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Kênosis: o Deus enfraquecido

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 85-91)

3 CRISTIANISMO NÃO RELIGIOSO

3.2 CRISTIANISMO NÃO RELIGIOSO, SECULARIZADO E

3.2.1 Kênosis: o Deus enfraquecido

Em Vattimo, o caminho proposto para a filosofia numa época da interpretação, de uma razão enfraquecida, assume estreita relação com a afirmação de que o ser é acontecimento e de que, assim sendo, a kênosis pode ser lida como realização mais profunda da qual parte a própria hermenêutica. De outro modo, o dizer de Nietzsche de que não existem fatos, apenas interpretações, não pode ser também uma afirmação metafísica, porque tal afirmativa, já é uma interpretação. Com isso, o pensamento humano se vê impossibilitado de encontrar um fundamento único, objetivo, eterno já que o mesmo é situado, limitado, feito de heranças e tradições, ainda que seja criador de novas configurações. De outra forma, é seguindo tal perspectiva que Vattimo elabora sua hermenêutica de cunho niilista porque reconhece que já não é mais possível o pensamento humano se alicerçar numa única e exclusiva experiência do ser porque o ser mesmo não se manifesta assim.

É justamente seguindo esta tradição que se pode encontrar um caminho de retorno ao ser sem que o mesmo seja confundido com um ente. Para isso é preciso levar em conta que todo conhecimento é interpretação situada que apresenta alguma dimensão verdadeira do ser, mas que ao mesmo tempo deve se perceber como limitada e, por isso mesmo, incapaz de abarcá-lo completamente. Se, portanto, o que existe é interpretação, deve-se reconhecer que também toda interpretação é mensagem colhida de um apelo histórico. Interpelação que chega como movimento do próprio ser que não se deixa confundir totalmente com o ente. Apesar de não se revelar como presença incondicionada, o ser mostra acenos que o mantém não confundido com as representações manipuladas pelo conhecimento.

De onde parte o pensamento enfraquecido para chegar a essa conclusão do ser como envio dinâmico, como provocador de um movimento ao qual os entes, de modo especial o Dasein, respondem em sua existência concreta? A interpretação vattimiana, muito mais que uma filosofia, é a afirmação da inevitável historicidade da própria existência entendida como herança de um cristianismo que tem a kênosis como sua mensagem mais importante. Esse é o ponto no qual, para Vattimo, encontra-se a legítima possibilidade do cristianismo, ou seja:

a relação da hermenêutica moderna com a história do cristianismo, portanto, não é apenas aquilo que sempre se acreditou, ou seja, o vínculo essencial que a reflexão sobre a interpretação sempre teve com a leitura dos textos bíblicos. O que proponho aqui é, ao contrário, que a hermenêutica, em seu sentido mais radical, expresso na frase de Nietzsche e na ontologia de Heidegger, é o desenvolvimento e a maturação da mensagem cristã (ZABALA, 2006, p. 67).

A pergunta chave para Vattimo se há possibilidade de, realmente, sustentar que o niilismo é a verdade atual do cristianismo, está vinculada a um problema maior que é o da concepção de verdade. Ao notar, por exemplo, a história moderna da Igreja, tem-se a sensação de que verdade sempre esteve ligada a uma coisa objetivável, seguindo o modelo das ciências positivas. Isso aprisionou a Igreja naquilo em que ela mais poderia dar sua contribuição, ou seja, seu alicerce no amor encarnado que ultrapassa os limites da própria razão humana, de maneira que “o cristianismo só tem sentido quando a realidade não é, unicamente e acima de tudo, o mundo das coisas simplesmente presentes; e o sentido do cristianismo como mensagem de salvação é justamente, antes de tudo, aquele de dissolver as pretensões peremptórias da realidade” (ZABALA, 2006, p. 70).

Reconhecendo que a mensagem cristã desdobra-se precisamente na dissolução das pretensões da objetividade, a Igreja poderia finalmente sanar certos confrontos entre verdade e

caridade que a tem acompanhado no curso de sua história17. Dizer, então, que o niilismo pós- moderno é, paradoxalmente, a verdade do cristianismo, esclarece-se pelo fato de ele contribuir para o enfraquecimento do conceito metafísico de verdade, dando lugar a algo criativo que se chama amor que, em si, não tem nada de fixo, de objetivo ou de pronto. E é isso que gera a tradição ocidental que, portanto, não pode ser nomeada sem o elemento cristão, segundo Vattimo. Então, não se pode nomear a realidade ocidental sem o cristianismo do qual o niilismo é seu porta-voz e, já que a verdade em seus tons objetivos não se mantém num tempo pós-moderno, a única chance que ainda resta é o preceito da caritas cristã.

