2.5 Princípios e regras – critérios diferenciadores
2.5.2 Grau de abstração e generalidade
A estrutura da norma jurídica, segundo entende a dogmática, é composta de dois elementos básicos, que seriam a hipótese normativa e o efeito jurídico.
A hipótese normativa, também chamada de "tipo legal", "hipótese de incidência", "fato gerador", "tatbestand" (expressão alemã), "fattispecie" (expressão italiana) ou "facti species" (latim), são os atos e fatos descritos como aptos para gerar um efeito jurídico.
Os fatos são situações que ingressam no mundo jurídico sem a interferência da vontade humana, que é desconsiderada ou, efetivamente, não existe (e.g., ocorrência de dano nuclear, ainda que por motivo de força maior, impõe responsabilidade civil da União ---- artigo 21, XXIII, c, da CF).
Percebe-se que, no exemplo dado, pouco importa a vontade humana; a proposição apenas descreve a ocorrência do dano nuclear para que se tenha a responsabilização patrimonial da União. Isso é um exemplo de fato jurídico.
Em compensação, o ato jurídico é uma situação em que há necessidade de interferência voluntária sobre a realidade. A interferência pode ser positiva (fazer – e.g., contrato de compra e venda) ou negativa (não fazer – v.g., tipo penal da omissão de socorro).
A hipótese de incidência expressa o enunciado da norma, o qual se vale dos três modais deônticos indicados por Lourival Vilanova, a saber: permitido, proibido, obrigatório. Tais modais podem ser expressos ou implícitos, dependendo da forma como redigido o “tatbestand”
Em relação ao efeito jurídico, chamado de sanção, tem-se uma padronização da nomenclatura. Como já visto nesta dissertação, a sanção é a conseqüência autorizada pela sociedade para fazer cumprir seus imperativos, ou seja, é a técnica empregada pelo Estado para que se obedeça à norma jurídica.
A propósito, fique bem claro que a sanção não deve sempre ser vista como mal, uma punição a ser aplicada ao transgressor da norma. Partimos da premissa de que as conseqüências da norma podem ser de vários tipos, tais como punição, recompensa e nulidade do ato.
Em uma sociedade complexa como a contemporânea, não é possível continuar a entender que o direito tem caráter exclusivamente punitivo. Hoje, existem outras técnicas jurídicas para a imposição de comportamentos, as quais não se valem apenas da punição, mas também de prêmios e nulidades.
Tendo em vista a estrutura da norma jurídica acima delineada, possível diferenciar o princípio e a regra por intermédio da abstração ou generalidade.
A abstração e a generalidade são características bastante próximas, sendo difícil distingui-las; porém, neste trabalho, o termo "abstração" refere-se ao conteúdo da norma (abstrato em oposição ao concreto), e "generalidade" indica a idéia de destinatário (geral em oposição ao individual) (FERRAZ JR., 2003:122).
Nessa linha de raciocínio, o critério da abstração e generalidade tem como fundamento a forma de redação do enunciado da norma jurídica.
Com fundamento nas premissas acima, pode-se definir o princípio como imperativo autorizante de baixa carga semântica, isto é, não indica destinatários ou situações específicas, a significar elevado grau de abstração e generalidade.
Em oposição, a regra é um imperativo autorizante de alta carga semântica, já que indica destinatários ou situações específicas; logo, o seu grau de abstração e generalidade é relativamente reduzido.
Convém deixar consignado, uma vez mais, que a generalidade é entendida do ponto de vista do destinatário, e por isso os princípios são generalíssimos, porque abarcam uma série indefinida de pessoas, enquanto as regras são gerais, porque contemplam apenas destinatários que nelas estão discriminados.
Para melhor ilustrar o raciocínio, far-se-á uso de exemplos retirados da Constituição Federal de 1988.
O artigo 5º, caput, reza que todos são iguais perante a lei. A "igualdade", que é um princípio, goza de enorme generalidade, porque se aplica a um número indeterminado de destinatários.
Ainda na mesma Carta Magna, colhe-se uma norma que isenta as mulheres e os eclesiásticos do serviço militar obrigatório em tempo de paz (artigo 143, § 2º, da CF), a qual deve ser considerada como regra, porque tem destinatários específicos.
Concernente à abstração, relacionada ao conteúdo descrito na hipótese de incidência normativa, pode-se trazer à baila o exemplo da liberdade de expressão, prevista na Constituição Federal (artigo 5º, IV), que é um princípio, porque abstrato, ou seja, não especifica determinada situação de fato.
Em compensação, a norma que impõe o direito de resposta proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V), é uma regra, porque bem delimita uma situação para sua incidência.
Em suma e na esteira dos ensinamentos de André Ramos Tavares, pode-se dizer que
(...) o melhor traço para distinguir as normas, as regras, dos princípios é o maior grau de abstração destes, pois não se reportam a qualquer descrição de situação fática (hipotética) em específico, adquirindo, assim, a nota máxima da abstratividade (objetividade) (2003:34).
Ocorre que o presente critério deixa transparecer que o princípio seria apenas uma diretriz interpretativa das demais normas do sistema, sem hipótese de incidência ou conseqüência.
Adotar aludido critério equivale a relegar o princípio a mero ideal de justiça, sem conteúdo deôntico, e, portanto, sem pode ser exigido o comportamento imposto pelo princípio.
Na verdade, os princípios possuem hipótese de incidência e conseqüência, tanto que a finalidade do princípio exige a adoção de determinado comportamento, que, não cumprido, dará ensejo a certa conseqüência prevista no ordenamento jurídico. É o caso da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção.
Partindo dessas constatações, tem total pertinência a ponderação de Humberto Ávila:
O ponto decisivo não é, pois, a ausência da prescrição de comportamentos e de conseqüências no caso dos princípios, mas o tipo da prescrição de comportamentos e de conseqüências, o que é algo bem diverso (2004:35).
Assim, é critério insuficiente procurar distinguir princípio e regra pela estrutura da norma, isto é, por sua generalidade ou abstração, pois seria pretender diferenciá-los através da forma do enunciado da norma, sem se ater ao conteúdo.