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Na parte de Chipaiá considerada como Praia pelos habitantes, a paisagem é bucólica, possui extensão de pelo menos dois quilômetros de areia, banhada pela baía do Guajará, quando a maré está baixa se percebe a praia com declive para a água e subindo a região de areia entra-se na área de mata, muito característica da região Amazônica, com grandes árvores em terreno úmido. Adentrando aproximadamente 300 metros na mata, encontra-se clareira, onde de longe se avista três casas e animais domésticos dentre eles galinhas, patos, cachorros, porcos e algumas cabras, a casa do meio é de Dona Saluca (ver Figura 1). Com 61 anos, é considerada pela comunidade a parteira mais reconhecida e importante da região. Ela é a irmã

caçula de Seu Jorge e Dona Maninha. Desde a primeira visita me recebeu com simpatia. Diz que a história da sua vida daria um livro incluindo outras histórias, pois segundo ela, sabe mais das pessoas que padre de igreja.

Diz que não lembra quando chegou a Chipaiá, acha que nasceu no Baixo Amazonas, mas foi registrada no Marajó em Cachoeira do Arari, veio com os pais, é a última de sete irmãos. Durante a narrativa confirma o que já foi dito pelos irmãos sobre a não aceitação por parte dos pais. Conta que certo dia estava escondida vendo a mãe puxar a barriga de uma mulher grávida, ao notar sua presença, a chamou e depois que a moça saiu, aplicou-lhe uma surra. Depois da surra ela adoeceu, ficando muitos dias com febre alta, lembra que toda a família ficou preocupada e até no pajé teve que ir. Segundo Dona Saluca, este pajé lhe passou banhos e defumação e disse que ela era da linha de cura. Nesse tempo estava com 15 anos e a mãe para afastá-la do local, resolveu mandá-la passar algum tempo na casa da comadre Dona Feliciana em Aranai. Chegando lá começou a ajudar no trabalho da roça e, como Dona Feliciana, mantinha também cultivo de ervas que ela usava para fazer remédios caseiros, começou a aprender como fazer chás, banhos e garrafadas.

A partir desse período, é possível ter ocorrido a apropriação do “dom”, pois o fato de ser declarada pelo pajé confirmou o dom de curar, a interlocutora então, por meio de Dona Feliciana passa a adquirir novas habilidades que vieram enriquecer seu repertório de práticas, tal experiência pode ser comparada às considerações de Campos-Navarro (2004), quando diz que a aquisição de novos conhecimentos obtidos do grupo gera atualização do “dom”, à medida que a reprodução deles cria novas formas de utilização.

Continuando a narrativa, conta que certo dia tarde da noite estava chovendo e o vizinho de Dona Feliciana foi procurá-la pedindo ajuda para esposa que estava com dores do parto, ambas foram a casa do rapaz, ao chegar lá Dona Feliciana observando a moça, disse que era para Dona Saluca realizar o parto, pois a moça estava bastante cansada e podia vir a morrer, encorajada por Dona Feliciana, Dona Saluca fez várias orações e com óleo de andiroba puxou a barriga da jovem ajeitando a criança até ela conseguir expulsar a mesma de dentro dela. Dona Saluca, lembra o fato com emoção, afirma que teve fé e coragem, declarando que não sabia direito como fazer e acredita que foi ajuda de Deus e de Nossa Senhora do Bom Parto naquele momento que veio ao seu socorro, lembra ter sentido uma mão invisível guiando a sua enquanto puxava. Tal experiência pode ser considerada como rito

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de iniciação de Dona Saluca, naquele momento em que o parto foi concluído com êxito também ocorreu a consagração como parteira.

Depois desse dia, segundo Dona Saluca, “o boato correu” pelo lugar, a mãe soube, mandou buscá-la e brigou com ela, porém ela teve o apoio da irmã, Dona Maninha, e apesar da desaprovação da mãe, o tempo foi passando e ela acabou se conformando como fez com os outros irmãos. Lembra que a mãe falava que fazer partos significava risco grande, hoje Dona Saluca diz entender a opinião da mãe e concorda que é arriscado lidar com a vida das pessoas, considerando o nível de responsabilidade que ajudar nos partos representa. Ressalta que para exercer tal atividade, tem que ter o dom da parteira, não tem que ter medo, tem que saber ver sangue, ou seja, “tem que ser mulher de verdade”, segundo ela.

Durante cinco anos, mesmo a mãe rejeitando a ensiná-la Dona Saluca pôde observá-la e às vezes ajudá-la em partos como em algumas benzeções. Quando completou 21 anos se casou com um rapaz (João dos Santos), o qual era pescador e tinha barco próprio, se mudou para casa que até hoje mora, teve oito filhos e conta que somente depois que foi para sua casa passou realmente a atuar como parteira, benzedora e puxadora. Considera-se abençoada por ter vindo com o dom de curar.

Narra que está viúva há mais de dez anos, mas, afirma que foi muito feliz no casamento, diz que o marido jamais quis que ela trabalhasse para ajudá-lo com o sustento doméstico. Dessa forma, ela pode se dedicar à função de parteira, benzimentos e puxações. Dos oitos filhos, seis são mulheres e dois são homens, só uma está solteira (Rosa) e mora com ela, os dois filhos (João Mário e José Francisco) assumiram os barcos de pesca do pai e quando casaram fizeram suas casas ao lado de Dona Saluca. Hoje são eles os responsáveis pelo sustento das três casas.