Por que é o ocidente a terra do cristianismo secularizado? Para Vattimo o ocidente, mais precisamente a Europa, tem como elemento de identificação o cristianismo, ainda que de forma por vezes não pacífica. Ou seja, a modernidade não pode ser vista como momento totalmente novo, inaugural simplesmente. Ela tem sua herança referida aos valores cristãos. “O que pretendo afirmar é que o Ocidente é essencialmente cristão na medida em que o sentido da sua história se mostra como o ‘crepúsculo’ do ser, o enfraquecimento da dureza do real através de todos os procedimentos de dissolução da objetividade que a modernidade trouxe consigo” (VATTIMO, 2004a, p. 98). Há aqui uma correlação entre pensamento fraco, cristianismo e ocidente como terra do crepúsculo do ser ou da secularização. Secularização da ética, da ciência, da história porque já não mais existe um espelhamento da realidade. De qualquer forma é o cristianismo que gera a tradição cujo pano de fundo é o enfraquecimento, ou a kênosis do ser.

O retorno da religião deve-se a essa tradição, tratando-se muito mais do que da volta de algo que se foi passando pela oportunidade de aprofundar as raízes da própria cultura ocidental. Mesmo que a filosofia tenha tido a pretensão de superá-la, manifesta-se, outra vez, sua presença por pertencer à força motriz de toda uma cultura, portanto,

o silêncio da filosofia sobre Deus parece ser hoje carente de razões filosoficamente relevantes. Em sua maioria, os filósofos não falam de Deus, ou, antes, se consideram explicitamente ateus ou irreligiosos, por puro hábito, quase por uma espécie de inércia [...] Se não é mais válida a

17 Enfaticamente, as considerações vattimianas sobre verdade e caridade chegam ao seguinte: “a verdade que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem mesmo a verdade da teologia: assim como não é um livro de cosmologia, a Bíblia também não é um manual de antropologia ou de teologia. A revelação escritural não é feita para nos fazer saber como somos, como Deus é, quais são as naturezas das coisas ou as leis da geometria – e para salvar-nos, assim, por meio do conhecimento da verdade. A única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação – visto que não é um enunciado experimental, lógico, metafísico, mas sim um apelo prático – é a verdade do amor, da caritas (ZABALA, 2006, p. 71).

metanarrativa do positivismo, não se pode mais pensar que Deus não existe porque este não é um fato demonstrável cientificamente. Se não é mais válida a metanarrativa do historicismo hegeliano ou marxista, não se pode mais pensar que Deus não existe porque a fé nele corresponde a uma fase superada da história da evolução humana, ou é uma representação ideológica funcional ao domínio. É verdade que justamente Nietzsche, que contribuiu de forma decisiva para a dissolução das metanarrativas, é também aquele que anuncia a morte de Deus (VATTIMO, 2004a, p.109).

A razão humana, não encontrando mais motivos para descartar a religião de suas buscas, encontra-se mais uma vez diante de questões abertas. Sendo assim, de qual lugar a filosofia deve ainda falar de Deus18? Uma filosofia que já reconhece que não mais pode ser ateia, para que não se afaste da consciência comum, deve contribuir com discernimentos entre fundamentalismos ou relativismos. Se ela se contentasse em se aprisionar entre as quatro paredes das universidades, estaria fadada à uma grande ineficácia em suas produções epistemológicas. A filosofia do pensamento enfraquecido, também ela kenótica, pode oferecer à pós-modernidade pistas para um reencontro com suas raízes cristãs sem, no entanto, cair em posturas fundamentalistas e violentas de uma religião natural. Para Vattimo, parece haver uma encruzilhada: ou o cristianismo assume a cultura da qual é gerador (secularizada) ou volta a se tornar uma seita. Diante de seu aspecto missionário deve manter-se dialogal, garantindo um espaço de legitimidade para outras experiências religiosas. É a encarnação de Deus em Jesus que coloca o cristianismo não distante, mas dentro do mundo natural. Isso levaria a uma libertação dos vínculos imperialistas e uma aproximação com sua fonte genuinamente evangélica.

Como consequência, a filosofia deveria reivindicar ao cristianismo que ele manifeste sua primordial vocação à laicidade, passando do universalismo à hospitalidade. Por isso, “se deseja concretizar-se na forma da hospitalidade, a identidade do cristão no diálogo intercultural e inter-religioso – aplicando o preceito da caridade – pode apenas se reduzir, quase completamente, a um dar ouvidos e palavra aos hóspedes” (VATTIMO, 2004a, p. 126). Essa postura evitaria o colonialismo e para Vattimo essa sua tese, mesmo sendo de consequências bastante discutíveis, para que haja a renovação da vida civil no ocidente, será necessária também a renovação da vida religiosa.

18 O próprio Vattimo sugere uma importante pergunta: uma filosofia que tenha se conscientizado da ausência de razões para o ateísmo poderia realmente se aliar com a nova religiosidade popular, impregnada de fundamentalismo, comunitarismo, ânsia de identidade étnica e, em última instância, de promessas “paternais” pagas com o sacrifício da liberdade? (VATTIMO, 2004a, p. 111).

