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Fonte - Rodrigo Diniz, Maio de 2012.

A primeira sujeita ouvida em nossa pesquisa é Nadir Balbina da Rocha, mais conhecida como Dona Nadir. É assim que todos a chamam no distrito de Perus, onde reside há 26 anos. Tem renda familiar entre dois e três salários mínimos, garantida pela filha que é diretora de uma escola infantil; Dona Nadir trabalha como presidente vitalícia da organização social sem fins lucrativos - Centro de Apoio Comunitário de Perus (CACP) que ela mesma fundou.

Com 66 anos de idade, ensino médio completo cursado na modalidade supletiva, Dona Nadir reside hoje com um de seus oito filhos, mas houve um tempo em que estiveram sob os seus cuidados 130 crianças que moravam com ela, todos filhos de outras pessoas pobres da região, os quais Dona Nadir reunia em sua casa para lhes dar comida, banho, roupa e escola.

Eu mesmo não sou daqui, nasci em Mariana, depois eu fui para o sítio, meu pai tinha um sítio e eu fiquei lá até os nove anos, depois meu pai faleceu e minha mãe veio para cá, minha mãe mudou para

São Paulo e eu vim com ela, e naquela época tinha o costume de dar os filhos para uma família. Quando eu vim com a minha mãe ela me deu para a família Monteiro da Silva, eles eram donos da vidraria Santa Marina, então eu morei muitos anos na vidraria Santa Marina. Depois que o velho morreu, seu Brasilio, mudamos e então fomos para avenida Rebouças e depois me casei e a família foi padrinho de todas as minhas crianças, eles foram batizados na Igreja da Nossa Senhora do Brasil (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

Essa é a síntese da primeira etapa da trajetória de Dona Nadir na cidade de São Paulo, que veio para a metrópole com mãe que, sem condições de criá-la, a entregou para uma família de industriais. Observa-se que o evento da mobilidade urbana está presente logo na apresentação de Dona Nadir, explorando os processos e rumos de transformação de sua trajetória e experiência social, ganhando materialidade nos novos espaços de vida na cidade grande.

Assim, a mobilidade de lugar tipicamente rural para o espaço urbano coloca para Dona Nadir o contato com novas práticas e contextos sociais. Nadir conta que foi com essa família que aprendeu a trabalhar com o social, como ela mesma relata:

Nessa família eles trabalhavam com clube de mães às quartas- feiras, então eles davam leite e enxovalzinho. Eu ajudava muita elas naquela época, íamos muito na Santa Marina21 dando cesta básica, leite, enxovalzinho para aquelas famílias bem pobrezinhas da Santa Marina, depois me casei, fiquei morando aqui na Cachoerinha por um bom tempo, depois fui para Pirajuí e voltei para cá e aí foi assim que eu vim para Perus (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

Após casar-se, foi morar em Pirajuí, interior de São Paulo, com seu marido e oito filhos, permanecendo por oito anos nessa cidade. Volta para São Paulo com os filhos e, após a separação conjugal, residiu na Vila Sônia na região sudoeste da cidade, voltou novamente para Pirajuí por causa da grande dificuldade de sobrevivência na cidade de São Paulo. Mais uma vez a trajetória de Nadir é edificada sob as bases da mobilidade como processo de gravitação da experiência social, na busca por espaços que de fato pudessem acolhê-la com melhores condições. Esse processo evidencia a viração como processo de busca por condições adequadas de sobrevivência nas cidades, sobretudo para os pobres urbanos.

21 Indústria de artigos de louças de vidro, que na extensão da fábrica abrigava casas de operários, na

qual a família proprietária, especialmente as mulheres, faziam ações de caridade para com as famílias de operários da fábrica.

Eu morava em Pirajuí, interior de São Paulo, na minha separação, quando me separei do meu marido fiquei com oito filhos, seis meus e dois de criação. Foi aí que vim para São Paulo, fui morar na Vila Sônia, perto do Murumbi, morei lá dois anos. Depois desses dois anos voltei para Pirajuí, porque a situação aqui estava difícil, e fiquei lá por mais dois anos, e depois disso que vim morar em Perus. No total fiquei em Pirajuí uns dez anos, e daí eu mudei para Perus e comecei a trabalhar fora (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

As constantes mudanças entre as cidades de São Paulo e Pirajuí são expressas com certo sofrimento por parte de Dona Nadir, revelando que a mobilidade entre as cidades movimentava um itinerário de escolhas e experimentação sobre o melhor lugar para sobreviver. E São Paulo, como cidade das oportunidades de gente guerreira como a própria Dona Nadir expressa, foi a cidade escolhida para sediar o viver familiar, para resistir e lutar para garantir o sustento dos filhos.

