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Pensar o ser como evento

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 40-45)

2 HERMENÊUTICA NIILISTA

2.1 O DECLÍNIO DA MODERNIDADE

2.1.4 Pensar o ser como evento

Todo esse percurso de Nietzsche pode ser aprofundado levando em conta também o pensamento de Heidegger. De modo que, para Vattimo, falar da relação Heidegger-Nietzsche seria abordar um tema central da filosofia atual. Muito mais que notar a importância das interpretações heideggerianas sobre Nietzsche, há grande possibilidade de ver Heidegger sendo compreendido por meio dos estudos de Nietzsche, numa inversão, portanto. Mesmo que Heidegger tenha apontado Nietzsche como o último dos metafísicos, Vattimo entende que ele já está a caminho de um abandono da metafísica10. Isso porque ao afirmar que não existem

9 O apanhado que Vattimo faz do pensamento nietzscheano, mais especificamente em sua obra Diálogo com

Nietzsche, ao propor a despedida do historicismo, possibilita, ao mesmo tempo, o nexo entre história do niilismo

e história da salvação, como mostra em Credere di credere.

10 O abandono da metafísica, em Nietzsche, em Heidegger e, posteriormente, em Vattimo, não significa um deixar para traz a questão do ser. Ao que tudo indica, continua existindo uma preocupação pela ontologia, porém

fatos, mas somente interpretações, de alguma forma deve-se provocar no intérprete a consciência de que também essa é uma possibilidade de interpretação. Notar os erros, os interesses que estão no fundo das verdades, não significa para Nietzsche destruir ou desmerecer tudo porque o humano, muito humano, se dá exatamente nesses jogos. Isso seria diferente do que Heidegger chama de An-denken, rememoração? Ambos parecem estar unidos ao conceber o ser não como Grund, mas como acontecimento, como evento.

Em Ser e tempo, Heidegger revela que o termo ente não é assim tão claro, como pensou a metafísica desde os gregos; portanto carece de nova indagação. Nesta obra fica evidente que para além dos problemas concretos do cotidiano, existe uma pergunta constante sobre o sentido do ser das coisas. A descrição simplesmente do ente intramundano seria apenas a dimensão ôntica; a interpretação do ser desse ente já suporia uma indagação ontológica. Então, no meio dos entes, ou das coisas com as quais se convive, há sempre a pergunta por aquilo que lhes possibilita ser. E Heidegger preocupa-se com o fato de a metafísica ter confundido ser e ente. De Parmênides até Hegel e Nietzsche, o ser parece ter se tornado Vohandenheit (objeto) que simplesmente está à mão. A solução seria trilhar uma direção distinta, mostrando que esse ser que se revela, é também encobrimento. Nunca se dá de forma total como pretendia o pensamento metafísico.

O ser-do-homem ressalta que sua condição não é outra que o ser-no-mundo, um complexo de possibilidades, por isso ele não é objeto já pronto e carrega consigo, sempre, o poder-ser. Nesse sentido, só o humano existe porque se constrói, se faz diferente, o que é impossível para os outros entes. “Dizer que o homem existe não pode, pois, significar que o homem seja algo dado, porque aquilo que o homem tem de específico e que o distingue das coisas é justamente o facto de estar referido a possibilidades e, portanto, de não existir como realidade simplesmente presente” (VATTIMO, 1996, p. 25). Possibilidades que se dão no próprio cotidiano, no fato de se estar lançado no mundo como Dasein (ser aí).

Para compreender a situação do estar lançado, faz-se necessário entender mundo em seu significado de rede de referências, de totalidade de relações; são os objetos na sua instrumentalidade ou na relação com o Dasein. As coisas são instrumentos para o Dasein, ou seja, seu sentido mais originário é a forma como se apresentam à experiência, mudando o conceito seguinte: “a Filosofia e a mentalidade comum pensam, desde há séculos, que a verdadeira realidade das coisas é a que se apreende objetivamente com um olhar desinteressado que é, por excelência, o olhar da ciência e das suas medições matemáticas”

sem o apego ao essencialismo, à busca do ser em si mesmo porque o ente privilegiado que o compreende está sempre inserido numa situação encarnada e limitada.

(VATTIMO, 1996, p. 28). Fica, portanto, compreendido que a objetividade já é ela mesma uma forma selecionada pelas escolhas projetuais, sendo que os objetos se mostram sempre em sua instrumentalidade ou na posição ocupada numa rede de significados. Para o Dasein, lançado na existência, o mundo não está fechado num conjunto de coisas a ele apresentadas com as quais, num segundo momento, deve relacionar-se. Elas já chegam ao horizonte de um significado. Não se pensa aqui num sujeito que distante dos objetos os conhece, fazendo ou não opção por eles. O Dasein é constitutivamente inserido no mundo e quando pensa ou fala dos objetos, tem dos mesmos uma noção carregada de pré-conceitos.

