• Nenhum resultado encontrado

3 ESCRITA E IDENTIDADE

3.1 IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os estudos sobre identidade estão presentes nas diferentes áreas do conhecimento. A intenção aqui é destacar aspectos gerais sobre da relação do eu e do outro, trajetória que também pode envolver leitura e escrita.

A pesquisadora Lima (2008, p. 42), explicando o conceito de identidade para Hall, diz que, para o referido autor, a construção da identidade “está inscrita em relações de poder, de interações materiais e simbólicas e como tal não pode ser pensada fora do campo de tensão contínua e processual”. Assim, inserir a reflexão de identidade no processo de alfabetização de crianças envolve a dimensão simbólica da grafia que se desenvolve nas interações.

Desse modo, a apropriação da leitura e da escrita influencia na constituição da identidade do sujeito. Para Correa e Maclean:

O conceito que fazemos de nós mesmos não é uma conquista imediata. Dá-se segundo diversos níveis de complexidade ao longo de nossas vidas, estando inextricavelmente relacionado à cultura em que vivemos e às interações sociais que estabelecemos em nossa experiência quotidiana (Durkin, 1995). A capacidade de tomarmos consciência de quem somos, de nossos sentimentos e características psicológicas é constituída no contexto das relações interpessoais que estabelecemos ao longo de nosso desenvolvimento segundo um processo contínuo de apropriação e construção conjunta de significações sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos cerca (CORREA; MACLEAN, 1999).

Nessa tentativa de responder quem somos, ou, em outras palavras, definir o conceito do

Eu, a trajetória escolar assume um papel de destaque, pois, ao considerar apenas o ensino

fundamental, a criança frequenta por nove anos a escola. Dado esse que corrobora que há influência das instituições formais de educação na formação da identidade das crianças e também nas possibilidades de meninos e meninas desenvolverem leituras e escritas de mundo,

nas letras, nos rasbiscos, nos desenhos... Contudo, como destacam Zubaran e Silva (2012), o processo de construção de identidade não está restrito ao ambiente escolar.

Ainda sobre a identidade, o papel do outro é fundamental, na medida em que:

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe), etc. e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo (BAKHTIN apud KRAMER, 2004).

Tendo em vista o tema deste trabalho, pode-se considerar que, assim como não é suficiente saber o alfabeto para ler e escrever, também não basta quantificar a melanina ou medir partes do corpo para definir negros e não negros. Devido às peculiaridades das relações étnico-raciais no Brasil, ser negro é tornar-se (GOMES, 2003; SOUZA, 1983), e esse é um processo complexo que envolve a identidade.

Os pesquisadores Munanga (2003) e Gomes (2003) alertam para tal complexidade. O primeiro destaca que, para compreender identidade negra no Brasil, é necessário considerar o contexto histórico da experiência forçada de rupturas, privações e violências vivenciadas pelas pessoas negras africanas trazidas para o Brasil a partir do processo de colonização. Esse autor ainda destaca que na perspectiva da “antropologia todas as identidades são construídas, daí o verdadeiro problema de saber como, a partir de que e porque” (MUNANGA, 2003, n.p). Outro destaque, realizado por esse mesmo pesquisador, refere-se ao questionamento quanto à concepção universalista da identidade, sendo que uma das questões postas na contemporaneidade é a integração ou abstração das diferenças nas identidades. Já a segunda pesquisadora defende que as identidades são múltiplas, sendo a negra uma das possíveis de ser construída por negros/as. Segundo a autora:

A reflexão sobre a construção da identidade negra não pode prescindir da discussão sobre a identidade como processo mais amplo e complexo. Esse processo possui dimensões pessoais e sociais que não podem ser separadas, pois estão interligadas e se constroem na vida social (GOMES, 2003, p. 171).

A mencionada pesquisadora assinala que, em se tratando de identidades sociais, o processo não apresenta simplicidade ou estabilidade, e, como as outras, a identidade negra é uma elaboração gradual que tem início nas primeiras relações familiares, e outras dinâmicas se estabelecem com a ampliação das relações, como as escolares. No entanto, ainda segundo Gomes (2003, p. 171): “[...] construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que

historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros”.

A autora, então, questiona como a escola tem se atentado para essa questão e afirma que essa instituição pode interferir na constituição da identidade negra, afirmação que tem suporte na sua pesquisa de doutorado, em que a escola apareceu nos depoimentos dos entrevistados como espaço em que também ocorrem os processos de identidade. Nessa mesma pesquisa, Gomes (2003) identificou a importância da cor da pele e dos cabelos crespos nos referidos processos.

O entendimento da simbologia do corpo negro e dos sentidos da manipulação de suas diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser um dos caminhos para a compreensão da identidade negra em nossa sociedade. Pode ser, também, um importante aspecto do trabalho com a questão racial na escola que passa despercebido pelos educadores e educadoras. Em torno da manipulação do corpo e dos cabelos do negro existe uma vasta história. Uma história ancestral e uma memória. Há, também, significações e tensões construídas no contexto das relações raciais e do racismo brasileiro (GOMES, 2003, p. 174).

