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6. DA ENGENHARIA CIVIL PESADA AOS CONDOMÍNIOS RESIDENCIAIS FECHADOS:

7.1 A forma dos condomínios residenciais fechados

7.1.1 Ebenezer Howard e a ideia de cidade-jardim

Para compreender e situar a concepção de cidade-jardim proposta por Ebenezer Howard no final do século XIX, cabe-nos fazer um panorama das cidades inglesas, principalmente no tocante à condição da classe operária e do estilo de vida das camadas médias e altas. Sem dúvida, a obra A Situação da Classe

Trabalhadora na Inglaterra, escrita por Friedrich Engels e publicada em 1845, aponta

de forma paradigmática a construção espacial das cidades e moradias no curso do processo de modernização burguesa, tanto dos operários, quanto das camadas médias e capitalistas, que traduzem as condições materiais de existência nas cidades inglesas. É possível dizer que Engels efetuou um ensaio sociológico da cidade que se tornava industrial, edificada pela força das fábricas e pela crescente proletarização da vida humana. Para Engels (2008), a construção socioespacial das cidades inglesas foi marcada pela materialização da desigualdade, presente nos contrastes das formas entre os bairros operários – fétidos, pouco ventilados, escuros; e os suntuosos palácios dos ricos - com ruas amplas e iluminadas por onde circulava o “grande mundo” londrino. Os “bairros de má fama”, constituídos pelas habitações da classe operária estruturavam-se:

mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam-se

cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra, exceto em

alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar a roupa (ENGELS, 2008, p. 70).

Segundo Engels (2008, p. 77) os luxuosos bairros aristocráticos, construídos na parte nova das cidades, contrastavam brutalmente com a fétida miséria dos bairros pobres, situados nas zonas velhas. As contradições objetivas entre as habitações e a urbanização em Manchester, foram apontadas:

A alta burguesia habita vivendas de luxo, ajardinadas, mais longe, em Chorlton e Ardwick ou então nas colinas de Cheetham Hill, Broughton e Pendleton, por onde corre o sadio ar do campo, em grandes e confortáveis casas, servidas, a cada quinze ou trinta minutos, por ônibus que se dirigem ao centro da cidade. A média burguesia vive em ruas boas, mais próximas dos bairros operários, sobretudo em Chorlton e nas áreas mais baixas de Cheetham Hill (ENGELS, 2008, p. 89).

O crescimento econômico inglês, decorrente da Revolução Industrial e da política mercantilista, propiciou a então nascente burguesia e a parte da nobreza, alojar-se em Londres em bairros residenciais elegantes, abertos por nobres em suas terras, no entorno da cidade. Dentre os novos bairros, destacavam-se Bloomsbury e

Regent Park, construídos nos séculos XVIII e XIX, e constituídos por casas

unifamiliares integradas a uma extensa vegetação, cuja área verde, em especial as árvores46 jamais podadas e gramados, eram o elemento básico47.

46As árvores se tornaram parte essencial do cenário arquitetônico inglês, pois fazia parte do ‘bom

gosto’ da época ornamentar as residências com elas. Segundo Thomas (1988) “as árvores na Inglaterra não apenas foram domesticadas como adquiriram gradualmente um status quase de animais de estimação. À medida que as áreas de mata diminuíram, elas deixaram de atemorizar, para se tornarem valiosa fonte de deleite e inspiração (p. 253).”

47 Cabe ressaltar que esta natureza está ligada a corrente estética do pinturesco inglês, que emerge

no século XVIII e assinala um novo sentimento e um novo comportamento frente à natureza. Se antes a natureza expressava o desconhecido, o sombrio, e, consequentemente inspirava o medo, no século XVIII, sua domestificação, através da ciência, a torna passatempo dos abastados, surgindo o cultivo de árvores e o paisagismo. O pinturesco, oriundo da experiência dos viajantes, expressa uma natureza marcada pelo contraste, pelas misturas, pelas texturas e pela surpresa. Será esta paisagem que irá permear o imaginário da nobreza e da burguesia e conferir o status distintivo dessas classes.

