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5. Relações de amizade como suporte social no enfrentamento à violência

5.1 Duradouras amizades

Reflexões sobre a amizade, de acordo com Passetti (2003),

s pré-socráticos que mais refletiram sobre a questão da amizade neste período. O primeiro defendia a noção de forças opostas, a vida nascendo de duplicidades paradoxais; desta forma, a amizade seria uma força descontínua que prevê a coexistência de tensão entre opostos. Empédocles compreendia a existência de forças opostas e postulava que a amizade, através do diálogo, comportava um processo de pacificação. Demócrito, não se atendo às questões sobre oposição, entendia a amizade como um processo que se dá entre iguais a partir das afinidades n

ento heraclítico revelava uma noção de vida em expansão a partir da coexistência de embates que se dão no cotidiano e na natureza, como o fogo e a água, idas e vindas, tensões. Empédocles e Demócrito trilham o caminho da sociabilidade, embora reconhecessem, mais o primeiro do que o segundo, a presença de tensões opositivas na natureza e na constituição humana.

Dissonância e transformação são o que movem a vida na perspectiva heraclítica. A transformação das coisas do mundo de maneira incessante é um eterno devir. Desta forma, Heráclito, em relação à amizade, acreditava em novidades, na surpresa que fatos adversos poderiam trazer, apostava na positividade da dor, da lágrima, da inquietação, enfim, nas novidades que as intempéries podem proporcionar. Propunha as desmistificações das fronteiras, a vida para além dos modelos e idealizações pré- estabelecidos, a produção de plural da vida. Com isso, a contestação sempre esteve

presente no que acreditava, questionava os controles que impediam o desenvolvimento humano, construindo uma perspectiva na qual as leis que regiam a vida em comunidade na Grécia pudessem ser discutidas e desconstruídas, se fosse o caso, de maneira que a existência não fosse podada e pudesse sempre estar derrubando barreiras rumo ao encontr

nto, era o incremento da cidade. O desenv

o do novo e da imprevisibilidade (Passetti, 2003).

Em Heráclito, podemos perceber a crença em novas formas de se relacionar com o mundo e com as pessoas. A amizade estava baseada na transformação das relações humanas, na criação inédita de existências, na imprevisibilidade em que as ações de um amigo podem provocar. Seguindo esta linha de raciocínio, acreditava que a inimizade como algo que guardava positividade e que deveria estar presente na relação entre amigos, pois acreditava que os inimigos poderiam sinalizar os nossos pontos cegos e não reforçar o lugar onde nos encontramos.

Logo após o período pré-socrático, no século V a.C., a Grécia passou por mudanças políticas, por um período tirânico que se iniciou com a transição do modelo aristocrático para o democrático. A preocupação com a cidade, com a polis, entra em cena em detrimento das discussões em relação ao desenvolvimento do campo subjetivo. Com isso, a amizade deixou de ser entendida como fruto de coexistências entre forças opostas; o que importava, a partir deste mome

olvimento de virtudes que pacificam as relações pessoais em benefício de tal desenvolvimento passou a ser defendido por vários pensadores, entre eles, Aristóteles. A contestação, que em Heráclito assumia posto de destaque, passou a perder espaço; a amizade no âmbito privado se reduziu a uma estatizante forma de sociabilidade em nome dos negócios e do prazer (Passetti, 2003).

A compreensão aristotélica de amizade defendia que esta é própria de homens de bem e virtuosos, que ela só é capaz de acontecer entre iguais que estejam dispostos a

pensar o melhor para a cidade. Prescrevia, de certa maneira, uma moralidade para o bem da polis. A lei da cidade, do Estado, existia para ser cumprida, e não discutida, questionada ou superada. “Aristóteles defenderá que o melhor é ter leis ruins, do que leis em contínua mudança. (...). A tragédia cede lugar à lei e os deuses desapareceram para se tornarem vigias de um comportamento exemplar perante as leis” (Passetti, 2003, p.27). A

dos prazeres (hedonismo) foi realizado por Epicuro

dicional do irmão e o perdão de suas faltas p

amizade se daria somente entre aqueles capazes de refletir e discernir, estaria circunscrita ao mundo masculino e não seria capaz de acontecer entre os pertencentes às classes mais simples, entre escravos e mulheres.

