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Secularização: ponto de encontro do niilismo com a vocação cristã

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 71-74)

2 HERMENÊUTICA NIILISTA

2.3 DESREALIZAÇÃO: A AURORA FILOSÓFICA

2.3.3 Secularização: ponto de encontro do niilismo com a vocação cristã

caridosas e moderadas? Suscintamente, qual seria de fato o nexo entre a hermenêutica niilista, secularização e cristianismo não religioso em Gianni Vattimo? No presente ponto desta tese, faz-se necessária a passagem do arcabouço filosófico, até agora discutido, para sua relação com o tema central da presente tese que é cristianismo não religioso. De outro modo, a questão de fundo deve acenar para a conexão entre o além-do-homem e o ser como evento como instâncias possíveis somente no horizonte da secularização que, em sua condição mais radical, para Vattimo, é a vocação do cristianismo enquanto mensagem kenótica da caritas, que faz da história uma instância salvífica.

2.3.3 Secularização: ponto de encontro do niilismo com a vocação cristã

Ainda que Heidegger não chegue, explicitamente, a um engajamento social, sua herança, como a de Nietzsche, possui um ponto crítico em relação à normalidade cotidiana, segundo leitura vattimiana. Depois de sua Kehre, do pensamento em termos de autenticidade para o pensamento que cunha a Lichtung, claridade do ser e também o escondimento na presença, a partir daí já se ensaia a impossibilidade de tomar o mundo a partir de uma imagem unitária. Mesmo vendo a fragmentação como niilismo, Heidegger nunca chegou a se nomear, como o fez Nietzsche, como niilista, por isso, a Kehre heideggeriana pode ser concebida como passagem da noção de autenticidade para a Ereignis. “Recordar o ser não quer dizer conquistar asceticamente a própria autenticidade com a decisão antecipadora da morte, mas escutar o sentido do ser que se dá no evento, na época, no mundo” (VATTIMO, 2012, p. 212). Segundo Vattimo, a partir daí, Heidegger aposta na palavra da poesia e da obra de arte como lugares privilegiados de escuta do ser.

O risco da confusão do ser com o ente na época da organização técnica, segundo a tradição heideggeriana, faz nascer a necessidade de ultrapassar a metafísica buscando uma nova postura de escuta silenciosa e empenhada do ser esquecido. Segundo Vattimo, o pensamento enfraquecido, neste ponto, é mais radical porque não enxerga o niilismo como um risco máximo e sim como destino do ser, no dissolver do fundamento objetivo. Não abandonar totalmente o ser como fundamento talvez faça parte de uma postura saudosa de Heidegger que o coloca numa persistência de escuta de algo ainda ontológico do ser. Para o autor do pensamento enfraquecido, escutar o ser é também escutar o silêncio dos que ficaram emudecidos por uma ordem social metafísica, não com a intenção de resgatar ou corrigir o passado, entretanto colhendo daí elementos que possibilitam construir outras constelações

baseadas na interpretação. Deslocando, sempre, o vínculo entre metafísica e violência por trabalhar uma razão da meia luz; razão limitada e impotente, sem ser relativista ou inerte, mas engajada numa práxis mais fraterna.

Tal legado filosófico Vattimo tem intenção de levar a termo propondo como época da amizade, fruto do enfraquecimento de qualquer forma de pensamento e de vida violentos, geradores de práxis que legitima o abismo entre pobres e ricos e grandes e pequenos. Isso se torna viável porque em seus alicerces existe a mensagem cristã. Horizonte que parte de Nietzsche e de Heidegger e que está estreitamente em conexão com a proposta da kênosis que por sua vez é a instauração da secularização de qualquer valor absoluto, inclusive a palavra Deus. Perdendo sua luminosidade autotransparente numa razão forte, Deus somente pode ser acolhido como evento na história inaugurado pela experiência vivida e ensinada pela caritas de Jesus. A aventura que segue é recolher a questão da secularização como destino do ser que, para vattimo, coincide com sua proposta de um cristianismo não religioso em sua irrenunciável centralidade de vivência do amor.

Por que escolher a história, com seus dramas e chances, como lugar onde se desenrola a práxis amorosa como instância salvífica e não uma verdade abstrata à qual se corresponder? De outra maneira, como alcansar uma leitura da secularização como espécie de destino do cristianismo que gera a filosofia à qual a presente reflexão está referida? Neste ponto, o pensamento vattimiano recorre às categorias da teologia para respaldar seu pensamento enfraquecido. Visita, sobretudo, mais que conceitos, movimentos como a encarnação, kênosis e caritas, mostrando que são esses elementos que revelam o ser como relacional e possibilitam a criação da filosofia hermenêutica. De alguma forma, o ser como evento é o ser encarnado na kênosis de Jesus, ou seja:

Do discurso que segue, espero, resultará também menos escuro o sentido desta relação entre filosofia (pensamento enfraquecido) e mensagem cristã, que eu consigo pensar somente em termos de secularização e isto é, no fundo, em termos de enfraquecimento, ou seja, de encarnação (VATTIMO, 1999a, p. 27).

Quais são os ganhos de tal vizinhança entre encarnação cristã e pensamento enfraquecido? O pensamento que segue já aponta para muitos aspectos que serão trabalhados no capítulo segundo. A saber, Vattimo enxerga nesse nexo a possibilidade de seu retorno pessoal ao cristianismo assim como também um caminho aberto para ir muito além, como revela o pensamento que segue:

A encarnação, e isto é o abaixamento de Deus ao nível do homem, isto que o Novo Testamento chama a kênosis de Deus, será interpretada como sinal que o Deus não violento e não absoluto da época pós-metafísica tem como seu trato distintivo aquela mesma vocação ao enfraquecimento da qual fala a filosofia de inspiração heideggeriana (VATTIMO, 1999a, p. 31).

Depois de trabalhar, então, a hermenêutica niilista do pensamento enfraquecido de Vattimo, frisando a marca forte principalmente do além-do-homem nietzscheano e do ser como evento em Heidegger, é possível passar ao núcleo desta tese que se trata da secularização como vocação do cristianismo não religioso. Núcleo que para o autor é também de onde nasce a inspiração hermenêutica, ou seja, de que a kênosis cristã é matriz geradora da compreensão do ser não como estrutura fixa, mas movimento relacional, aberto ao ente humano do qual é interlocutor.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 71-74)