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Eclesia: vivência e anúncio da fraternidade

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 156-159)

3 CRISTIANISMO NÃO RELIGIOSO

4.2 EVENTO CRISTÃO: A RADICAL CONDIÇÃO DO AMOR

4.2.2 Eclesia: vivência e anúncio da fraternidade

Assumindo o cristianismo como religião secularizada, no sentido de que é na história que ele se constrói e não fora dela, não fica ainda autorizado dizer que todo sentido da história pode ganhar um selo que a identifique como cristã. Sem voltar às vias do dualismo, há que reconhecer, também pelo caminho da hermenêutica niilista, que revela que no diálogo ambas partes dialogantes devem passar por transformação, que essa dinâmica nem sempre acontece. De modo que a transformação pela qual o ser, Deus, experimentada na kênosis de Jesus, além de gerar significado novo para a história do ocidente ela é interpelação que depende da livre acolhida de tal mistério. Se a consciência da autonomia humana na projeção do mundo não entende tal processo como fazendo também parte de seu caminho, ela necessariamente se fechará no orgulhoso recinto da autossuficiência.

Tal movimento inaugural nas palavras e obras de Jesus é também missão. O mandamento do amor, mais precisamente do amor ao inimigo, encontra claramente, nos tempos pós-modernos, obstáculos profundos. Sem o anúncio de uma novidade que choque as entranhas violentas do Dasein em sua sofreguidão pelo poder ser, seria inimaginável um processo natural kenótico fraterno. Nesse sentido, é viável e urgente o resgate da comunidade dos intérpretes, mas não somente de uma comunidade que guarda o texto e que o reinterpreta para o presente e sim que guarda o próprio amor, esforçando-se por acolhê-lo como dom do

alto e ensiná-lo como gramática importante para o combate da violência que parece ser muito mais natural do que a opção pela fraternidade28.

Assim sendo, não deveria ser a Igreja, ainda que ela não compreenda o todo o amor oblativo, um permanece sinal de uma humanidade diferente? Entendendo sinal como força sacramental e não realização plena porque ela mesma sabe-se em constante interpelação dialogal com o Evangelho do amor, sendo sua vocação, por isso mesmo, a de estar a serviço de uma notícia alternativa. Mesmo atravessando dificuldades em mostrar sentido e ao mesmo tempo de não poder conservar uma identidade estática, sua missão é não somente suprir uma falta de sentido, mas revelar que o projeto cristológico é insubstituível em sua função de dar humanidade à humanidade. Eclesia, assim, não pode omitir-se de ser um pequeno fermento na massa, relacionando-se com o mundo sem disso pretender atitudes de colonização. Deveria ela guardar o sentido de povo de Deus, mais que massa e mais que indivíduos isolados. Comunidade consciente do dom recebido; estrutura que ajuda o homem a reencontrar sua própria vocação. Um povo que indica a particularidade de Jesus como aquele que responde à singularidade das esperas históricas.

O povo de Deus não é para si mesmo, mas para a realização histórica da libertação para cada homem e na acolhida do outro, porque na unicidade da história da salvação, Igreja e mundo são dois momentos diversos da mesma história. Aqui se compreende, em definitivo, a função maiêutica do povo de Deus, destinado a fazer emergir espaços de esperança, lugares de fraternidade, horizontes de mistério que possam abrir a vida à procura da verdade (DOTOLO, 2007, p. 280).

28 Neste contexto é de grande relevância os escritos freudianos sobre o narcisismo e sobre a cultura. De modo particular FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma introdução. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. Obra em que Freud coloca sob suspeita o amor oblativo e afirma que todo amor tem em suas motivações mais profundas o amor de si. Em O Futuro de uma ilusão. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996, faz sua avaliação mais acurada sobre a cultura ressaltando que ela “inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível” (p. 15). Mais tarde, no ano de 1930 escreveu O mal-estar na civilização. Vol. XXI. Rio de Janeiro: imago, 1996. Nesse escrito faz sua crítica à religião mostrando-se também cético em relação ao amor desinteressado que poderia nascer na experiência religiosa, afirmando que “a vida é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar medidas paliativas” (p. 83). Assim, o tema da oblação ou de uma ética da fraternidade, para o pai da psicanálise, parece muito mais próximo de uma necessidade prática para a própria sobrevivência do que um gesto de doação gratuita em relação ao outro ou a Deus.