Na mesma perspectiva, outro elemento fundamental do Dasein é o estar lançado e possuindo sempre uma tonalidade afetiva que supõe uma vinculação ou pré-compreensão do mundo. O ser-no-mundo não se compreende como sujeito puro, abstrato, um mero espectador desinteressado. Estar lançado – Geworfenheit – supõe a facticidade do ser entregue. Lançado na cultura, o Dasein se constitui. É nessa relação fundamental com seu horizonte existencial que também ele revela sua tendência à inautenticidade, ilustrada pelo termo alemão man (se), o impessoal. Acha-se escandalosa alguma situação porque a opinião geral acha-a escandalosa. Para Heidegger, essa é uma tendência natural do humano, o risco de perder-se na opinião comum, distanciando-se daquilo que faz parte de seu ser mais profundo, todavia, resta-lhe assumir sua projetualidade, passando do impessoal para uma responsabilidade existencial. Vale esclarecer que Heidegger não privilegia a autenticidade como sendo melhor do que a inautenticidade. Apenas propõe que ambas são constitutivas do Dasein e que tais elementos parecem consonantes com o processo de massificação anunciado por Nietzsche e que de dentro da mesma nasce a possibilidade de decisão pela força criativa.

Sendo o Dasein abertura e poder ser, onde encontrá-lo em sua totalidade? O Dasein encontra-se com sua “possibilidade da impossibilidade de qualquer outra possibilidade” (Vattimo, 1996, p.52), em sua condição finita e de ser-para-a-morte. Possibilidade pura, porque quando ela acontece o Dasein, como ser de possibilidades, já não é, por isso, ela é possibilidade pura e incondicionada. O estar consciente disso deve colocar o humano em movimentos de busca de autenticidade ou de projetar-se para o futuro em suas escolhas factuais. Lembrando sempre que o estar lançado, é algo em que o ente humano se encontra sem ter escolhido, por isso, ainda que seus projetos só dependam de si, enquanto lançado não se funda e, nesse sentido, o Dasein morre, enquanto os outros entes, apenas, findam-se.

É notável que a leitura que Vattimo faz de Nietzsche ilumina também seus estudos de Heidegger no retorno ao pensamento como lugar de recuperação da distinção de ser e ente. Distinção que se tornará impossível em sua totalidade, mas importante, mesmo que parcial.

Do contrário, a tensão deixaria de existir e, de fato, o mundo técnico seria a consumação de uma humanidade massificada, na instrumentalização ôntica do ser. Pensar precisamente o ser, para Heidegger, segundo Vattimo, seria distanciar-se da pergunta pelo seu fundamento e mergulhar no Es gibt, o dar-se do ser. Isso não significa desprezo por tudo que a metafísica construiu porque esse emaranhado de conceitos permanece como memória (An-Denken).

Não se critica simplesmente a questão de o ser na metafísica ter as dimensões de Vorhandenheit (estar à mão) e Zuhandenheit (instrumentalidade) para o comércio cotidiano. O que torna o pensamento metafísico problemático é conceber o ser como petrificação objetiva e não conseguir colhê-lo sem aprisioná-lo em sua objetividade, exterminando o seu desvelar-se, a-létheia. Sendo assim, a pergunta sobre o que significa pensar, é de extrema importância. Heidegger disse que a ciência não pensa porque conta simplesmente com o feixe de dados que tem às mãos e quanto mais certezas, mais contribuições para a pesquisa. Ela, a ciência, parece estar segura de que o ser está aí, como em si mesmo, independente do tempo, peremptório.

A proposta de Heidegger, seguida por Vattimo, é colher o Denken, o pensamento como Andenken. O que é Andenken? Aqui deve acontecer um salto, uma passagem do modo comum de pensar o ser nas suas representações, sabendo que representar seria a forma de pensá-lo a partir de sua objetividade; salto para outro tempo em que também seja considerada sua dádiva, sua proveniência ou aquilo que é subtração para que os entes apareçam. A verdadeira diferença seria o pensamento que sempre pensa o seu objeto como diferença, ou seja, como Andenken, memória. É por isso que Denken se aproxima de Danken (memória e agradecimento). É o reconhecimento de que o pensamento se mantém ou se sustenta por aquilo do qual ele próprio não dispõe, não está à sua mão. Memória que se lhe apresenta como dádiva, já reconhecida pelas considerações nietzscheanas sobre aquela raiz granítica que forja o espírito do filósofo que pensa para além do historicismo. Reconhecer-se como oferta seria, resumidamente, o fruto mais profundo do pensar humano, relacionando-se à força do eterno retorno do mesmo que evita o fechamento subjetivo ao conceber o sujeito referenciado ao envio histórico do ser e não somente aprisionado na pesada tarefa de corresponder a um passado.