A cidade de São Paulo é totalmente diferente das outras, todo mundo fala que o Rio de Janeiro é a cidade maravilhosa, eu não acho. O que eu acho é que gosto muito de viver aqui em São Paulo, São Paulo é oportunidade, se você tiver força de vontade e desejo de viver e vencer na vida, se você vier para São Paulo para esperar o que caí do céu você não consegue viver em São Paulo. Porque São Paulo é uma cidade de luta, uma cidade de pessoas guerreiras (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

É presente na oralidade de Dona Nadir que a cidade se faz na garra, que a vida é movimentada pelo trabalho, pelo constante movimento de correr atrás da sobrevivência (viração). Alerta em suas expressões que precisa ter garra e força para resistir à realidade urbana da cidade de São Paulo, que nada cai do céu, que viver aqui é perigoso. Por isso tem de ser guerreiro, como um soldado de guerra, pronto para as batalhas e combates cotidianos.

Ser guerreiro na cidade de São Paulo é estar sempre atento, pois a guerra é entendida como uma relação social permanente para nossa sujeita e para as milhares de pessoas que vivem em busca do seu lugar na maior metrópole da América Latina.

São Paulo é uma cidade se você não souber remar bem o seu barco você morre na praia, você morre no meio do mar, você entendeu? Porque São Paulo, você tem que ir reto e não olhar para trás, você tem que ir para frente, quem olha para trás ou pros lados morre no mar (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

É com esse espírito de luta que Dona Nadir aprendeu a viver no distrito de Perus, relata que foi nesse local que aprendeu a lutar, que aprendeu a ajudar os outros, tecendo redes de solidariedade, conexão de ajuda entre os outros pobres, Assim como relata Vera da Silva Telles (2006, p. 66 – 116):

Nos relatos biográficos de indivíduos e suas famílias, há sempre o registro de práticas e redes sociais mobilizadas (ou construídas) nos agenciamentos cotidianos da vida, que passam pelas relações de proximidade, mas não se reduzem ao seu perímetro.

É pela força das precariedades do local que começou a se movimentar para garantir o mínimo de proteção social para si e para os vizinhos; começou a se articular e promover pequenas ações que foram se fortalecendo ao longo do tempo, que a tornaram reconhecida no lugar como uma líder comunitária.

Aqui em Perus faz 26 anos que estou por aqui, foi em 1987 que vim para cá, desde que me separei nunca mais quis me casar, comecei sozinha a cuidar das minhas crianças e comecei a trabalhar com mais crianças. Teve uma época que eu tinha 130 crianças dentro de casa, dessas, cem iam embora e trinta moravam mesmo comigo, não nesta casa, mas lá onde é o Centro de Apoio.

Era complicado cuidar dessas crianças, porque minhas filhas já eram todas mocinhas e achavam que eu era louca, tinha que cuidar dos piolhos, tinha que dar banho, tinha que mandar para a escola, fazer lição, tinha que fazer comida. E na frente da minha casa eu tinha um barzinho, que eu trabalhava de noite para essas crianças poderem comer de dia. Olha o sacrifício, eu não tinha ajuda era muito difícil, as vizinhanças juntavam moedas e iam dar para mim, era muito complicado mesmo. [...]

Foi muito engraçado que no início do meu trabalho fui fazer uma pesquisa com um deputado lá no Morro Doce, e justo nesse dia eu tinha encontrado com uma senhora recém chegada de Rondônia, com oito filhos e passava fome, com uma filha de três aninhos que estava morta em cima da cama. E foi nessa época que eu comecei a me empenhar para ajudar as famílias, comecei a enfrentar a luta mesmo, eu pensava assim: eu achei tanta gente boa que me ajudou por que eu não posso ajudar, eu não tinha mais filhos pequenos e então poderia ajudar um e outro.

Em Perus, quando eu comecei a trabalhar, aqui eu fiz minha vida completamente diferente, eu não quis nada para mim, eu quis ajudar. Nessa caminhada eu tenho encontrado coisas boas e tenho também encontrado coisas difíceis no meu caminhar, encontrei dificuldades em pedir, é um sofrimento você pedir alguma coisa para o outro, e é muito mais triste pedir para você mesmo (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

Através da vivência no distrito de Perus Dona Nadir começa a perceber que sua situação de pobreza e de outros era semelhante, sendo uma característica do

local com inúmeras faltas de oportunidades, concentração populacional e poucas condições de urbanização. Reconhece o sofrimento da vivência em uma “urbanização desurbanizada” (LEFEBVRE, 2008).

Como movimento para superação das mazelas sofridas ao seu redor, Nadir inicia ações de ajuda, mesmo que de forma doméstica e imediata, a outras famílias em situação de extrema pobreza, revelando uma política de reconhecimento genérico das dores e sofrimentos humanos de seu território, movimentando a solidariedade como aspecto que move e nutre a força para contestar a precarização da vida no território pobre de Perus.

É na base da luta como uma característica de vida que nossa sujeita se estabeleceu em Perus, sendo referência para outras famílias e sujeitos em situação de vulnerabilidade e risco social. Na tentativa de movimentar o cuidado e a proteção social inexistentes no território que Dona Nadir vai construindo seu trabalho e monta a organização social Centro de Apoio Comunitário de Perus (CACP).

