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2.4 Evolução doutrinária do princípio jurídico como norma

2.4.1 Doutrina estrangeira

Costuma-se apontar Jean Boulanger, professor da Faculdade de Direito de Lille, como o primeiro doutrinador que estudou a positividade dos princípios.

Segundo Boulanger, tanto o princípio quanto a norma são dotados de generalidade; no entanto, a norma disciplina tão-somente os atos ou fatos elencados em seu enunciado, enquanto o princípio comporta uma série indefinida de aplicações, isto é, pode subsumir atos ou fatos variados porque fornece uma série de soluções. Além disso, enquanto o enunciado da norma é escrito, o enunciado do princípio não o é, consistindo na manifestação do espírito da legislação (apud GRAU, 1998:94-95).

A seu turno, Josef Esser reconheceu a força normativa do princípio, que, embora não tenha um enunciado escrito, é uma diretriz para justificar determinada decisão judicial.

Os princípios se normatizam "en la medida en que han sido encarnados en una institución, por un acto constitutivo del poder legislativo, de la jurisprudencia o de la vida jurídica" (ESSER, 1961:169).

Nesse rumo de idéias, o princípio se concretiza por meio de um intérprete, porque é vago e indeterminado. Por isso "son guides para las 'autoridades jurídicas', que gracias a ellas crean derecho" (ESSER, 1961:172).

Em resumo, Josef Esser entendia que o princípio era descoberto dentro do sistema normativo, servindo de direção para a decisão judicial ou a feitura de leis para situações não contempladas nas normas positivadas pelo Estado.

Não se deve olvidar, porém, que os autores até aqui expostos acabam por contrapor a idéia de norma e princípio como entes distintos que integravam o sistema jurídico positivo do Estado. O princípio era tido e considerado mais importante que a norma, uma vez que o primeiro servia de fundamento para dar coerência ao sistema.

Vezio Crisafulli contestou a visão de princípio como diretriz normativa a ser utilizada na decisão do juiz, pena de este último se converter em legislador. Consoante a sua visão, o juiz não cria a norma, mas a aplica ao caso em julgamento; logo, o princípio é uma norma que já está positivada dentro do sistema, quer de forma implícita, quer explícita, servindo de fundamento para outras normas.

Estas as palavras de Crisafulli para definir princípio:

(...) toda norma jurídica considerada como determinante de outra ou outras que lhe são subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (apud

BONAVIDES, 2003:273).

Não é necessário maior malabarismo mental para concluir que Vezio Crisafulli entende ser o princípio uma norma jurídica dotada de imperatividade e, portanto, vinculante, não sendo uma simples diretriz ao Poder Judiciário.

A partir daí o princípio passou a ser considerado uma norma e, portanto, um elemento componente do sistema jurídico, com a elevada função de representar o norte para o desenvolvimento das demais normas jurídicas e, ainda, servir de critério de interpretação para harmonizar o sistema, que é permeado de valores.

Reconhecida a normatividade dos princípios, coube a Ronald Dworkin a tarefa de melhor aclarar os conceitos de norma jurídica, princípio e regra, consoante passamos a demonstrar.

Parte o aludido Mestre de Oxford da premissa de que o conceito de sistema jurídico, significando a ordenação de normas jurídicas de um mesmo tipo, não correspondia à realidade vivenciada nos Tribunais.

Este modelo de sistema jurídico, seguido por Hart (2001:325), deve ser considerado insatisfatório e ultrapassado, na visão de Dworkin. Isso porque o sistema normativo proposto por Hart é baseado na validade das normas, o que significa, noutras palavras, que, se uma norma foi posta por autoridade competente, é válida e, portanto, deve ser aplicada ao caso concreto de acordo com o enunciado expresso nela.

Sucede, porém, que existem inúmeras situações em que não há normas claras e específicas para solução do problema, e dentro do sistema jurídico se abrem várias possibilidades para decidir a questão, devendo o juiz buscar a solução mais correta também de acordo com as normas jurídicas (DWORKIN, 2002:127).

Em várias decisões, os tribunais não se valem de uma regra jurídica específica para decidir a causa, mas se fulcram em normas que têm a

peculiaridade de não conter em seu enunciado a descrição fática específica de determinado ato ou fato. Diante da constatação acima explicitada, fácil perceber que o sistema normativo é composto por espécies de normas e não por um único tipo.

