissionais de saúde tradicionais aqui tratados são considerados detentores de saberes transmitidos culturalmente. Para entender tal processo busco primeiramente o conceito de cultura de Geertz como “teias de significados que amarram o homem” (1989, p. 4). Penso que a palavra “teia” é capaz de apreender a lógica da forma que se constroem os saberes tradicionais da saúde, utilizados pelos profissionais junto aos quais trabalhei. Poderia chamar de fina tessitura, a construção de significados como dom, doença, saúde, cura entre outros que formam o sistema de símbolos que extrapolam a mente, sendo compartilhados e compreendidos, permitindo a relação dialógica entre as pessoas do mesmo grupo.

Trabalhando com os interlocutores, percebi que o comportamento de cada indivíduo é representado por ações simbólicas que exteriorizam as normas de vida e a capacidade própria de estabelecer interações complexas com outros da mesma rede social. Seguem na “teia”

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O conceito de eficácia simbólica será utilizado no corpo do trabalho como sustentáculo no entendimento de como e porque ocorre o processo de cura por meio das medidas mágico-simbólicas utilizadas pelos profissionais de saúde tradicionais. Conferir: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

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criando e recriando, mantendo e se submetendo consciente ou inconscientemente a regras e fatos pertencentes ao meio ou local em que vivem, o que de certa forma traz a idéia de Sahlins (1997)31 ao trabalhar a tradição cultural como algo em movimento, atualizando-se constantemente, permitindo que cada indivíduo se responsabilize pelo conteúdo simbólico profundo e pela construção do conjunto de significados próprios para cada grupo, possibilitando que o movimento do processo cultural vá além do individual, chegando ao coletivo. Tal é o sentido que vejo na “teia”, cada fio é tecido a partir de determinado conteúdo, ao ser atado em nós estabelece relações, as mudanças ocorrem na medida em que a teia ou as relações se ampliam ou se retraem, algumas vezes, parte da rede pode se romper, possibilitando outras transformações, no entanto parece que as tradições se mantêm em constante atualização.

Os saberes tradicionais da saúde como parte da teia, integram a cultura, e tal qual ela, estão sujeitos a mudanças ao longo do tempo. O agente propulsor da atualização dos valores sociais segundo DaMatta (1987)32, é o homem como membro da sociedade que é capaz de criar, usar e reformular o contexto de hábitos, comportamentos, crenças e valores em que estão inseridos. A construção do processo tradicional de saúde na Amazônia, segundo Santos (2000)33, pode ter se dado em marcos históricos, possivelmente, a partir do contato com a sociedade européia, assimilando elementos da medicina ocidental e posteriormente com a chegada de nordestinos que trouxeram estratégias de cura oriundas das tradições africanas. As formas de conhecimentos incorporadas entre si refletem as inúmeras dimensões da saúde tradicional desenvolvida na região. Santos, reforça a idéia quando fala da apropriação de saberes do uso de plantas medicinais na região Amazônica:

“[os] saberes amazônicos, sistematizados em seus diversos matizes- indígenas e caboclos, seringueiros, madeireiros, pescadores, colonos, garimpeiros, balateiros, regatões etc. -, consolidam-se em suas práticas, destacando-se o uso dos “remédios do mato” como um dos seus traços culturais mais marcantes.” (2000, p. 926).

Dentro das dimensões de saúde na região Amazônica a influência cultural é inquestionável, porém devido à extensão territorial, cada região possui características próprias, podendo ocorrer diferenças significativas no que diz respeito às técnicas utilizadas para tratar como, igualmente, ao contexto social em que se desenvolvem. É provável que cada

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Cf. SAHLINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não é “objeto” em via de extinção (parte I). IN: Mana v. 3, n. 1, 1997, p. 41-73.

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Cf. DaMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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Cf. SANTOS, Fernando Sérgio Dumas dos. Tradições populares de uso de plantas medicinais na Amazônia. IN: História, Ciência, Saúde - Manguinhos, v.6 (suplemento), n., set. 2000, p.919-939.

grupo recrie o processo cultural de acordo com a capacidade simbólica pertinente, a qual, segundo Sahlins, “é a essência da cultura”, “fonte investidora de poder” (2006, p.140)34, possivelmente o fato de como foi apreendido os saberes, o momento social e histórico do estabelecimento das novas relações e a forma como foi absorvido gerou nova ordem no comportamento, o qual é refletido no poder simbólico exercido pelos indivíduos, tal nível de poder vem ao encontro do que refere Geertz sobre a cultura “como o conjunto de mecanismos de controle” (1989, p.32), que faz com que o homem ordene seu comportamento e seus hábitos de vida e eleja de acordo com as novas regras a dimensão de sua atuação dentro do seu locus.

Dentro da perspectiva de Geertz, é possível que o STAS em Chipaiá e em Icoaraci se encontre emaranhado no processo cultural dinâmico de trocas de experiências e saberes. Os indivíduos integrantes do sistema transformaram a forma de tratar e curar, associando a ela novos elementos assimilados nas relações com outras práticas. Em razão das modificações sofridas, o sistema aparece em desenvolvimento desigual e em muitos parâmetros são ambíguos quando comparados ambos os locais. Podendo ser considerado como fruto híbrido de transformação que, historicamente, nem sempre se deu confortavelmente e sim como resultado do processo de colonialismo e de tentativas de eliminar identidades que geraram resistência e maneiras de adaptações como estratégias de sobrevivência às condições socioeconômicas e culturais da era contemporânea.