Afiançada pelos laços de companheirismo, reciprocidade e preocupação com seus pares no lugar onde vive, institucionaliza seu trabalho por via da estruturação de uma organização social sem fins lucrativos no início da década de 1990.

É importante expressar que a constituição da organização social teve forte influência do período de minimização do Estado, atrelada aos interesses de uma política econômica da privatização das empresas públicas, corte nos gastos com políticas públicas e sociais e uma ampla campanha de incentivo e fortalecimento para a criação de organizações da sociedade civil, encabeçada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que incentiva recursos fiscais para a subvenção e facilidade na documentação e reconhecimento de mérito social para organizações da sociedade civil.

Essas ações foram amplamente trabalhadas e incentivadas no Brasil através do Programa Comunidade Solidária22 do governo federal brasileiro entre os anos de 1995 a 2001. Este programa esteve vinculado diretamente ao Ministério da Casa Civil da Presidência da República e foi organizado e administrado pela então primeira-dama do país, Dona Ruth Cardoso.

22 Para uma análise crítica e aprofundada sobre a temática do fortalecimento do terceiro setor no

Brasil, consultar a obra de Carlos Montaño “Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social” publicado pela editora Cortez - São Paulo.

Entre outras ações, o Programa Comunidade Solidária fazia parte da rede de proteção social estabelecida pelo governo FHC. No bojo desse contexto, Dona Nadir, nossa sujeita de pesquisa, cria sua organização social - o Centro de Apoio Comunitário de Perus.

E foi aí que montei a ONG e nessa época conheci a Dona Ruth Cardoso que também incentivava a montar a ONG que o marido dela ia ajudar. Foi aí que eu montei a ONG, ele (Fernando Henrique Cardoso) me mandou toda a documentação, a documentação federal veio antes da documentação do Estado e do Município, no meu caso veio todo ao contrário.

Quando veio o Celso Pita23 ele não quis me dar a documentação e quando foi a vez da Marta,24 eu consegui a documentação toda da ONG, eu já tinha estatuto, ata, as matrículas federais e só a matricula de SMADS que não, não tinha do município.

E com a Marta, comecei com a creche na SAS, que hoje voltou a ser SAS novamente, aí eu comecei a trabalhar com as crianças, e todo mundo, idosos e famílias (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

E é nesse contexto que Dona Nadir começou seu trabalho no território de Perus, sob a égide do fomento de intervenções na questão social dentro da lógica da sociedade civil. Com o apoio estatal para a abertura de sua organização social, a fim de efetuar intervenções nas expressões da questão social, esse processo é analisado por Telles (2006, p.66 – 116):

Ao mesmo tempo e no mesmo passo em que ganha forma a versão brasileira das “metamorfoses da questão social”, os programas sociais se multiplicam pelas periferias afora e em torno deles vão se proliferando, por todos os cantos, associações ditas comunitárias que tratam de se converter à lógica gestionária do chamado empreendedorismo social, se credenciar como parceiras dos poderes públicos locais e disputar recursos junto a fundações privadas [...].

E é nessa complexa trama de projetos econômicos e estratégias de proteção social por via das lógicas da sociedade civil que Dona Nadir movimenta a busca pela força do lugar. Intencionando de uma maneira ou de outra cobrir a inexistência de proteção social que certamente deveria ser afiançada pelo Estado, mas que não chega de forma certa até as crianças, idosos e famílias dos territórios pobres do distrito de Perus.

23 Celso Pita foi prefeito da Cidade de São Paulo, pelo Partido Progressista, entre os anos de 1997 a

2001.

24 Marta Suplicy foi também prefeita da Cidade de São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores – PT,

Mas a proteção social presente neste território, ainda que se apresente hoje com uma maior gama de equipamentos e serviços públicos, está longe de ser a ideal de um Estado forte e compromissado com a equidade e justiça social. O que existe é a luta cotidiana da população para garantir o mínimo. Os sujeitos se viram e se reviram como podem para proteger-se contra a realidade econômico-social da nova reestruturação produtiva, do desemprego de massa e de outros tantos agravantes socioeconômicos que afligem os pobres.

Dona Nadir, remando seu barco sem olhar para trás, vai tecendo sua expectativa para o futuro, posicionando-se coletivamente para a busca da melhoria do seu espaço de vida. Como revela:

Eu acho que foi essa minha luta enquanto cidadã no bairro de Perus, está sendo essa minha luta ainda, e acredito que vou lutar muito ainda daqui para frente, eu tenho um espírito de luta, como você vê, eu corro para todos os lugares, eu tento buscar ali, busco lá. Então eu acho isso muito importante, você lutar para conseguir dias melhores. [...]

Eu me tornei mais forte, com mais saúde, mais resistente frente às adversidades; conheço muita gente, viro para todo lado, para buscar o bem-estar da comunidade, só não consigo mais porque uma andorinha não faz verão.

E às vezes quando você depende de uns e não consegue, a gente volta para casa e pensa que dias melhores virão (Nadir Balbina, depoimento colhido em maio de 2012).

Marília: a agente de luta que transita entre as marcas do passado e força do presente

No documento MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2012 (páginas 149-156)