O Andenken remete, assim, ao círculo hermenêutico, porque com ele é possível mergulhar-se na inesgotabilidade da interpretação, com a qual o Dasein encontra-se sempre na convicção de que toda interpretação é carregada de contextos, linguagem e possibilidades. É por isso que no enfraquecimento da metafísica, quando aparece a técnica com sua organização, em que tudo se dá num horizonte de instrumentalidade ou de utilidade, quando o

ser é concebido como totalidade, e, portanto, dele não sobra mais nada, desponta-se o niilismo como clamor daquele mais nada metafísico. Longe de uma descrença ou descaso pelo ser, tal niilismo, pelo menos naquilo que Vattimo recorda, a partir de Heidegger, é a própria retomada desse mais nada. O termo Ereignis (evento) nasce no ocaso do ser, no declínio de ter se tornado ente, emerge a possibilidade de colher sua abertura. É no niilismo que a possibilidade de voltar ao ser aparece de fato, porque uma vez concebido como totalmente compreendido pela razão técnica, permanecendo inesgotável.

Nesse sentido, Andenken está relacionado ao Ge-Stell, ou seja, ao conjunto do Stellen, do ordenamento de tudo que serve para uma produção que garante as reservas, os fundos de uma busca sempre maior de produtividade. Superar a metafísica não significa eliminar essa ordem, em globalidade, e que custaria o preço de percorrer a passagem do Ge- Stell ao Andenken, como desejo ainda de superação. A novidade seria chegar ao Andenken através do Ge-Stell. De outra forma, seria melhor dizer um aprofundamento da metafísica do que uma superação como se fosse possível uma etapa posterior que, simplesmente, a destruísse. É necessária a postura do Verwindung que guarda também a convicção de que seja possível um para além metafísico, porque o ser se dá em suas feições técnicas, mas não somente nelas.

Ge-Stell faz emanar a abertura da verdade como Ereignis, já que na vastidão do mundo técnico, o fundamento desaparece colocando o próprio homem não mais somente como sujeito e, sim, também como objeto. Ge-Stell e Ereignis se dão na manifestação do caráter transitivo do ser, mostrando que a técnica não se sustenta como uma plataforma perene e estável. O niilismo, por isso, já não mais tem sentido como puramente redutor do ser ao nada, como acontece na técnica controladora, porque dele ainda permanece a abertura que faz a própria técnica permanecer, mostrando que a razão mais profunda da técnica não se encontra num conjunto de técnicas e, sim, naquilo que a movimenta em direção a tal conjunto.

Palavras como oscilação, flutuação e dança são importantes para a perda das determinações metafísicas, com isso, perde-se também a necessidade de se buscar diferença entre natureza e história tão almejada pelas ciências da natureza e do espírito. Paradoxalmente, o homem que manipula é também manipulado na técnica. Isso corresponde ao lampejar, a uma espécie de arrebol matutino do Ereignis (evento), de um tempo em que, no auge do manipulável, acorda-se o não manipulável. É, exatamente, o que garante uma infinidade de situações históricas, nunca iguais e sempre ancoradas na mesma diferença entre ser e ente. O horizonte mais pleno, por isso, é aquele em que o ser expressa sua debilidade, seu caráter de envio, e não sua peremptoriedade.

Neste contexto, Heidegger cunha o termo An-denken como rememoração e não como a busca de um resgate de uma época mais autêntica do ser. Ele é o encontro com a temporalidade, com o seu constante declínio que a metafísica tanto buscou superar e que, na época do niilismo consumado, para Vattimo, permanece como possibilidade de continuar pensando o ser como evento.

Gianni Vattimo assume, assim, a crítica nietzscheana-heideggeriana à obsessão ocidental da procura de um fundamento último e absoluto, seja na história ou na técnica, e passa a aderir a uma ontologia do declínio e da atualidade. O fundamento metafísico dá lugar ao fundamento hermenêutico que é aquele da historicidade e da finitude não somente do ente privilegiado que é o Dasein, como também do próprio ser que se mostra pelas vias da kênosis, do esvaziamento. O pensamento enfraquecido pode ser considerado como via alternativa que emerge entre o absoluto das assertivas peremptórias metafísicas e o silêncio imposto pela crença de que diante do ser se deve manter o silêncio absoluto. Tanto o eterno retorno do mesmo em Nietzsche, quanto a categoria evento em Heidegger, ao que tudo indica na presente tese, são colhidos por Vattimo como transformações importantes de uma tradição ocidental cristã enraigada na religiosa experiência kenótica de Deus. Para seguir com fidelidade essa hipótese, faz-se necessário notar, em cada tópico descrito, o soar de que o ocidente é a terra do declínio do ser que, na caritas, faz da secularização sua meta radical, sendo a pós-modernidade sua morada privilegiada.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 40-45)