Em Edimburgo, Manchester, ou qualquer outra cidade inglesa visitada, seria possível encontrar os contrastes entre uma cidade limpa, iluminada e bem equipada, com precárias instalações sanitárias, casas irregulares e mal ventiladas, ruas estreitas e escuras. Se a natureza passou a ser um elemento essencial do subúrbio burguês e das classes médias, os bairros operários, pelo contrário, eram marcados pela homogeneidade, insalubridade e alta densidade populacional. Enquanto a nobreza e a burguesia se estabelecem nos arredores da cidade, com ar puro, e baixa densidade populacional, os cottages tomam conta do centro congestionado. No último capítulo de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels (2008) expôs as contradições objetivas da sociedade capitalista e o modo como o progresso material não efetua a melhora das condições de vida dos trabalhadores e de suas habitações:

Certa feita, percorri Manschester na companhia de um desses burgueses e falei-lhe da má arquitetura, da insalubridade, das condições horríveis dos bairros operários, e disse-lhe que jamais vira uma cidade construída em piores condições. Ele me escutou com tranquilidade e, na esquina em que nos separamos, declarou, antes de nos despedirmos: “And yet, there is a great deal of Money made here.” (p.308)

A arquitetura dos bairros operários que cresciam ao redor das fábricas revelava uma nova forma de urbanização da cidade moderna: a força do dinheiro e, sobretudo, do dinheiro transformado em capital, em erguer no espaço urbano fábricas e edifícios sempre maiores, mais extensos e mais altos – simbolizando assim a potência e o prestígio da nova classe social –, mas, incapaz de melhorar as condições de vida da classe proletária.

A cidade moderna como paradoxo está presente na poesia e na literatura do século XIX. Se nas obras de inglês Charles Dickens, a cidade é exposta como um espaço fervilhante de indivíduos, pessoas e mercadorias, que se acumulam ao redor do processo produtivo coordenado pelo ritmo do relógio e pela chaminé das fábricas que expelem e tingem o céu de cor acinzentada e carregam a atmosfera partículas de carvão, na poesia e na prosa de Baudelaire (1976, p.86) Paris representa uma nova cidade, atravessada por contradições e antíteses, aberturas e opressões, construções e destruições, potencialidades e brutalidades:

Mudou! palácios novos, andaimes, blocos,

Velhas alamedas, tudo para mim se torna alegoria,

E minhas caras lembranças são mais pesadas que rochas.

Muitas foram às propostas e realizações urbanas no século XIX que visaram solucionar ou amenizar essa situação. Entre elas, destacaram-se as cidades fabris, como a de Robert Owen, construídas na Inglaterra, em 1817, e os falanstério, proposto por Charles Fourier, na França, e construído por Jean-Baptiste Godin, em que, junto a sua fábrica, os trabalhadores disporiam de refeitórios, biblioteca, igreja etc.

A obra de Howard será influenciada por este estado de coisas, tanto pela presença dos jardins, quanto pelas vilas industriais. Como bem assinalam Mumford (1965) e Evelyn (apud Thomas, 1988, p. 247) “a cidade-jardim não foi inventada por Ebenezer Howard na década de 1890”, porém ele foi o responsável pela formulação de um pensamento coletivo que vinha sendo construído há muito tempo.

A cidade-jardim howardiana buscava dar respostas, em um momento de embates partidários, aos problemas sociais e religiosos, ao superpovoamento das cidades, às precárias condições sanitárias e ao êxodo rural acentuado na Inglaterra. Segundo Howard (2002), edifícios suntuosos e aterrorizantes cortiços eram as estranhas feições complementares das cidades modernas, o que lhe conferia, por um lado, um sentido negativo, por outro, a cidade por ele idealizada guardava as virtudes sociais características da comunidade, como ajuda mútua e cooperação amigável, e o campo expressava a concretização do amor divino pelo homem48. Desta forma, em oposição ao gigantismo de Londres, onde os valores comunitários eram perdidos, assim como a proximidade com a natureza, Howard propõe uma organização social que une campo e cidade, e que desta forma, com a metáfora do ímã expressando o seu poder de atração, seria capaz de redistribuir a população de forma espontânea e salutar.

