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Editoria: a alquimia do discurso

No documento ARIETE NASULICZ E BELTRAMI (páginas 143-146)

6. REDENÇÃO: O ESPÍRITO DO DEVIR

6.3 Modernidade: o diálogo científico

6.3.1 Editoria: a alquimia do discurso

Sei que às vezes uso Palavras repetidas Mas quais são as palavras Que nunca são ditas?

Renato Russo Simplificadamente “editar” significa escolher, selecionar e organizar um texto para a sua publicação. O texto pode ser publicado na íntegra, em partes, ou ainda acrescido de glosas e mesmo outros textos, e cabe ao editor a decisão do que deve ou não ser lido pelos leitores. A fundamental importância de Dario Vellozo como editor se dá justamente porque era ele quem escolhia os textos que seriam divulgados, o que reflete em boa medida, a sua predileção pelos textos de caráter científico, esotérico e ocultista.

Sobre a atividade de editoria de Vellozo, é importante esclarecer que não temos como precisar até que ponto, os assuntos que ele pôs em circulação, refletiam a sua opinião, ou se independentemente dessa, ele os colocou apenas em discussão, ou ainda apenas para divulgação. Já mencionamos que ele veiculava algumas opiniões adversas sobre os artigos publicados. E nesse sentido, as revistas serviam como um verdadeiro canal de diálogo, com espaço para réplicas e tréplicas dos leitores. Todavia, tais configurações dissonantes aparecem com pouca freqüência nas fontes pesquisadas. Como nem todos os textos das revistas trazem a indicação da autoria, embora editadas por Vellozo, centramos nossa atenção nos textos assinados por ele ou que, mesmo pertencendo a outros autores, repetem-se em alguns trechos editados nas Obras Completas ou em outras revistas. O que quer dizer, que na atividade editorial de Vellozo, os textos e idéias de determinados autores, passaram a compor também o seu discurso.

Um exemplo concreto de que Vellozo absorvia idéias e reelaborava-as, por vezes juntando, por outras criando novos conceitos ou agregando novos significados é o seguinte trecho do texto Entre o Cáucaso e o Olimpo, de 1912, assinado por Apolônio de Tiana, pseudônimo adotado por Vellozo:

Os homens que obsedam da superstição materialista, sofrem decepções acerbas, criam sucúbios exaurentes. A Matéria é tão indestrutível como a Fôrça; Fôrça e Matéria são formas da Substância eterna. As Formas passam em sua instabilidade efêmera, mas a Essência é imutável, una.

- Nada se cria e nada se perde na Natureza, afirmou Lavoisier.

- Gustave le Bon exclamou: - Nada se cria. Tudo se perde. - Poderíamos concluir: - Tudo se cria; nada se perde. Os enunciados são verdadeiros; simplesmente: os pontos de vista de Le Bon e Lavoisier são distintos. Le Bon parte de certo estado da Matéria exausta; Lavoisier refere-se à Matéria no Infinito.

O terceiro enunciado fixa o momento do Fiat! no caos, a transmutação da Substância no Cosmos. De então, nada se perde;

tudo se cria... nada se pode perder, de fato, no Infinito; tudo se cria no

Universo, porquanto a Essência se transmuda em Substância, a Substância em Fôrça e Matéria, a Fôrça e Matéria em novos, constantes, perenes aspectos, formas e corpos. Tudo se cria, porque tudo envolve do Inconsciente ao Consciente, os ciclos da Perfectibilidade.313

Vemos Lavoisier, filósofo iluminista do século XVIII, pai da Química moderna que enunciou o princípio da conservação da matéria e refutou a teoria do flogisto, numa interação com Gustave Le Bon. As credenciais de Le Bon, por sua vez, são mais ecléticas. Como sociólogo do XIX, estudou a psicologia e o comportamento das massas e da mídia e interessou-se pelo campo da Física. Le Bon contribuiu para os debates sobre a natureza da matéria e energia. Seu livro A Evolução da Matéria se tornou popular na França, chegando a doze edições. Embora algumas de suas idéias, notadamente a de que toda a matéria era inerentemente instável e estava constante e lentamente transformando-se em éter tenham sido levadas em conta favoravelmente pelos físicos da época, sua formulação específica da teoria não teve a mesma consideração.