Uma comunidade itinerante que não possui o todo da verdade, entretanto que busca ser, remetendo ao que Heidegger usou para o ser em relação ao pensamento, pastora da caridade. Caminho sempre aberto que orienta escolhas, compondo um quadro ético-moral, guardando a reserva escatológica, atenta para não coincidir o projeto da caritas de Jesus com alguma configuração social que pretendesse ser absoluta, aceitando o paradoxo constante entre o que é salvífico na proposta do amor e sua encarnação no tempo da vida. Para isso deve guardar a reserva de sentido do amor oblação que interpela constantemente a um processo de conversão inesgotável. Os estudos heideggerianos sobre o tempo, quando volta às fontes cristãs, mostram que, na experiência do Ereignis, o tempo não pode estancar-se na solidão efetiva da existência. É o lugar sempre de um serviço ao acolhimento do ser quando sua provocação escatológica torna-se promessa diante da não adaptação do ser humano à realidade assim como a mesma aparece. Essa tensão sadia que faz da existência o lugar da decisão e da escuta do tempo como favorável, encontra na pessoa de Jesus de Nazaré um início inédito, testemunhado entre os primeiros cristãos como Kairos, dimensão que ultrapassa o Cronos ao guardar em si a fertilidade do Eschaton.

Sem essa saudável tensão de um já e ainda não, que procede da inquietação que o ser humano não consegue anular em sua forma racional organizada, nem mesmo a hermenêutica do pensamento enfraquecido daria conta de manter seu percurso. Cronos e Kairós fazem parte da mesma proposta de Nietzsche sobre o instante como lugar da decisão o que em Heidegger ganha força na questão da projetualidade. Vattimo, nisso tudo, escolhe o engajado combate à violência epistemológica e prática, tomando partido dos pobres porque é filho da mesma tradição que claramente não aceita a cultura dominante como única forma de configuração existencial, ainda mais quando ela é construída nos alicerces da desigualdade.

Assim, o tempo escatológico possibilita uma abertura ao tempo atual como lugar de resposta aos apelos que vem do evento cristão que é fonte do próprio tempo, elencando pelo menos três dimensões do tempo: 1. Dimensão memorial que inclui a arquivística, ultrapassando-a. É a fonte de onde brota o tempo em sua constante atualização. Memória eventual, como algo que chega dadivosamente. 2. Dimensão decisória: o tempo atual como possibilidade do exercício da liberdade. Nada nele está pronto, como algo fixo, porém é dinâmico e convocador da liberdade humana. 3. Eschaton: a finalidade não pertence totalmente ao humano. A espera fertiliza de sentido as experiências humanas, estando diante da possibilidade de interferir, livremente, no dom recebido, no tempo atual, e simultaneamente sem ter a posse do resultado final de suas próprias decisões. O

extraordinário do evento Jesus é, em síntese, a requalificação do tempo como lugar da consciência de tudo que é alienação fugaz e a possibilidade em optar pelo amor salvífico.

Há, assim, uma peculiaridade no tempo cristão. Se a pós-modernidade assume o tempo (in) finito, sem final, a experiência cristã, com o éschaton, revoluciona o modo de viver o tempo revelando sua dimensão escatológica na história, de modo que a Memoria Jesu Christi trata-se da,

escatologia crítico-criadora empenhada em reduzir a diferença entre desumanidade atual e possível humanidade, porque torna-se uma recordação antecipatória de um futuro para cada homem, sobretudo para os sem esperança, para os oprimidos, para os sofredores, para os discriminados e para os inúteis desse mundo (DOTOLO, 2007, p. 358).

O tempo cristão, por isso, tem dimensão de engajamento e se transforma em liturgia ao celebrar o que se conquista, o que se espera e o que resta como processo de conversão. Assim sendo, a oração e contemplação passam a ser lugares de escuta de Deus e do outro. Escuta e invocação, como lei do viver e do pensar destinados ao processo da kênosis amorosa, continuada na história daqueles que aceitam o lugar do pastoreio do amor oblativo. Formando um campo criativo com aquilo que é ético, no engajamento, a estética, entendida como criatividade responsável, também abre pontes para a recuperação do cristianismo a partir do pensamento enfraquecido de Gianni Vattimo.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 156-159)