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Jesus Cristo: singularidade kenótica paradoxal

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 152-156)

3 CRISTIANISMO NÃO RELIGIOSO

4.2 EVENTO CRISTÃO: A RADICAL CONDIÇÃO DO AMOR

4.2.1 Jesus Cristo: singularidade kenótica paradoxal

A Bíblia dá testemunho de uma novidade ao afirmar: “Nós sabemos que passamos da morte a vida, porque amamos os irmãos” (1 Jo 3, 14). “Isto foi possível por força da descoberta da singularidade de Jesus que reside na forma única e impensável de ser-com os homens e as mulheres. Em outras palavras, no evento da kênosis, que marcou definitvamente o rosto da história” (DOTOLO, 2007, p. 184). Aceitando as consequências de que a encarnação de Deus na história a eleva como lugar salvífico e a interpela como movimento que deve acolher a caritas como projeto, pergunta-se: a kênosis sendo de fato a grande novidade do cristianismo, não choca-se com a ideia comum de Deus que muitas vezes aparece na busca pós-moderna dos alívios imediatos de problemas diversos? Por que o evento da kênosis conota a originalidade do kerygma cristão em relação à história da compreensão de Deus da parte do homem? Porque ela narra o ser mesmo de Deus na relação com Jesus Cristo e seu senhorio, indo além de um conhecimento teórico, do qual a autoconsciência da primeira comunidade já é testemunha, do excesso de sentido inerente à figura de Jesus. Ao livrar-se do risco gnóstico de desvinculação com a história, Deus, sendo homem, não revela um gesto tirano de ser de Deus, e sua novidade está na solidariedade de Jesus com a humanidade enfraquecida. Sendo fato que supera o perigo da desestoricização, a kênosis torna-se elemento de contradição porque passa da onipotência absoluta para o amor absoluto, provocando um choque para a concepção natural de Deus e a passagem para um encontro de liberdade de amor.

A categoria kênosis ultrapassa, por isso, a imagem comum de Deus que possui a psicologia humana, geralmente concebida como transcendência pura, totalmente outro, pai eterno, distante da história humana, abrindo a possibilidade de uma categoria que não pode ser construída por um caminho natural, a não ser pelo processo encarnado - revelado. Em que sentido o pensamento enfraquecido de Gianni Vattimo, ao escolher tal categoria, contribui, então, com a plausibilidade do cristianismo na pós-modernidade, sem eliminar dele a particularidade de ser a kênosis um dado de revelação? No sentido de ser um pensamento que pensa a diferença entre ser e ente, afirmando que na base de toda diferença colhe-se a consciência da historicidade. Ao fazer a experiência de si, do outro, de Deus, o pensamento enfraquecido deve reconhecer-se também como dom, o que quer dizer que jamais se chega a um conceito absoluto do real porque ele é herança de uma tradição-tradução de um mundo sempre visto a partir de uma série de fatores. A hermenêutica, portanto, não deixa de mergulhar no abismo que surge no pensamento que pensa o que é próprio do pensar, ou seja,

o pensar como inserido sempre numa cultura e que nunca parte de um ponto zero, reconhecendo-se como pertença. Esse não partir de um marco zero abre uma clareira para a confissão, ou para a reverência ao dom que somente o divino pode fazer de si nas profundezas da kênosis.

Com isso, sacralidade e profanidade do mundo tornam-se a mesma coisa, como parece sugerir Vattimo? No interior da experiência cristã não é possível chegar a uma conclusão assim apressada porque o anúncio do Reino, proposto por Jesus, traz também rupturas instauradoras. Irrompe-se um dinamismo de conversão e o Deus que chama conta sempre com uma resposta livre, mostrando que a ruptura é sugestão de propostas que chegam no anúncio que tem sua manifestação plena no amor fraterno. Trata-se de um compromisso que vai além das medidas, convocando a liberdade humana limitada a sentir a dor do outro como sugere a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37). Com isso, nota-se que não se trata, no fundo, de separação entre duas histórias, a sagrada e a profana, mas de uma tensão constante entre a santidade e o pecado, propondo a abertura ao amor-oblação, diante do fechamento aos excessos narcísicos. No sentido de que há uma história, no entanto na qual pode ser gerada a proposta do amor fraterno ou a violência. A novidade é, então, o combate ao egoísmo, a busca de encontrar-se com o outro numa atitude de compaixão. Resta saber se tal atitude pode ser sustentada apenas pelas forças que habitam o coração generoso do homem?

