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Tarefas do pensar

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 118-121)

3 CRISTIANISMO NÃO RELIGIOSO

3.4 ADEUS À VERDADE: A REINVENÇÃO ONTOLÓGICA DO

3.4.1 Tarefas do pensar

Segundo Vattimo, Karl Popper discorre sobre a sociedade aberta e seus inimigos, mencionando os filósofos que, no exemplo de Platão, ao sair da caverna, onde viviam os homens comuns, teriam posse das ideias eternas e deveriam conduzir aqueles que não possuíssem a verdade, ainda que por meios de força. Nesse campo, encontram-se também Marx com sua proposta de emancipação do proletariado e Hegel com a emancipação de uma razão astuciosa. Mesmo tal sociedade aberta não pode se colocar como parâmetro absoluto, portadora de uma verdade para todos, porque ela também é composta por escolhas, revelando sempre o risco da relação política - verdade. A partir da verdade como adequatio intellectus et rei, que depois de encontrada como valor objetivo deve moldar a realidade, segundo o princípio da correspondência, Vattimo cita o exemplo das forças americanas ao usar argumentos democráticos para invadir o Iraque. Tudo isso, e suas desastrosas consequências, faz ir sempre mais longe atingindo o próprio conceito de verdade que, segundo ele, pode ser aprofundado somente com Nietzsche e Heidegger.

Segundo Vattimo, (2010a), Nietzsche faz um balanço da cultura ocidental sob o signo do niilismo, resumindo no Crepúsculo dos ídolos, como o mundo verdadeiro tornou-se fábula. Primeiro, Platão concebeu a verdade das coisas no mundo das ideias, ou seja, nas essências transcendentais que possibilitam até mesmo falar com sensatez. Essas essências são imutáveis. O cristianismo, depois, viu tal verdade como sendo conhecida somente na eternidade. Kant concebeu a verdade como estando na mente capaz de organizar o mundo dos fenômenos mesmo não conhecendo o em si mesmo. Finalmente, Comte chamou de verdade tão somente o que pode ser verificado pelo método experimental. Heidegger, por sua vez, concorda com a crítica nietzscheana apesar de pensar que ele permanece preso a uma concepção metafísica ao conceber a verdade como puro jogo de forças. Heidegger reconheceu a herança niilista do ocidente e foi adiante ao dizer que além de desaparecer o mundo verdadeiro, ele dá lugar à organização tecnológica tornando o homem um objeto de manipulação. Partindo de Platão, chegou-se a encarnação do mundo estável, na organização técnica.

Rechaçar a verdade como objetividade tem, portanto, uma razão política em todo o pensamento vattimiano. Se a verdade é somente aquilo que é objetivo e calculável não haveria motivos para dizer de subjetividade, dando margens ao totalitarismo da verdade em si mesma. Como se,

para ser de verdade, deveríamos, em efeito, não ter incertezas, esperanças, afetos, projetos, senão corresponder em tudo e para tudo ao que a racionalidade social pretende de nós, quer dizer, que sejamos partes perfeitas da máquina de produção, do consumo e da reprodução sempre igual. Não esqueçamos que Comte falou, ademais, de uma ética industrial, imaginando que o comportamento moral deveria modelar-se sobre a cadeia da montagem, na qual cada um faz o que os outros esperam dele e assim não atrasa o processo produtivo (VATTIMO, 2010a, p. 49).

Diante dessas nuances, a ideia da verdade como abertura soa melhor para a liberdade. O discurso de Vattimo está inserido nessa herança, como ele mesmo afirma: “a conclusão a que quero chegar é que a verdade como absoluta, correspondência objetiva, entendida como última instância e valor de base é um perigo, mais que um valor” (VATTIMO, 2010a, p. 58). Seria melhor, portanto, optar pela pregação paulina do veritatem facientes in caritate (Ef 4, 15-16) que corresponde ao grego aletheuontes. Segundo Vattimo, em 1964, Heidegger publica O fim da filosofia e a tarefa do pensar e, nesta obra, conceitua metafísica como uma concepção de ser como dado objetivo em uma estrutura à qual se deve corresponder. Nesse sentido há que se entender o fim da filosofia como posse da verdade verdadeira com a chegada dos meios democráticos. Com o crescimento de outros conhecimentos, ensinar uma verdade abstrata pura pode não servir para nada. Se por um lado a filosofia como saber- controle da verdade está sepultada, por outro isso abre um vazio e a pergunta sobre a tarefa de pensar depois de sua morte, com o objetivo de evitar autoridades ainda mais desastrosas como os dos técnicos de variados saberes. “Se quisermos usar uma metáfora psiquiátrica, diríamos que existe o risco de construir uma sociedade esquizofrênica, onde antes e depois se instaura um novo poder supremo, as camisas de força e as camas de imobilização” (VATTIMO, 2010a, p. 78).