Mais tarde, outras linhas filosóficas, como o epicurismo e o estoicismo, buscavam alternativas libertárias para a vida que se encontrava sufocada pelo avanço das tiranias. Estas duas perspectivas influenciaram o mundo a partir do início do imperialismo de Roma. Um ensaio em busca

, que foi um dos pioneiros na criação de sociedades secretas de amigos e trouxe a amizade para o trilho das sensações, para o encontro real. O estoicismo acreditava na força da natureza, na providência dos deuses; logo, os estóicos se colocavam como cidadãos do mundo guiados pela razão baseada na lógica, e, assim, dependendo da situação, poderiam se sentir desobrigados para com as leis impostas pelas localidades em que viviam. A amizade, nessas linhas filosóficas, reencontra o caminho da contestação e da liberdade, com epicuro, na criação de espaços de encontro e trocas, com ênfase no sentir a natureza e a presença do outro, e com o estoicismo, através da base política da discussão, contestação e reflexão sobre o mundo (Passetti, 2003).

Com o advento do cristianismo, a noção de amizade deu lugar às noções de irmandade e fraternidade. O aceitamento incon

assaram a ser condições necessárias para se tornar um cidadão de bem. A resignação perante as situações que não se pode mudar passava a se configurar como a

única alternativa para a salvação da humanidade. Com isso, as relações de amizade parecem perder suas condições políticas, de se colocarem contra as atitudes que afligem a humanidade e o homem perde um pouco o sentido de guerreiro pela própria vida (Derrida, 1998). Um processo de docilização de corpos.

O pensamento aristotélico no cuidado com a cidade e a irmandade/fraternidade advindas do cristianismo influenciou ao longo dos séculos a configuração do que viria a ser o Estado. O primeiro teve ressonância no que diz respeito ao controle pela lei, um sufocamento da liberdade subjetiva, e o segundo nas práticas paternalistas e assisten

orma, Nietzsc

cialistas. Sem esquecer que o cristianismo, através de um processo de culpabilização, conseguiu implantar na humanidade uma espécie de controle interno, afastando a amizade do público, podendo só aparecer por meio da caridade.

Na modernidade, a amizade era algo para ser realizado no campo privado. O processo de privatização da vida, característico dessa época, esvaziou os espaços de encontro, transformado-os em locais de passagem, a rua passou a ser sinônimo de perigo. As dimensões pública e política perderam espaço. No entanto, para a consolidação do Estado Moderno, o conhecimento do inimigo novamente entrou em cena. Fizeram-se necessárias relações com as nações vizinhas para que se pudesse haver pacificação e que a vida de negócios pudesse ser perpetrada. Nietzsche retomou, no fim do séc. XVIII, a temática da inimizade, em uma espécie de resgate do pensamento heraclítico. Propunha, pois, que os relacionamentos de amizade não prevêem uma seguridade, os amigos desestabilizam; o amigo é o melhor inimigo. Desta f

he desmistificou a noção de amizade/irmandade, a relação desapegada e apolítica da tradição cristã. Com isso, demonstrava que o interesse fazia parte da amizade, trazendo-a para o campo da política e da vida pública. O fogo da temática das forças opositivas, do jogo de esforços, dos embates guerreiros e da coragem para

mudanças e metamorfoses foi acessado novamente por Nietzsche (Derrida,1998; Passetti,2003).