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“Cidade é o símbolo da sociedade – da ajuda mútua e da cooperação amigável, da paternidade, da maternidade, da fraternidade, da sonoridade [...]. O campo é o símbolo do amor e do zelo de Deus pelo homem (HOWARD, 2002, p. 110).”

Figura 5 - Os três ímãs: representação gráfica feita por Howard mostrando as vantagens da cidade e do campo e da cidade-jardim, síntese que reuniria as vantagens da cidade e do

campo

Fonte: Howard (2002, p. 109). [Cidades-jardins de amanhã]

Na cidade-jardim howardiana, a propriedade fundiária seria gerida pela municipalidade. Quanto à organização espacial, o centro deveria ser ocupado por um jardim e edifícios públicos, além de conter um palácio de cristal usado para passeio no inverno e como mercado. Seis bulevares deveriam cruzar a cidade, e os lotes deveriam ter a proporção de 6,10m por 40 m, e as casas construídas de acordo com a preferência e o gosto individualidade de cada morador. A cidade-jardim também contaria com indústrias e mercados, situados na parte externa, ou no entorno próximo da cidade.

A renda da cidade seria obtida mediante o uso do solo e este montante seria revertido pela municipalidade para a benfeitoria da mesma. Desta forma, o valor pago ao senhorio numa cidade como Londres, na cidade-jardim, retorna ao pagante como melhorias públicas. Ao pensarmos de maneira comparada, percebemos que enquanto em Londres o valor pago possibilitava a habitação em espaços modestos e com pouca qualidade sanitária, na cidade-jardim possibilitava amplos espaços e sedes públicas, além do “ar puro do campo”. Ou seja, o mesmo valor gasto em Londres, na cidade-jardim, convertia-se em melhor qualidade de vida. Desta forma, através da autogestão comunitária, a cidade-jardim “beneficiaria uma classe hoje

bem embaixo na escala social”, como os “trabalhadores pobres de Londres (HOWARD, 2002, p. 134)”49.

Figura 6 - Seção da cidade-jardim: um grande jardim localizado ao centro, um palácio de cristal nos arredores, grandes bulevares, indústrias e fábricas no limite da cidade

Fonte: Howard (2002, p. 114). [Cidades-jardins de amanhã]

É necessário ressaltar que a cidade-jardim, tal como Howard a concebeu, é formada por células de 32.000 habitantes. Sendo assim, ao completar esta soma, dever-se-ia fundar uma nova célula. Ao conjunto destas células, teríamos o que Howard chama de cidades sociais. Portanto, a concepção de cidade-jardim integraria não só um modelo espacial de cidade, que poderia ser diferente de acordo com as necessidades locais e a morfologia do solo, como “um terceiro sistema socioeconômico, superior tanto ao capitalismo vitoriano quanto ao socialismo centralizador e burocrático” (HALL, 1995, p. 111). A referida concepção também pode ser entendida como um modelo de urbanização que, oposto ao gigantismo da metrópole, constituir-se-ia de pequenas células, capazes de salvaguardar os valores

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Mascomo ressalta Hall (1995) “Howard, na esteira de Marshall, não via suas cidades-jardim como colônias para pobres indignos. Pelo contrário: elas deveriam ser fundadas e administradas pelo

stratum imediatamente superior – a classe C de Charles Booth -, que assim se haveria de libertar da

servidão do cortiço urbano. Sua solução não era paternalista – fora, talvez, algumas poucas nuanças residuais; ao contrário, estava firmemente assentada na tradição anarquista (, p. 107).”

comunitários e, desta forma, formar cidadãos empenhados tanto na administração local como nacional.

7.1.2 O processo de suburbanização americana e o imaginário do subúrbio-