Não se pode, ainda, buscar a verdade como evento somente naqueles textos monumentais como os de Hölderlin, (2012), que só os filósofos reconhecem. O evento do ser ao qual o pensamento deve estar atento pode ir muito mais além. Ele abre a própria ontologia da atualidade. O novo lugar do intelectual, não científico ou técnico, seria mais parecido com o artista ou o sacerdote. Ontologia da atualidade, expressão de Foucault, contrapõe-se a uma analítica da verdade. Para Vattimo é necessário passar de uma fenomenologia para uma ontologia da atualidade. O que pretende a fenomenologia? Uma de suas buscas é encontrar na natureza um em si das coisas e das pessoas para daí justificar normas éticas. O problema da fenomenologia é se esquecer de colocar em jogo a historicidade do filósofo ou do cientista somente o concebendo como a-histórico, geométrico, imóvel. Heidegger, em sua luta contra a

metafísica, aprofundada depois de Ser e tempo, tem algo de vanguarda, como explicita o pensamento que segue:

A metafísica deve ser superada ou ao menos não se deve aceitá-la, não porque não inclua ao sujeito da teoria e seja, portanto, incompleta, senão porque, com seu objetivismo, legitima uma ordem histórica e social na qual a liberdade e a originalidade da existência são canceladas (VATTIMO, 2010a, p. 120).

Então, um pensamento que busca sair do esquecimento do ser em favor do ente, de outro modo, um pensamento que deseja não resumir o ser a objeto, é de fato aquele que se ocupa do ente descobrindo nele a abertura do ser. De alguma forma poderia ser nomeado como ontologia da atualidade. Trata-se de suspender a pretensão de validade definitiva do ente em sua condição histórica, descobrindo suas possibilidades e, ao mesmo tempo, seus limites. Resumidamente seria assim: sustentar um processo de encontro e desencontros com paradigmas, guardando a abertura suficiente para transmitir o que se conquista e colher, ao mesmo tempo, o ser que continua enviando suas mensagens. Escutando, sobretudo, a voz silenciada dos perdedores da história. A verdade não nasce, assim, de um encontro com um em si mesmo e sim como resultado de um acordo; concordância que não necessitou de evidência definitiva, senão de processos de caridade, da solidariedade e da necessidade humana de uma convivência pacífica.

Além disso, Vattimo faz conexão entre a crise da razão metafísica com o socialismo real, que abriu campo para o liberalismo com forte caráter de concretude pragmática. Também o fim de pretensões políticas universalistas que, com a Primeira Guerra mundial põe por terra a pretensão do progresso linear da humanidade, guiada pelo mais civilizado Ocidente, coloca em crise o filósofo político e seu dizer global sobre a vida política. Com a queda do socialismo real e o fim da metafísica o filósofo perdeu seu posto de conselheiro do príncipe. Perdeu não para o cientista, mas porque o próprio filósofo descobriu, também nas eleições políticas, que a realidade não pode ser mensurada por um sistema logicamente compacto e aplicável. Ela é muito mais guiada pelo jogo de forças entre minorias e maiorias do que por uma verdade absoluta.

Por que não se pode, então, pensar a política em termos de verdade no final da metafísica e no tempo de consolidação da democracia? Isso significa que a filosofia já não se sustenta como disciplina da verdade sem “aspas” e que se transforma, assim, num campo de rememoração do ser na pluralidade da atualidade do evento do mesmo. No entanto, que

sentido faz ainda falar de ser se já não acredita-se mais em fundamento? Sendo a filosofia uma ontologia da atualidade, sua vocação é interpretar sua época dando sentido aos seus significados difusos. Por isso, ela não é expressão abstrata de seu tempo, senão interpretação persuasiva e ao mesmo tempo contingente. Deixando a pretensão fundacional, a filosofia pode oferecer certa visão do curso da história não embasada em princípios eternos, porém com argumentações a partir do próprio processo mesmo, sabendo que nele está a história do ser.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 118-121)