Dworkin sustenta, com fulcro no raciocínio acima resumido, que o sistema jurídico de um Estado é composto por regras e princípios, sendo ambos espécies de norma jurídica. Agora não há mais uma dicotomia entre princípio e norma, mas uma relação entre gênero (norma) e as espécies (regras e princípios).

Na seqüência de sua lição, assevera que os princípios não impõem comportamentos específicos como as regras; eles apenas estabelecem metas (policy) a serem alcançadas ou padrões gerais de comportamento (standarts). Entende, igualmente, que as regras seguem o sistema do "tudo ou nada", a significar que, se o fato ou ato específico descrito no enunciado da norma foi realizado no mundo fenomênico, aplica-se a regra (tudo); caso contrário não (nada). Já os princípios, por constituírem padrões de comportamento ou metas a serem atingidas, fornecem uma razão para a decisão; logo, o princípio se aplica de acordo com o critério do valor, ou peso, ou importância (DWORKIN, 2002:39-43).

Finalmente, diz ainda sua doutrina que o conflito entre duas regras opostas é uma falsa antinomia, que será solucionada pelo próprio sistema, que excluirá uma delas por meio de variados critérios, tais como: a) a norma posterior revoga a anterior (cronológico); b) a norma especial afasta a geral (especialidade); e c) a norma de maior hierarquia prevalece sobre a de menor (hierárquico). Em contrapartida, havendo colisão de princípios, nenhum deles é excluído do sistema; somente se prefere um deles pela maior importância revelada para a solução que se apresente a mais justa possível.

O grande mérito de Ronald Dworkin foi perceber que o sistema normativo é composto por regras e princípios, e os últimos têm um peso ou

importância ímpar dentro dele, porque exprimem uma alta carga valorativa se comparados às regras.

Robert Alexy, outro grande teórico que se debruçou sobre o assunto, concorda com o posicionamento de Dworkin no que tange ao fato de o sistema normativo ser composto por regras e princípios. Também entende, tal qual Dworkin, que existem diferenças entre princípios e regras; contudo, Alexy discorda dos critérios de diferenciação propostos por Dworkin porque os entende simples ou formais e não materiais (ALEXY, 2002:99).

Na visão de Dworkin, segundo Alexy, o caso de conflito entre princípios resolve-se mediante a dimensão do peso ou da importância dos princípios dentro do sistema jurídico. Isso equivale a dizer que a dimensão do peso é um atributo abstrato dos princípios em conflito, impondo ao julgador a escolha do princípio que tenha maior dimensão.

O aludido raciocínio, conforme Alexy, não é correto, porque a prevalência de um princípio sobre o outro é o resultado de um juízo valorativo do julgador, que, empiricamente, opta pelo princípio entendido mais adequado para uma justa solução da lide que lhe é apresentada.

Seguindo nesse rumo de idéias, Alexy sustenta que, enquanto a regra é uma determinação específica, o princípio é um mandamento de otimização, o qual busca a realização de valores a serem cumpridos nos mais diversos graus, dependendo, por óbvio, das possibilidades fáticas e jurídicas. Assim, a diferença entre regra e princípio centra-se na determinabilidade do resultado a ser alcançado (ALEXY, 2002:86).

A regra impõe um resultado determinado (específico), enquanto o princípio prescreve um objetivo a ser atingido, ou seja, um resultado cujo alcance pode variar por múltiplos fatores (sociais, econômicos, políticos, jurídicos).

Incumbe ao juiz, na colisão entre princípios, realizar uma ponderação axiológica, procurando descobrir o princípio que naquele momento é o melhor a ser aplicado; daí por que somente de forma imprópria é possível falar em antinomia entre princípios, já que a aplicação de um deles ao caso concreto não exclui o outro, que poderá vir a ser utilizado em situação diversa.

A diferença entre as concepções de Dworkin e Alexy no que tange à caracterização do princípio tem grande efeito prático, qual seja, o prognóstico do resultado do julgamento de um caso concreto, quando houver colisão de princípios.

Para Dworkin haverá apenas uma decisão correta, porque o juiz deverá aplicar sempre o princípio de maior peso ou importância, que será revelado pela análise do sistema jurídico, uma vez que o peso é um atributo intrínseco de todo e qualquer princípio.

A seu turno, Alexy entende que se abre a possibilidade de haver decisões conflitantes entre os vários juizes, porque existem princípios que têm o mesmo peso ou importância, e, dessa maneira, a escolha de um deles ficará a critério da valoração do juiz no caso concreto. Nesta hipótese, o Poder Judiciário procurará aplicar o princípio que tenha maior otimização.