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1.3 Norma jurídica como imperativo teorias

1.3.5 Imperativos-coativos de Kant e Kelsen

A idéia de que a coação é elemento essencial do direito não é nova. Já podia ser notada em Aristóteles, na Ética a Nicômaco, quando informava que a lei "tem força coativa". Também Tomás de Aquino, no século XIII, evocava a força coativa da lei. Igualmente Christian Thomasius, nos séculos XVII e XVIII, sustentava que a coatividade pertencia ao direito, sendo o critério utilizado para diferenciá-lo da moral, uma vez que o primeiro possuía uma sanção certa e determinada pelo Estado.

Immanuel Kant também considera a coação elemento essencial do direito porque

(...) sí un cierto uso de la libertad es él mismo un obstáculo al libertad según leyes generales ---- es decir, no conforme al Derecho ----, la coación es un impedimiento de un obstáculo a la libertad. O, lo que es lo mismo, la coacción es conforme al Derecho se halla unida en sí la facultad de ejercer coacción sobre aquél que le viola. Derecho y facultad de coacción significan, por tanto, una y la misma cosa (apud VASCONCELOS, 2002:71).

O gênio de Kant consistiu em perceber que a coação não é oposta ao direito, mas é parte deste, que se vale da força para garantir a liberdade das pessoas, a qual é a finalidade da ordem jurídica.

A concepção de Kant foi seguida, no século XIX, por Rudolf von Jhering que, na obra A Finalidade do Direito, de 1877, definiu o direito como: "o conjunto de normas coativas válidas num Estado, e esta definição, a meu ver, atingiu perfeitamente o essencial. Os dois fatores que ela inclui são o da norma e o da realização através da coação" (apud GODOY, 2000:63).

A visão da coação como a essência do direito ainda persiste nos dias atuais, principalmente por causa de Hans Kelsen, que define o direito como a "técnica social específica de uma ordem coercitiva" (KELSEN, 2000:27), cujas normas devem estipular um ato coercitivo, ou seja, uma sanção.

Em que pese o prestígio dos partidários dessa doutrina, ao entender que a coação ou coatividade ou coerção ou coercibilidade é elemento essencial da norma jurídica, três argumentos básicos são lançados para derrubar mencionada tese.

Primeiro, se a norma é espontaneamente obedecida, a sanção seria uma exceção. Ora, não há como considerar como essência um elemento que é acidental. Se a norma vier a ser cumprida espontaneamente, não haverá aplicação de nenhuma sanção, e, mesmo assim, a norma continuará sendo considerada jurídica.

Kelsen rebateu este primeiro argumento, aduzindo ser a sanção o meio empregado pelo direito para fazer valer a imperatividade de suas normas, que somente podem ser consideradas jurídicas pela sanção. Caso contrário, se houvesse a adesão espontânea de todos ao cumprimento da norma, não haveria necessidade da existência do direito, ou seja, de normas jurídicas (KELSEN, 2000:40).

A asserção de Kelsen é lógica, mas apenas se a coação for sempre entendida como um mal, ou seja, uma retribuição pelo descumprimento da norma.

Entretanto, consoante será explicado, existem normas jurídicas que têm sanções premiais, principalmente no campo do direito tributário; logo, difícil sustentar que a sanção benéfica seja elemento essencial da ordem jurídica.

O segundo argumento contrário à coatividade como elemento essencial da norma jurídica é a existência de normas sem sanção, fato comum de ocorrer nos sistemas jurídicos estatais e também no âmbito do direito internacional público, que disciplina as relações entre os Estados soberanos.

Bobbio rebate essa objeção afirmando que normas jurídicas desprovidas de sanção existem por dois motivos: a) o legislador entende que tais normas, por serem justas e estarem de acordo com a consciência popular, terão adesão espontânea, e, portanto, a sanção é considerada "inútil"; b) a norma é dirigida a autoridade tão alta que a imposição de uma sanção seria "impossível". De qualquer sorte, tais normas poderão ser sancionadas por outras normas do ordenamento jurídico (BOBBIO, 2003:167).

Contudo, existem ordenamentos jurídicos que não tem sanção organizada. Neste caso, como resolver o problema de considerar a sanção elemento essencial da norma jurídica?

Uma vez mais, Bobbio procura responder a essa objeção, tendo como parâmetro o direito internacional público. Em sua ótica, aludido direito é provido de sanção, que pode ser organizada ou não organizada. No último caso, teríamos uma espécie de estado de natureza entre os Estados soberanos e a sanção seria a guerra. De qualquer maneira, existe a sanção como elemento essencial da norma jurídica; somente o que varia é a organização ou não desta (BOBBIO, 2003:172).

Não obstante o brilho da resposta, ousamos dela discordar, porque, se a sanção fosse elemento essencial da norma jurídica, toda e qualquer norma deveria contê-la, o que não ocorre, consoante reconhece Bobbio ao aduzir que há normas cuja sanção é "inútil" ou "impossível". Ora, o que é "inútil" ou “impossível” não pode ser considerado essência de um objeto.

De mais a mais, considerar a guerra uma espécie de sanção não organizada no direito internacional público, é estranho, dado que é possível declarar guerra entre os Estados sem que haja nenhuma norma jurídica violada, uma vez que a guerra se coaduna com a força bruta e a norma jurídica visa, efetivamente, domá-la.