A paixão do próprio Deus, na kênosis de Jesus, ao ser eleita por Vattimo como movimento essencial do cristianismo, pode ser reconhecida como portadora de algo para além do amor humano. Do princípio interpretativo da kênosis deve brotar uma atenção ao cotidiano principalmente no que tange a busca de sentido entre a banalidade do mal e o desejo do bem. Jesus tinha vísceras de compaixão - splanchnízomai como diz Lc 15, 20, portanto,

é somente a mediação histórica de Jesus que torna possível compreender e realizar a compaixão como modo de viver, isto é, de agir e padecer que constituem os elementos intrínsecos de toda prática destinada a reportar o mundo à sua integridade, a condição de um efetivo envolvimento nas carências das quais é caracterizada a nossa existência (DOTOLO, 2007, p. 216).

Mais que uma abstração, trata-se de um ato de aproximação, de um estilo inaugural de vida, instaurando o amadurecimento do amor que diante da pobreza gera uma práxis da comunidade eclesial como caminho de compaixão, via que jamais seria acessível sem a vida visível e fiel de Jesus de Nazaré. O encontro com a miséria do outro provoca uma resposta diante da proposta iniciada pelo senhorio de Jesus, ainda que esvaziado como dom, ao doar-

se. Esse caminho pregado e vivido pelo Cristo, por sua vez, questiona e muito o próprio cristianismo em tempos atuais27. Ao resgatar sua dimensão kenótica, Vattimo tem essa contribuição, livrar o dom da sacralidade da encarnação de Deus das posturas neuróticas que insistem em voltar com sua face natural, a saber, a soberania das ideias.

Sendo assim, a kênosis de Jesus é fundamento enfraquecido que não pode ser lida sem algo de transcendência. É da sua própria dor e sofrimento que o Senhor se aproxima do sofrimento da humanidade. Cristo não ajuda pela força de sua onipotência, mas pela sua fraqueza, por uma história feita de acolhida e recusas. Com isso:

a singularidade de Jesus, então, mostra, no evento pascal, a possibilidade para o homem de amar, porque quem encontra o sofrimento e sofre protesta contra tal realidade, reagindo à indiferença e à apatia, no único interesse da vida que é o amor compadecido, ainda que frágil e vulnerável (DOTOLO, 2007, p. 223).

Importante, nessa altura da tese, considerar bem, as várias referências feitas ao teólogo Carmelo Dotolo. Ele trabalha a teologia fundamental diante da cultura contemporânea, gerando uma de suas mais importantes obras que é Un cristianesimo possibile. Nela o autor se pergunta se o cristianismo tem ainda uma séria contribuição a dar à história e tenta redizer a proposta cristã para os tempos atuais, usando as contribuições filosóficas de Gianni Vattimo. Pontua que sem um diálogo com a atualidade o cristianismo corre o risco de uma asfixia. Faz sua proposta a partir de dois pontos: a pós-modernidade e a busca religiosa. De um lado a pós-modernidade mostra que o cristianismo não pode ficar mais apegado a antigas formas, de outro o cristianismo também é crítico da pós-modernidade revelando que a mesma não realiza as promessas feitas.

O que é positivo, em outras palavras, é que a perspectiva de Dotolo permite a contemporaneidade e o cristianismo de encontrarem-se num nível no qual as respectivas carências sejam purificadas e os respectivos méritos exaltados, sem que nenhum reneguem quanto de significativo pode oferecer ao homem de hoje na sua busca de sentido (GIORGIO, 2008, p. 474).