A célebre frase “Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” de Lavoisier, aparece nesse texto de Vellozo em interação com “Nada se cria. Tudo se perde” de Le Bon. Ambas as idéias sobre a matéria são conciliadas por Vellozo quando ele afirma que “Poderíamos concluir: - Tudo se cria; nada se perde.” E mais adiante são reelaboradas num outro enunciado “O terceiro enunciado fixa o momento do Fiat! no caos, a transmutação da Substância no Cosmos. De então, nada se perde; tudo se cria...” A maneira como as afirmações antagônicas são deslocadas do seu sentido, conciliadas e reelaboradas demonstram a habilidade de Vellozo em interagir com discursos opostos, mas que ao misturá-los dá a eles uma outra coerência, justificando que “nada se pode perder, de fato, no Infinito; tudo se cria no Universo, porquanto a Essência se transmuda em Substância, a Substância em Fôrça e Matéria, a Fôrça e

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Matéria em novos, constantes, perenes aspectos, formas e corpos. Tudo se cria, porque tudo envolve do Inconsciente ao Consciente, os ciclos da Perfectibilidade.”

É interessante notar que Vellozo usa textualmente o método hermético dos alquimistas de separar e unir os elementos (no caso, idéias), de forma a extrair uma terceira, colocada no seu terceiro enunciado. Podemos afirmar que Vellozo é um alquimista do discurso. Segue os ritmos e polaridades das idéias de seu tempo, retirando-lhes um sentido e atribuindo o seu, fruto de sua interpretação de mundo. Ao observar o conjunto da obra de Vellozo, podemos perceber que ele procede de tal maneira em quase todo o seu discurso. Ele imprime uma originalidade de quem lê, interpreta e reelabora o texto, deixando uma marca pessoal da sua interpretação. Este fragmento nos pareceu significativo, na medida em que ele mostra textualmente como Vellozo conciliou idéias antagônicas, fruto de leituras variadas. Separar, para depois juntar e adaptar é notadamente uma prática alquimista que Vellozo aplica ao discurso, seu objeto de experiência (diferente do uso de elementos químicos como objeto, como faziam os alquimistas). A prática editorial tem grande importância nesse processo. É ela quem permite o labor com as palavras, a reelaboração dos discursos e rearranjo das idéias. No conjunto de sua obra, foi possível perceber também que Vellozo reutilizou fragmentos de textos, de artigos mais antigos, em artigos mais novos, numa espécie de recorte e colagem, técnica possivelmente adotada pelos mais variados editores. Isto ocorre porque encontramos trechos que se repetem em discursos diferentes e aparecem diluídos em outros artigos.

... Deves separar a terra do fogo, e o sutil do rude e grosseiro, mas com amor, com grande compreensão e discernimento. (...) Todas as coisas são criadas (ou restauradas) de uma única coisa, todas as coisas provêm de uma única coisa por prescrição e união (adaptação), pela vontade e comando (pela mediação).314

Vellozo portanto, adapta os discursos, como um alquimista das palavras, de maneira a lhes dar um novo sentido e coerência. Na mesma página, junto ao mesmo trecho que selecionamos, encontramos a seguinte afirmação a “harmonia resulta da analogia dos contrários”, isto é, ele harmoniza discursos contraditórios.315

Parte dessa mesma série de trechos encontramos “o bom estilo é a perfeita harmonia entre as idéias e as palavras”, e, “seguir a moda em literatura, é suicidar-se

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Trechos extraídos da Tábua de Esmeralda. Hermes Trismegisto. Publicação AMORC. Op. cit., p. 31. 315

literariamente por completo”.316 Podemos considerar esses fragmentos representativos de como Vellozo entende, expressa e labora o seu discurso, imprimindo as impressões que tem das leituras, na elaboração do novo texto, do terceiro enunciado.

Esses indícios textuais são apenas uma demonstração de como Dario Vellozo dialogava com a ciência do seu tempo. Usava argumentos científicos, reelaborando-os num discurso seu, conferindo-lhe lógica argumentativa. Isso quer dizer que, por mais estranho que possa parecer, um poeta simbolista podia ser ao mesmo tempo positivista, evolucionista, hermetista; e ainda assim, encontramos sentido coerente em sua fala.

É necessário agora, apresentarmos como Dario Vellozo dialogava com o positivismo e o evolucionismo, idéias científicas em pauta à época, sem no entanto, aprofundarmos a discussão, uma vez que essas idéias não são em si a base do pensamento de Vellozo, e sim, pontos de intercâmbios de concepções científicas.

No documento ARIETE NASULICZ E BELTRAMI (páginas 143-146)