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3 ESCRITA E IDENTIDADE

3.2 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E ALFABETIZAÇÃO

A partir da consideração da complexidade das questões que envolvem o eu e outro nas relações étnico-raciais e nas interações de leitura e escrita, procurou-se destacar algumas justificativas para o desenvolvimento do tema.

Assim, com o intuito de identificar trabalhos com o mesmo foco, foi realizada uma busca na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, em que se constatou uma quantidade expressiva de trabalhos que tiveram como objeto de estudo a produção de texto. Portanto, indica que nos últimos anos, a produção de texto vem ganhando espaço não apenas nas escolas, como também nas pesquisas. Um panorama desse enfoque é apresentado na tabela a seguir:

Digital Brasileira de Teses e Dissertações em 09/01/2014

TERMOS QUANTIDADE

Produção de texto 23317

Produção de texto/ensino fundamental 774

Produção de texto/Alfabetização 137

Educação das relações étnico-raciais 103

Educação das relações étnico-raciais/Produção de texto 8 Educação das relações étnico-raciais/Alfabetização 1

Fonte: Site http://bdtd.ibict.br/.

Ao observar a Tabela 1, dois aspectos podem ser notados: o primeiro é a confirmação do interesse na produção de texto, se comparados com pesquisas utilizando outros termos relacionados à escolarização como “leitura e escrita”, que apresentou a quantidade de 2.236 ou “alfabetização” com 976 trabalhos listados, e o segundo foi como a quantidade reduz de forma significativa quando os termos são educação das relações étnico-raciais com produção de texto e alfabetização. Essa última situação trouxe indagações que motivaram este trabalho, tais como:

a) Quais produções de texto estão propostas nas escolas?

b) Quais possibilidades e limites que professores, diretores e coordenadores vêm nas atividades de produção de texto na alfabetização?

c) A produção de texto pode favorecer a construção das identidades das crianças? d) E o que história e cultura africana e afro-brasileira têm a ver com produções de textos

infantis na escola?

As perguntas acima pulsavam por algumas respostas, mesmo que provisórias. Portanto, para tentar obtê-las foi imprescindível o trabalho empírico e desenvolver a pesquisa com crianças no ambiente escolar implica cuidados éticos. Buscar entender a infância e suas relações e produções nesse espaço, assim, é um movimento de repensar que demanda responsabilidades. Uma consequência dessa reflexão é compreender a presença infantil na pesquisa como não decorativa. Sobre pesquisas com crianças, há trabalhos que orientam a respeito dos cuidados necessários neste tipo de pesquisa.

Mais do que “dar voz” trata-se, então, de escutar as vozes e observar as interações e situações, sem abdicar do olhar do pesquisador, mas sem cair na tentação de trazer os sujeitos apenas a partir desse olhar (SILVA; BARBOSA; KRAMER, 2005, p. 56).

As complexidades e desafios que envolvem pesquisas com crianças também foram apontados por Trinidad (2011). Para a pesquisadora, a visão naturalizada da infância e seu desenvolvimento através de estágios imutáveis, que tem fundamento na psicologia do desenvolvimento, resultaram numa compreensão hegemônica sobre crianças.

Também no século XX, ademais de ser considerada universal e uniforme, a criança passou a ser normatizada mediante o tratamento que lhe era dado principalmente no ambiente familiar e escolar. A criança era considerada um não adulto, um ser incompleto (TRINIDAD, 2011, p. 78).

A referida autora considerou em seu trabalho as crianças como produtoras de culturas, visão que parece ser apropriada para o presente trabalho.

Dessa forma, este trabalho se justifica, na medida em que, ao repensar a escola e a criança, é possível verificar que na atual sociedade não há espaço apenas consumir e reproduzir, mas também se faz necessário criar oportunidades para que meninas e meninos possam contar e produzir suas histórias. Outra justificativa para este estudo e que ele pode contribuir para ampliar os conhecimentos sobre as práticas escolares no que se refere a interface dos processos de leitura e escrita com a educação das relações étnico-raciais, pois considerando os dados da Tabela 1, há poucos trabalhos nesta perspectiva. Em outras palavras, a língua portuguesa entre os diferentes componentes curriculares ainda prevalece como eixo principal para aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita1. Dentre as várias dimensões de ler e escrever, optou-se

pela produção de texto nos anos iniciais, especialmente no 2º ano (1ª série) do ensino fundamental, pois aqui compreende-se que a ideia de reconhecer pode estar associada tanto na relação de leitura e escrita das palavras como leitura e escrita de si e do outro, então exatamente nesse ponto pode haver o encontro e diálogo com a educação das relações étnico-raciais que pressupõe que reconhecer exige, entre outros aspectos, questionamentos, valorização e respeito (BRASIL, 2013), assim como nas estratégias de produção de texto.