De forma geral, os aspectos que foram apontados indicam que o processo que os seres humanos se apropriam da realidade, ou seja, a produção da identidade, especificamente a étnico-racial, tem distinções. Ao considerar a história do Brasil, conforme enfatiza Munanga (2003), é possível compreender que os repertórios de atividades de negros e não negros tinham, entre outros fatos, o de por um lado o empenho dos não negros para naturalizar as posições dos sujeitos e por outro a resistência dos/as negros/as. Negar que esse cenário influenciou as relações entre os sujeitos seria recusar a própria história, no entanto é imprescindível refletir sobre como alguns discursos prevalecem nos grupos sociais definindo valores e comportamentos.

Segundo Zubaran e Silva (2012, p. 134), “[...] a construção das identidades negras passa, pois, necessariamente, pela forma como os negros são representados e como representam a si próprios nos mais variados locais da cultura”. Assim, parece imprescindível que no espaço escolar exista a compreensão de que a herança discursiva entre a representação de negros e não negros teve predominância negativa dos primeiros e positiva dos segundos, o que colaborou na reprodução de equívocos.

Durante séculos de escravidão, a perversidade do regime escravista materializou-se na forma como o corpo negro era visto e tratado. A diferença impressa nesse mesmo corpo pela cor da pele e pelos demais sinais diacríticos serviu como mais um argumento para justificar a colonização e encobrir intencionalidades econômicas e políticas. Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que, naquele

contexto, serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais (GOMES, 2002, p. 42, grifo nosso).

Se há argumento, há (houve) discurso que ganhou estabilidade na produção das relações, portanto é uma herança discursiva, assim como também os silêncios investigados, por exemplo, por Gonçalves (1983) e Cavalleiro (2000). Contudo, mesmo que haja no Brasil um favorecimento de uma herança discursiva, há heranças discursivas. Nesse sentido, ao retomar a questão da identidade étnico-racial no espaço escolar, cabe perguntar as heranças discursivas de quais sujeitos têm prevalecido? Quem representa ou como é a representação negra nesse espaço?

Cabe destacar que Zubaran e Silva (2012, p. 136) definem o conceito de território negro como “os espaços onde se preservaram as práticas culturais de matriz africana e onde se construíram identidades negras positivas”. Tendo tal conceito como referência, a escrita negra pode ser compreendida como território negro, pois a grafia também pode preservar as práticas culturais de matriz africana. O pesquisador Bosi (2002), ao escrever sobre literatura, descreveu duas formas de considerar a escrita e os excluídos. Na primeira, o sujeito seria considerado como objeto da escrita que compreenderia temas, personagens e situações narrativas. Segundo o autor, “[...] a tarefa do estudioso seria, nesse caso, pesquisar os modos de figuração das camadas mais pobres na poesia, na prosa narrativa, no teatro, no repertório de uma literatura ao longo de um ciclo histórico-cultural” (BOSI, 2002, p. 257). Na segunda forma, compreendida por Bosi como oposta à primeira, o excluído seria sujeito do próprio processo simbólico (BOSI, 2002, p. 259).

Então, a partir do exposto pelas pesquisadoras Zubaran e Silva (2012) sobre o que é território negro e pelo pesquisador Bosi (2002) sobre as formas de escrita, permite a ideia da inserção da escrita negra como território negro, pois seria nessa forma de escrita uma das possibilidades de a pessoa negra ser sujeito do próprio processo simbólico e processo que se relaciona com identidade na medida em que “[...] a identidade étnico-cultural, mesmo quando aparece como marginalizada, excluída, não é realidade muda, simples objeto de interpretação. Ela é fonte de sentido e de construção do real” (KREUTZ, 1999, p.83).

No processo de escolarização, no que diz respeito à aquisição da leitura e escrita, existem diversas concepções teóricas que resultam em abordagens pedagógicas com princípios teóricos que concebem criança, mundo, ensino e aprendizagem, que determinam a ação prática. No entanto, como já esclarecido anteriormente, não é intenção neste trabalho tratar especificamente de tais temas.

Sob essa perspectiva, por considerar o papel da aquisição da leitura e escrita na construção do Eu, e tendo por base que as relações étnico-raciais estão no alicerce desse processo de construção, este trabalho dedica-se a analisar como a (re)educação das relações étnico-raciais é traçada no percurso de atividades de escrita de crianças de uma turma de segundo ano do ensino fundamental.

O pressuposto do trabalho é o de que nas atividades de escrita as crianças têm oportunidades de expressar suas vivências, sentimentos e pensamentos, além de estabelecer um espaço de “[...] experiência que, necessariamente, possibilita ao eu sair de uma posição fixada no imaginário para passar para uma posição de sujeito-autor na inscrição de seu traço real” (AGUIAR, 2010, p. 17), que permite uma construção de aspectos mais favoráveis do que desfavoráveis nas diferentes identidades das crianças.

Da mesma forma, busca-se uma atuação pedagógica menos restrita. Entretanto, longe de ser uma “receita didática”, “inovação pedagógica” ou “instrumento de eficiência e eficácia”, este estudo visa compreender as produções de textos como práticas já legitimadas das instituições escolares. Portanto, optou-se por realizar a pesquisa como professora-pesquisadora, ou seja, que avalia, analisa sua própria prática.

Esse é um propósito que surge do exercício de autoavaliação e da observação de práticas investigativas que acreditam na necessidade de desvendar não só as tensões das relações étnico-raciais, como propõe Silva P. (2007, p. 492), mas também contribuir para uma formação profissional e da própria identidade que se constrói ao longo da vida.

3.2 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E ALFABETIZAÇÃO DE