Com a morte do Deus moral, o evento Jesus já não pode mais ser identificado com uma verdade simplesmente objetiva. Se essa morte significa que não existe mais verdade objetiva, então fica aberta a clareira possível para outro movimento que é o da caridade. E esse seria o critério propulsor do niilismo como época de escutar o ser em sua revelação e também em suas sombras ocultas. De colher, portanto, o caráter hermenêutico de toda verdade. De que modo isso se justifica, o pensamento seguinte parece esclarecedor:

o niilismo, do ponto de vista nietzscheano/heideggeriano no qual me coloco, é a perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade com efeito de poder – nos múltiplos sentidos desta expressão: experiência científica que realiza o principium reddendae rationis -, sendo o fundamento erguido sobre a vontade ativa dos sujeitos que constroem a experiência e daqueles que, no quadro de um paradigma, se não arbitrário certamente histórico, o aceitam como válido; ideologia considerada verdadeira por aqueles que pertencem a uma categoria; mentira dos monges, inventada para justificar o poder e a disciplina social (VATTIMO, 2004a, p. 132).

A caridade cristã, de algum modo, está bem próxima da ereignis (evento) heideggeriana. Ela não se trata somente de uma verdade objetiva da revelação; é muito mais um fato proveniente da encarnação que revela o destino enfraquecido do ser que sai de suas estruturas ônticas rumo à historicidade de tudo o que é. Não sendo assim, o cristianismo correria outra vez o risco de se atrelar, segundo Vattimo, ao nexo entre metafísica e violência, como esclarece a citação: “a violência se insinua no cristianismo quando ele se alia à metafísica como “ciência do ser enquanto ser” (VATTIMO, 2004a, p. 146). O cristianismo não religioso estaria, assim, alicerçado na seguinte concepção de salvação:

não salvação através da kênosis, visto que se a glória fosse conseguida somente mediante a humilhação e o sofrimento estaríamos novamente em plena lógica vitimária. A kênosis não é meio de redenção, é a própria redenção. Esta é, a meu ver, a leitura mais razoável da mensagem da Encarnação. Que é uma leitura “niilista” apenas para quem persiste em pensar o ser com as características metafísicas da imponência, da estabilidade, da evidência plena na presença (VATTIMO, 2004a, p. 149).

Nesse sentido, o autor ao ligar o campo epistemológico do ser como evento ao de uma práxis cristã da caritas, pergunta-se, por exemplo, pela presença da igreja e sua plausibilidade. Afirma que o grande problema que sofre a Igreja refere-se exatamente a perda de plausibilidade de seu dogmatismo. Entende, grosso modo, que a missão da igreja tem coincidido com uma postura metafísica, autoritária, principalmente no que diz respeito à sua

hierarquia. De modo que “levando em consideração também São Paulo aos Coríntios (primeira carta) sobre a caridade como aquilo que resta -, quer dizer que hoje os cristãos são chamados a dissolver dogmatismos e autoritarismos em favor de uma atenção caridosa a todos” (VATTIMO, 2010c, p. 165). Considera que há desde as grandes peregrinações para estar com o papa, até os movimentos da new age e tele-pregadores, um considerável retorno de cenários religiosos. Paradoxalmente entende que, ao mesmo tempo em que cresce o interesse por temas religiosos, diminui a adesão de grandes massas a igrejas e aos seus ensinamentos práticos dogmáticos.

Acrescenta que muito do que se diz negativamente sobre igrejas, tem conexão com a questão do poder. Uma grande parte dos que falam de certo ateísmo parece professá-lo a partir de um contato com formas eclesiais que são obstáculos para o crescimento humano e social. Talvez eles não tenham nada contra Jesus Cristo ou uma divindade. O que não suportam é uma alma humana que tenha a pretensão de reger em nome de Deus. O que dizer dos crentes na Igreja, mas ateus? E dos inúmeros entraves sobre questões de bioética, sexualidade?

Há um clericalismo sem religião e uma religião sem Igreja, que, aliás, vê sempre mais na Igreja-instituição um fator de escândalo que ameaça produzir um afastamento da própria fé. Dois fenômenos sob os quais, repito, vale a pena refletir, mesmo porque caracterizam, para além da história desta ou daquela confissão religiosa, o processo de secularização em que estamos imersos (VATTIMO, 2010c, p. 169).

Vattimo diz que apesar de reconher as interferências globais de tudo isso, reflete a partir de uma tradição católica e ocidental. Qual o significado disto para a filosofia da religião? Que tudo revela que “o cristianismo está vivendo uma fase de des- institucionalização, ou, pelo menos, um momento no qual a verdade da fé pode salvar-se apenas reduzindo drasticamente o peso da autoridade central e, sobretudo, dos dogmas e da disciplina” (VATTIMO, 2010c, p. 169). Problemas continuam por toda parte e um dos mais graves, segundo Vattimo, é a ideia de um Deus poderoso e criador, um Deus da lei natural e, por conseguinte, conflitivo com o processo da encarnação de Jesus que revela o Deus do amor, da acolhida ao ente fragilizado, o Deus “que faz novas todas as coisas”.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 85-91)