No que diz respeito à produção de texto nos anos iniciais, ainda há instabilidade teórica e prática. Ao analisar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa, Silva S. (2006) utilizou o processo de retextualização que propiciou explicitar algumas diferenças na definição dos conceitos de letramento, texto, discurso, gêneros do discurso que constam no

1 A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo na Resolução nº81/2011 estabeleceu a Matriz Curricular

Básica para o Ensino Fundamental, na qual são distribuídos os componentes curriculares do ensino

fundamental. No 1º ano, a distribuição é da seguinte forma: Língua Portuguesa – 60%; História e Geografia (-); Matemática – 25%; Ciências Físicas e Biológicas (-) e Educação Física/Arte – 15%. Porcentagens referentes a 25 e 24 horas semanais que correspondem a escolas com dois turnos e três turnos.

documento. Dessa forma, constata-se que os conceitos envolvidos podem ser apresentados de forma incompleta aos professores polivalentes que não têm formação em linguística, o que pode causar equívocos na prática.

O ensino da língua portuguesa é um assunto complicado, e a questão da alfabetização foi retomada nacionalmente com a produção dos “Elementos conceituais e metodológicos para definição dos direitos de aprendizagem do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2012). Esse documento tem como pretensão estabelecer especificidades curriculares para o ciclo de alfabetização no país. Ele é composto por aproximadamente trinta direitos, vinte eixos estruturantes e duzentos e cinquenta e seis objetivos de aprendizagem. Sua organização é feita com duas partes. A primeira parte apresenta os fundamentos gerais do ciclo de alfabetização. Entre outros aspectos, há apontamentos sobre ludicidade e o brincar nessa fase, o que poderia representar alterações importantes no processo educativo escolar do ensino fundamental. A segunda parte apresenta áreas de conhecimento e seus respectivos componentes curriculares. Quanto ao componente curricular língua portuguesa, são apresentados seis diretos de aprendizagem e desenvolvimento. O trabalho aqui apresentado não utilizou o referido documento como referência, mas sua menção foi considerada no intuito de informar que há um movimento nacional de pensar sobre o processo de alfabetização.

Ainda, a reflexão da infância nas relações étnico-raciais e nas práticas de leitura e escrita prescinde de outras reflexões e questionamentos tais como quais representações de si e do outro a criança produz ou é permitido que ela produza na escola?

Há novamente a aproximação com o conceito de identidade. A partir das considerações dos autores já mencionados e também de pesquisadores (MARANHÃO, 2009, SILVA D., 2009) sobre a característica de a identidade ser inacabada, é possível ponderar que não é um produto, é uma noção diretamente relacionada à ideia de produção, portanto há sintonia com a proposta de produção de textos, pois a escrita também envolve incompletudes e fluxos que contemplam “processos que estão imersos na articulação entre o individual e o social, entre o passado e o presente, entre a memória e a história” (GOMES, 2003, p. 171). Assim, a educação das relações étnico-raciais e práticas de leitura e escrita na fase inicial da alfabetização depende da busca de novos olhares para esses entrelaçamentos.

Dessa forma, o percurso que se pretendeu realizar na prática pedagógica foi orientado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no que diz respeito:

- à conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos no conjunto da sociedade;

[...]

- condições para professores e alunos pensarem, decidirem, agirem, assumindo responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias, conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças; - valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura (BRASIL, 2013, p.485).

A partir dessas considerações, procurou-se, neste trabalho, vislumbrar na vivência escolar os conhecimentos articulados entre teoria e prática que podem emergir de ações que tenham prioridades práticas educativas menos restritivas.

Para produzir ações com tais especialidades, foi necessário identificar as características dos exercícios de produção de textos propostos na escola que não eram compatíveis com o intuito mencionado, a fim de modificá-las e, dessa forma, a ação proposta constituir-se uma intervenção. Então, elencaram-se características dos exercícios escolares a fim de elucidar os motivos pelos quais foi considerada a necessidade de intervir. A seguir, descrevemos as características mencionadas.