Tendo em vista as observações das duas localidades, suponho que o processo que implica em medidas curativas no STAS, seja a expressão do conteúdo simbólico especializado resultado do domínio das práticas curativas usadas pelos profissionais de saúde tradicionais, sendo compartilhadas mais com pessoas de nível socioeconômico menos abastado podendo exercer com maior propriedade o poder simbólico e obter o reconhecimento do grupo social. No entanto, não é regra, encontrei pessoas de diferentes grupos sociais que reconhecem a eficácia do STAS e recorrem a ele mesmo quando se acham desenganadas pelo SOAS, é o que Dona Tereza em Icoaraci narra:

“estava cansada de andar em tanto médico, nenhum dava jeito que prestasse, um me disse que ia morrer, assim meu rim não ia agüentar, ia ter que fazer a hemodiálise e depois só outro rim, tava definhando, às vezes não conseguia nem andar direito, aí no desespero soube de Dona Mocinha resolvi arriscar, ela me tratou, fez chás, me benzia e fazia massagem nas minhas costas, fui melhorando, hoje ainda venho aqui pegar os remédios que ela prepara mas acho que

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to boazinha, só deixei de comer sal, cheguei a voltar no médico mas ele nem acreditou acha que fiz outra coisa para melhorar.” (Dona Tereza. Entrevista concedida em 20/03/ 2006).

Semelhante aos achados de Montero (1985)35, quando aborda a preferência as intervenções mágicas dos centros de umbanda, muitas pessoas que utilizam a terapêutica tradicional de saúde reconhecem a eficácia dela, à medida que constatam o fracasso da medicina ocidental.

É provável que o critério de escolha ou a reinvenção do repertório tradicional da saúde seja estruturado de forma pragmática, com base na experimentação prática dos agentes que buscam atender às necessidades do grupo social que dela faz uso. Em Chipaiá e Icoaraci, observei semelhanças e diferenças na dinâmica do STAS, cabe examinar com maior apropriação tal processo. Para melhor compreensão proponho a apresentação mais detalhada de cada local na intenção de discutir as particularidades da construção do Sistema de Tradicional de Ação para Saúde e a forma como a sociedade reflete as ações por ele utilizadas.

Assim, no “porto das fronteiras” desembarquei para conhecer na prática a realidade das duas localidades, o que proporcionou a possibilidade de mostrar oficialmente meus loci de atuação, no caso, Chipaiá e Icoaraci que, apesar de referir desde a apresentação sinto necessidade de dar ordem aos fatos, me apropriando antropologicamente da narrativa e optando por trabalhar metodologicamente a partir dos referenciais de Geertz (1989) da descrição densa, responsável pela interpretação do discurso social, resgatando-o por meio de análises e observações, guiadas por pequenas questões para chegar a interpretações mais amplas.

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Atracando em Chipaiá

Chipaiá representa uma das sete comunidades formadas por famílias de ribeirinhos situadas no Município de Cachoeira do Arari, no Pará. O município se estende pela microrregião dos campos do Marajó, à margem esquerda do rio Arari, limitando-se ao norte com os municípios de Chaves, Soure, Santa Cruz do Arari; ao sul com a Baía do Marajó; a leste com Salvaterra; e a oeste com Ponta de Pedra. Cachoeira do Arari está a 75 km de Belém. O clima nessa região é tropical

úmido, com chuvas e ventos regulares. A temperatura média varia de 27º a 36º C. Apresentando paisagem plana, com vegetação rasteira e mata pouco densa. Segundo dados do IBGE, em 2000, a maioria da população do Município é rural, contando 9.951 pessoas, enquanto que outros, em menor proporção vivem nas cidades (5.832 pessoas).

Em 1984, as terras referentes a Chipaiá foram repassadas da União para o município de Cachoeira do Arari, que, por sua vez, cedeu os terrenos aos moradores da localidade. As terras medem cerca de 200 hectares de frente e uma légua de fundo36. Hoje em Chipaiá, segundo o Diagnóstico Sócio Ambiental de 200537, realizado em parceria entre o Projeto Colônia de Pescadores Z-40, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (FETAGRI/PA) e Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA), a comunidade conta aproximadamente com 520 habitantes, divididos em cerca de 120 famílias, sendo 270 homens e 250 mulheres. A subsistência da população vem da pesca, da agricultura tradicional, da

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Uma légua equivale aproximadamente a 6.000 metros.

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Relatório do projeto de diagnóstico e gestão dos recursos naturais em comunidades de Cachoeira do Arari, que teve por objetivo realizar estudo sócio, econômico e ambiental nas sete comunidades tradicionais (Aranaí, Chipaiá, Caracará, Anoerá, Bacuri, Alto Urubuquara e Baixo Urubuquara), focalizando a gestão de recursos naturais, seus sistemas de produção e a integração de práticas ambientais como forma de melhorar a qualidade de vida e geração de renda de forma sustentável. Conferir: OLIVEIRA, Maria do Socorro Soares de. Diagnóstico

Sócio Ambiental de Cachoeira do Arari-Pará. Belém: FETAGRI e Fundo Nacional do Meio ambiente (FNMA),

2005. (mimeo)

Foto 1- Rio Chipaiá e os matapis próximos à margem