Ao encarar o sujeito como produto de forças, vetores e quereres em embates que envolviam o pensar e o sentir, Nietzsche pôs em cheque certezas que norteavam o pensam

íveis outros canais

ento moderno, entre elas, a noção cartesiana do pensamento (cógito/razão) como a unidade-referente de compreensão do mundo capaz de levar o sujeito à verdade. Nietzsche radicalizou com esta questão perguntando: Por que precisamos e buscamos tanto a verdade? Será que é possível se chegar a um conceito unívoco capaz de responder as questões do universo? Acreditava que a forma como se concebia o pensamento na modernidade afastava o homem das sensações, das potencialidades instintivas, da ligação do ser humano com a natureza, enfim, fechava poss

de compreensão do mundo, demarcando a fronteira entre interioridade/exterioridade. Desta maneira, acreditava que não seria possível uma verdade, e sim, acreditar na vida enquanto pluralidade, diversidade de forças em luta, produzindo subjetividades e conhecimento; o que acaba por indicar uma noção de sujeito para além da unidade, da irredutibilidade (Mosé,1999).

Tendo em vista as considerações acima, a amizade, para Nietzsche, trilha o caminho libertário na possibilidade de novas formas de ser e estar no mundo, na abertura ao imprevisível, ao novo, ao jogo de forças e fluxos que se apresentam ao sujeito. Os amigos devem estar dispostos a ultrapassar fronteiras predeterminadas e repetitivas, tais como as de camaradagem, de acolhimento incondicional, de filantropia. Essa última compreendida como forma de solidariedade que possibilita o apagamento da consciência suja de quem pratica a caridade, pois, na realidade, não proporciona a transformação do quadro social que produz o necessitado, e que, na maioria das vezes, põe-no em posição humilhante. Este exemplo acerca da visão sobre a filantropia mostra

o quanto acreditava que as relações entre amigos podem ser subversivas e proporcionar linhas políticas de mudança da realidade (Passetti, 2003).

ação. Para Foucault, a relação

Mais tarde, no séc. XX muitos pensadores foram influenciados por Nietzsche, entre eles, Foucault. Dedicando-se ao estudo das relações de poder, Foucault compreendia o poder como algo que se exerce e não como algo que é conquistado ou tomado, afirmava que o poder estaria inserido na sociedade de forma capilar, nas diferentes relações do cotidiano, não se restringindo às relações macro-estruturais, tais como, o exercício do Estado ou das instituições.

Desta maneira, o olhar foucaultiano aponta para a existência de sujeitos no exercício de poderes nas mais ínfimas relações, sejam de gênero, de geração, de autoridade, de família, de amizade. Tal prática foi definida por Foucault como governo, sendo a forma pela qual, através do exercício do poder, estrutura-se o campo de ação dos demais sujeitos (Kohan, 2003).

Foucault redimensionou as ações políticas, transportando-as para o espaço do cotidiano. A amizade, assim, segundo Ortega (1999), passa a ser importante alavanca agenciadora de novas formas de sociabilidade e de subjetiv

entre amigos “enfatiza a transgressão e, por conseguinte, a multiplicidade, intensidade, experimentação e desterritorialização” (Passetti, 2003, p.111). A relação como o outro, na perspectiva foucaultiana, deve provocar a alteridade, a ultrapassagem de fronteiras em termos de problematização da própria existência. Os amigos são amigos da inventividade, da inquietação, do desassossego, da agitação, escrevem as próprias estórias com estilo, procuram formas libertárias de viver, são combatentes alertas contra os poderes que limitam a vida.

Outro pensador que se debruçou sobre as questões da amizade foi Jacques Derrida. A relação entre amigos, para ele, deveria estar pautada na busca por novos

horizontes, na construção do porvir. Acreditava que os amigos são amigos do talvez, amigos da surpresa, de formas novas de se associar. Baseado em Aristóteles, Derrida discutiu

potencialidades no que diz respeito ao desenv

participantes realizam algum tipo de atividade coletiv

sobre as relações de confiança e acreditava numa amizade para além das relações de irmandade e fraternidade. Como Nietzsche, reconhecia também o papel das inimizades nas relações sociais (Derrida, 1998).