A narrativa de Dona Saluca confirma os achados de Pinto (2004)87, que diz que o ofício de parteira corresponde à tradição que na maioria das vezes é passada ou de mãe para filha ou mesmo que apresenta alguma relação de parentesco próximo. O aprendizado igualmente se faz da forma como ocorreu com Dona Saluca, é habitual surgir algum caso emergencial que a faz realizar o ato, acreditando ser dotada do “dom”, o associa a coragem e a

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Cf. PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Nas veredas da sobrevivência: memória, gênero e símbolo de poder feminino em povoados amazônicos. Belém: Pakatatu, 2004.

fé, para que a prática transcorra lhe assegurando confiança e poder de vida que a faz ser legitimada pelo grupo. Por meio das múltiplas experiências, a parteira segue embasando e aperfeiçoando seu saber.

Narra a vida que possui como sendo de muita “luta” e trabalho, mas se diz agradecida a Deus pelo dom, fala que à luz de seus 61 anos de vida, 43 anos são dedicados à atividade de assistência nos partos da localidade e imediações vizinhas, perdendo a conta de quantas crianças ajudou a nascer. Além da atividade de parteira também é reconhecida como profissional de saúde tradicional, porém afirma que não trata todas as doenças, quando sente alguma dificuldade manda para os irmãos (Seu Jorge ou Dona Maninha), diz que sabe puxar barriga cheia, mãe-do-corpo, esquenência, reumatismos, dismintidura, dor nos quartos, assim como benze quebrante, mau-olhado, cobreiro e esipla, fora esse universo sabe fazer vários tipos de remédios caseiros como chás, garrafadas, ungüentos, muitos destes aprendidos com os irmãos, com Dona Feliciana e outros por meio da própria curiosidade.

Dona Saluca diz que durante os anos de atuação, nunca cobrou qualquer atendimento, fala que os faz por caridade, mas é comum receber pequena ajuda das pessoas beneficiadas. Por outro lado, descreve o quanto é difícil principalmente a assistência ao parto, atualmente sua casa funciona como “maternidade”. Há quatro anos, em virtude das dificuldades de deslocamento, ao invés de ir às casas, começou a receber as mulheres em trabalho de parto na própria residência, inicialmente além de assistir aos partos, elas ficavam hospedadas por uma semana, hoje ficam apenas dois ou três dias, Dona Saluca justifica a redução por não dar mais conta do trabalho, diz que se sente cansada, não tendo mais disposição para lavar roupa e fazer comida.

Narra que fazer o parto não se restringe apenas em “pegar” a criança, há todo o trabalho durante a gravidez, que consiste em fabricar remédios como garrafadas que fortaleça a mulher, fazer puxações freqüentes na barriga para direcionar a criança para a via do parto, ficar próximo da mulher desde o momento que a barriga abaixe e orientar a “lavagem de bico88”, quando começar as primeiras dores. Na hora do parto, exige a preparação do local, na mulher é feito massagem nas costas e puxações na barriga até pegar a criança, depois há toda

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Técnica de lavagem do intestino, feita com um recipiente semelhante a uma chaleira, contendo dois litros de água morna, adaptado a este uma mangueira de borracha afunilada na ponta, a qual é introduzida no ânus da pessoa atendida.

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a limpeza a ser feita, a espera da saída da companheira (placenta), a “cura” do umbigo do neném e posteriormente as orientações no resguardo com a alimentação, os remédios, a queda do umbigo da criança e outras, afirma que devido ao excesso de trabalho adquiriu algumas doenças, as quais chama de “entrevamento da lida”, afirmando que está com reumatismos nas juntas, relata sentir muitas dores, precisando recorrer aos cuidados da irmã Dona Maninha com freqüência. Seus filhos também não mais aprovam a atividade, falam que ela não precisa passar por isso, o que Dona Saluca diz fazer porque se sente chamada, acredita que esse é o dom que Deus lhe deu para usar e que enquanto tiver saúde vai fazer.

Dona Saluca, durante sua narrativa, faz diversas críticas reclamando da falta de incentivo por parte das autoridades responsáveis pela saúde na localidade, conta que há cinco anos foi convidada a participar do projeto de capacitação de parteiras oferecido pelo Governo do Estado, desenvolvido no hospital da Santa Casa de Misericórdia no Município de Belém, com duração de três meses, ela aceitou participar, porém ao chegar a Belém, apenas a estadia era custeada, as outras despesas como alimentação e transporte eles não pagavam, diante do fato, conseguiu ficar um mês e retornou a Chipaiá. Reconhece que o ensinamento lhe foi bastante útil, aprendeu a ter mais cuidado com o material de parto, a esterilizar melhor a tesoura, usar gaze, luva e sobre os riscos de infecção, hoje acredita ter mais cautela na realização dos partos, mas afirma que o material é escasso e dispendioso, diz contar com a boa vontade das pessoas, que viajam para Icoaraci ou Cachoeira do Arari para comprar o necessário. Apesar do reconhecimento dos moradores do local, não observa a mesma atenção das autoridades, afirmando que em época de eleição, muitos vão a ela e prometem ajudá-la, e quando passa nada acontece.