O cristianismo, exagerado em seu conceito ontoteológico, acabou sendo ameaça para o desenvolvimento do ser humano, por outro lado a leitura que se faz pela via da caritas ou da secularização lembra que a liberdade buscada pelo sujeito moderno tem suas raízes na tradição bíblica e cristã. Por isso, se na modernidade entra em crise o cristianismo global,

27 Ver DOTOLO, Carmelo, Evangelizare la vita Cristiana. Teologia e pratiche di nuova evangelizzazione. A obra trabalha a oportunidade atual de voltar às fontes cristãs naquilo que elas guiam o agir da comunidade.

ontoteológico, na pós-modernidade ressurge sua plausibilidade enquanto caritas. De tal modo que a relação entre cristianismo e época secular não se trata de um mal entendido, entretanto de um fruto da própria proposta cristã. Com a pós-modernidade, emerge uma época do mal- estar diante do cenário da globalização. Paradoxalmente, ela revela o plural e ao mesmo tempo a tentativa de uma homogenização alienante através do mercado e dos meios de comunicação. Tudo isso termina por gerar a figura do sujeito errante, que carrega consigo a ironia de um presente passageiro, mas que ao mesmo tempo sente ainda a pergunta pelo sentido existencial, questão refletida na explosão de novos mitos.

É estimulante pensar, a partir disso, a questão da ética porque se de um lado nota-se a aversão a uma norma global, única, por outro lado há a forte tendência a um desencorajamento da própria prática do plural. “A ética estética, ainda que na sua sombra tecnológica, é expressão mais completa deste novo clima: essa é compreendida qual modo de habitar um mundo no qual a realidade e a vida perdem a persuasão no fluido poder ser de outro modo” (GIORGIO, 2008, p. 477). E isso leva a uma ética procedural, na busca de um consenso. Uma ética que denuncia o valor do ser em si sem sua dimensão relacional que acaba fazendo da transcendência um valor de separação e não de comunhão. De outro modo, inaugura-se a possibilidade de uma ontologia relacional que tem na caritas seu princípio. Com isso, em que sentido o pluralismo religioso pode reivindicar uma abertura ou mudança de paradigma do próprio cristianismo sem impor uma distorção do mesmo quase que de maneira antagônica?

O centro do cristianismo é a pessoa de Jesus Cristo e sua kênosis supera a dicotomia entre Deus e homem, mundo e céu. Deus supera a visão metafísica revelando-se como amor - relação com a fragilidade humana em seu próprio enfraquecimento. A categoria do sacro se desfaz dando lugar ao santo e a história como lugar de encontro com Deus e de plenitude de vida. Superando o código da separação e apresentando o código da participação, da solidariedade, da compaixão, esta última palavra leva o cristão ao encontro com o pobre por saber-se também empobrecido, caso não fosse guiado pelo dom de ser morada de Deus. De modo que,

a escolha ética do amor, em tal sentido, não move nem na vagueza de um movimento afetivo, nem pela busca virtuosa de um abstrato valor ideal que atrai o eu, mas sim pelo sofrimento do outro - o pobre - que o eu colhe e registra na sua solicitude para com ele. Esta é a lógica do Reino (GIORGIO, 2008, p. 479).

Tudo isso toca profundamente uma visão de Deus na época da secularização, o que autores como Bonhoeffer, Gogarten, Metz, pensaram ser o retorno de um Deus concebido religiosamente ainda ontoteológico, como resposta consoladora insuficiente para um mundo adulto, a encarnação revela que a questão da existência de Deus passa pela lógica da relação e não pela metafísica. Encarnação na história, portanto, apontando para um mais além da própria história como categoria crítica da mesma, como esperança. Tal configuração exige das instâncias de testemunho da verdade - compaixão, no caso da Igreja, partilha, participação das vicissitudes de seu tempo e sendo mais acolhedora, sentindo as demandas das bases, dos enfraquecidos não pelo simples fato de promoção de sua emancipação, entretanto porque tais massas revelam a finitude da humanidade mesma, vislumbrando, somente na fraternidade, uma via de construção positiva que não seja a costumeira e eterna guerra entre vencedores e vencidos, ricos e pobres, sábios e ignorantes, crentes e ateus, salvos e condenados. Na força do amor compassivo, a comunidade deve tornar-se templo de um dom do qual não é propietária e sim pastora.

No documento vicentedepaulaferreira (páginas 152-156)