O último argumento contra a coatividade da norma jurídica é a possibilidade de séries infinitas de sanção, já que a norma que estabelece a sanção somente é jurídica por causa de outra norma, também provida de sanção, e assim sucessivamente; logo, o sistema normativo nunca teria fim, ou, então, forçoso reconhecer que a primeira norma do sistema não teria outra norma que estabelecesse uma sanção para o seu descumprimento.

Kelsen responde a esta objeção asseverando que "uma regra é uma regra jurídica não porque sua eficácia é assegurada por outra regra que prevê uma sanção: uma regra é uma regra jurídica porque ela prevê uma sanção". (KELSEN, 2000:41). Daí por que a norma hipotética fundamental não é uma norma posta, mas sim pressuposta, uma vez que pensada e desprovida de sanção.

Bobbio vai mais longe e admite que existem normas superiores do ordenamento jurídico que não seriam providas de sanção porque "representam aquele mínimo de consenso sem o qual nenhum Estado poderia sobreviver" (BOBBIO, 2003:176); portanto, a sanção aqui seria "impossível" ou "inútil".

Aqui os partidários da tese imperativo-coativa não conseguiram responder a constatação de que há normas imperativas desprovidas de coatividade e, portanto, sem uma sanção.

Kelsen procurou justificar seu posicionamento por meio da norma hipotética fundamental, que seria pressuposta e não posta. Contudo, como uma norma pressuposta pode ser fundamento de validade de outra norma, na medida em que essa norma pressuposta não prevê sanção para o eventual descumprimento da norma posta?

A aparente contradição foi superada pela criação especulativa desse mesmo autor, o qual partiu da norma hipotética fundamental como ente ideal para dar início ao sistema normativo em termos de puro raciocínio lógico dedutivo, sem se preocupar com o conteúdo dessa norma.

Mas a despeito de toda a sua criatividade, fato é que o direito não pode ser considerado um conjunto de normas coativas, porque a primeira norma do sistema, caso descumprida, ficará sem punição, porque não está prevista a existência de uma autoridade superior para impor sanção pelo seu eventual descumprimento.

Um exemplo irá melhor ilustrar o raciocínio: imagine-se que uma cláusula da Constituição seja modificada por proposta de iniciativa de um único deputado, com aprovação do Legislativo, e o Judiciário tenha essa mudança como válida. Nessa situação, qual sanção será cabível para os titulares desses poderes? Quem irá aplicar tal sanção?

No atual estágio do direito, não existe uma autoridade superior para aplicar uma punição pelo descumprimento da norma jurídica constitucional, mesmo assim a Constituição Federal continuará a existir e a mudança, embora

inconstitucional, passará a fazer parte de seu texto. Isso demonstra a possibilidade de existir norma jurídica sem sanção.

Não se desconhece que o citado problema é facilmente solucionado pela doutrina de Kelsen, a qual sustentaria que houve uma revolução e, portanto, a institucionalização de uma nova ordem jurídica.

Mas, caso a mudança tenha sido de um único dispositivo considerado de baixo cunho axiológico dentro da Carta Magna, como, por exemplo, a modificação do prazo estabelecido no § 2º do artigo 217 da Constituição Federal, será que mesmo assim se teria uma revolução em termos jurídicos, passando a Constituição a deixar de valer? Parece que não, daí por que o exemplo é válido para comprovar a possibilidade de existência de norma jurídica de escalão superior desprovida de sanção.

Bobbio, tendo em vista o exemplo anterior, admitiu a existência de normas de maior hierarquia sem sanção; justificou essa ocorrência porque desnecessária a sanção por causa do "mínimo de consenso". Implicitamente, reconheceu existirem normas jurídicas despidas de sanção.

De qualquer sorte, se é possível falar em norma jurídica sem sanção, pouco importando a razão de sua ausência, mostra-se evidente que a sanção não constitui seu elemento essencial, e, portanto, a coação não pode ser o critério diferenciador dela.

Por questões de rigor terminológico, deixa-se claro que, enquanto a coação é o uso da força a serviço do direito, a sanção jurídica é a conseqüência estabelecida pelo direito para fazer cumprir seus imperativos. A coação é, pois, o monopólio da força por parte do Estado, enquanto a sanção é a técnica de que se vale o próprio Estado para fazer cumprir a norma jurídica.

Tais técnicas podem ser intimidativas, ou seja, podem impor pena ou malefício, mas também benéficas, no sentido de conceder incentivos ou vantagens, daí por que ao lado das sanções penais, temos as sanções premiais (REALE, 2003:76).

Ora, se as sanções premiais existem na ordem jurídica, temos mais uma razão para afastar a coatividade como elemento essencial da norma jurídica.

Assim sendo, a razão está com Goffredo Telles Jr. ao dizer que a norma jurídica é um imperativo autorizante; todavia, ressalvamos que, o termo "autorizante" significa a possibilidade de exigir a conseqüência estabelecida pela norma, pouco importa seja tal conseqüência benéfica, maléfica ou a nulidade do ato. O importante não é o tipo de sanção que poderá ser imposta, mas sim a autorização para exigir o cumprimento pleno da norma.

Isso significa que aquele que cumpre a norma também está autorizado a exigir a conseqüência por ela estabelecida, inclusive no que tange às sanções premiais (v.g., o pagamento do tributo adiantado gera, como conseqüência, o desconto em seu valor, o que pode ser exigido por aquele que cumprir referida norma).