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O contraponto das duas realidades, semelhanças e diferenças no espaço social

2. No porto das trajetórias e identidades

Neste porto desembarco na expectativa de conhecer singularidades e pessoas que me possibilitem os instrumentos para esta viagem. Fico imaginando se a identidade deles é construída a partir da trajetória de vida ou se a trajetória trilhada é fruto de como eles se reconhecem, considerando que são profissionais de saúde tradicionais, integrantes do Sistema Tradicional de Ação para a Saúde (STAS), praticam curas no corpo de outras pessoas, seus saberes são construídos a partir do “dom”, demandados por lógica mágico-simbólica dominada pela oralidade e repassados via tradição para as gerações posteriores.

Ao modo de Durkheim (1977)76, sou levada a concordar que as práticas de saúde tradicionais representam fato social, baseando-me nos seguintes pontos: o caráter universal, existem em todas as sociedades; o caráter de anterioridade, a origem é baseada na cosmologia de cada povo e, como dado social, consistem em maneiras de agir que vão solucionar problemas com ordem prática, no caso estudado o restabelecimento da saúde. Porém, quando tomo o indivíduo na singularidade por meio das narrativas das histórias de vidas, percebo os fatos comuns nas trajetórias em Chipaiá ou em Icoaraci, no entanto observo ainda nas entrelinhas, os fatos que são peculiares a cada pessoa que não apenas dizem respeito à identidade de profissional de saúde tradicional, mas, igualmente, à necessidade de se colocar dentro de dada ordem social.

Os profissionais de saúde tradicionais, por serem detentores de habilidades incomuns exercem papel social semelhante ao que Mauss (2003) considera a respeito do papel social dos mágicos77. Por meio dos ritos e representações passam a ser o foco de sentimentos

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Fato social para Durkheim, é algo dado, está na sociedade, antecede o indivíduo, predispondo a possibilidade de separar o sujeito do objeto, Os indivíduos se integram ao fato social, vivendo uma dualidade, compostos de seus estados mentais que correspondem ao ser individual e do sistema de idéias que retratam sentimentos e hábitos do grupo social que se vive, nesse sistema estão inseridas as crenças religiosas, as práticas morais, as tradições nacionais e profissionais, fazendo desse indivíduo um ser social. No entanto para que ele chegue a esse patamar é necessário passar por um processo social, o qual é caracterizado pela educação que tem por objetivo constituir e organizar este ser social em cada um de nós, por meio da moral, que forma a vontade e que governa o desejo; da linguagem que eleva o homem acima do domínio da sensação. A religião vem em primeiro lugar e a ciência em segundo, permitindo, dessa forma, a inteligência tornar-se propriamente humana, tendo a ciência a propriedade de conferir autonomia ao indivíduo, ou seja, a atitude de aceitar a regra social. Conferir: DURKHEIM, Émile. Regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1977. (grifos meus).

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Segundo Mauss (2003), os mágicos são agentes da magia, ou seja, indivíduos que exercem um papel de detentores de habilidades extraordinárias e diferenciadas, ao pertencerem a um grupo, passam a ser foco de

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sociais, gerando condições para o aparecimento de crenças. O próprio grupo legitima o profissional delegando-lhe poder exercido sobre os membros do mesmo. As trajetórias trabalhadas na pesquisa pertencem a oito profissionais de saúde tradicionais que exercem as atividades, quatro em Chipaiá, e outros quatro em Icoaraci, os quais foram escolhidos como interlocutores considerando: (1) a disponibilidade de participação; (2) a condição de especializados nas técnicas de puxação; (3) a credibilidade social; e (4) a importância social conferida pelas pessoas que receberam tratamento.

As narrativas são fruto de entrevistas abertas efetuadas durante minha estadia junto a eles, o clima de informalidade da conversa se sobrepôs às anotações feitas em caderneta assim como as interrupções para manusear o gravador. No geral, a participação de cada interlocutor se deu de forma tranqüila, principalmente, a partir do momento que foram estabelecidos na relação, os vínculos de confiança. Em Chipaiá fiquei em média quatro dias por mês durante seis meses, e em Icoaraci me deslocava três tardes por semana, acompanhando cada profissional de saúde tradicional deste local por três semanas em média, ficando ao todo quatro meses.

A partir da análise das experiências narradas tenho por objetivo compreender como os profissionais de saúde tradicionais se percebem dentro do contexto cultural das localidades estudadas e de acordo com as características próprias de cada uma. Para isso se fez necessário compreender para além das práticas de tratamento e adentrar no universo de relações familiares e sociais nas quais estão inseridos. É possível perceber o processo de transformação que passam tanto na maneira de viver, como na construção de suas práticas. Durante as entrevistas foram comuns comentários como: “hoje tá tudo mudado, as pessoas num têm mais o respeito de antes”, “quase ninguém mais quer acreditar nas histórias dos bichos, é por isso que sofre e depois quer que ajude”, “às vezes a gente passa um remédio, mas a pessoa prefere ir na farmácia, acha que é mais rápido”, “hoje tá tudo fácil, tem livro com figura e tudo, a gente vê o corpo todinho.” Tais considerações, demonstram de forma geral as reações frente à atualização cultural e, conseqüentemente, emerge o conteúdo simbólico contido em cada referência.

sentimentos sociais, gerando condições para o estabelecimento da crença, assim esse grupo os reconhece à medida que seus feitos propiciem a eficácia.