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5 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRODUÇÃO DE

5.3 PRODUZIR TEXTOS E REEDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-

5.3.1 Nouberse

5.3.1.2 Etapa II – integrar conhecimentos

Na Etapa II, Nouberse expôs sua dúvida entre ser morena e negra, e continuou a estabelecer relações com os novos conhecimentos. Na Atividade 9, dessa etapa, houve a releitura do livro infantil O Mundo no Black Power de Tayó, e durante os comentários sobre o cabelo da personagem a menina perguntou:

Tia, lembra quando nós vimos nas imagens cabelos black power? (Nouberse – Atividade 9, Etapa II).

A fala da criança remete a um ato de conectar a ilustração da personagem e as fotografias analisadas. Assim, cabelos crespos e volumosos não são uma figura de linguagem; são reais, existem. Ainda, para ter como referência a figura de linguagem, em outro momento a criança demonstrou que conseguiu distinguir os elementos da narrativa com a realidade com certo aprimoramento discursivo, que consistiu em não apenas reconhecer a figura de linguagem, como também exemplificar com outra narrativa:

[...] o Asad falou: “Tem uma parte aí que ela coloca até borboletas”, e algumas crianças perguntaram-me se eram borboletinhas de verdade. Eu falei que não, e Nouberse comentou: “Igual a menina bonita de laço de fita”, história que eu havia contado no ano anterior (Nouberse, Atividade 9, Etapa II).

Desse modo, a criança estabeleceu uma associação entre as histórias que abordavam os cabelos. Mas, no caso de Nouberse, os conhecimentos e as atitudes estavam vinculados, tanto

que os conhecimentos da criança ultrapassaram o ato de associar, e três episódios colaboraram na compreensão dos fatos ocorridos. Primeiro diz respeito ainda à Atividade 9, quando a professora-pesquisadora realizava a releitura e a menina falava alguns trechos da história:

Ao ler o que a personagem respondia quando os amigos insultavam-na Nouberse ia falando junto que o cabelo era “Fofo, com cachinho” como se fosse a personagemda história. (Nouberse, atividade 9, Etapa II).

O segundo episódio ocorreu após a leitura e roda de conversa sobre curiosidades do continente africano e a professora-pesquisadora solicitou que as crianças escrevessem suas impressões sobre o texto. Nouberse apresentou o seguinte texto:

Figura 8 – Escrita de Nouberse, Atividade 9, Etapa II

Fonte: Dados da pesquisa.

O terceiro episódio ocorreu na atividade 10, na qual a estudante vivenciou de novo a experiência de soltar os cabelos, só que agora com um grupo maior de crianças. A situação iniciou-se assim:

Após a leitura e roda de conversa sobre a música, alguns estudantes perguntavam se iam dançar. Expliquei que, antes de dançar, eles ouviriam a canção para conhecer e que mostraria um gesto que o artista fazia que era legal. Nouberse perguntou: “Depois nós vamos poder bagunçar os cabelos?”. Respondi que sim, e Nouberse gritou e erguendo as mãos: “Ehhh!!”. Makena e Mugambi acompanham e já começam mexer nos cabelos (Nouberse, Atividade10, Etapa II).

São situações que foram delineando outras opções de pertencimento, conhecimentos, valores e atitudes. Percebe-se que são dimensões que se conectam: a criança tem uma atitude de apropriar-se da história como se narrasse ou assumisse a voz da personagem ao acompanhar a leitura da professora-pesquisadora, depois permeia o valor de comunidade ao escrever o desejo de estar junto com pessoas de tez como a sua e expressa afetividade nesse desejo com

desenhos de corações, age ao desprender os cabelos com a turma e, por fim, apresenta a ampliação de conhecimentos que contemplam história e cultura afro-brasileira, afro-americana e africana e também a prática da escrita. No entanto, optou-se aqui por trazer a voz da própria criança para indicar que a intervenção não resolveu as questões de sua identidade, mas é possível constatar que há fluxos entre: o Eu e Outro e o Eu e os saberes que contribuíram para que a criança realizasse reflexões sobre as temáticas e produzisse discursos mais positivos com sua aproximação com uma identidade negra.

Figura 9 – Escrita de Nouberse, autobiografia – versão final

Fonte: Dados da pesquisa.

O texto apresentado é a segunda versão da autobiografia. Nessa escrita, a criança assumiu seu cabelo crespo e explicou como percebia sua pele antes e naquele momento. O uso do advérbio de intensidade “tão” para referir-se à pele marcou essa percepção da criança e seu discurso, ou seja, que para ela a tez negra não era sinônimo de beleza, que é um discurso social

que representa uma forma homogênea de beleza. A descrição de como ela é contemplou a diferença entre cor e raça: preto para os olhos e negra para pele, e ainda tem um elemento branco em si, os dentes.

Tal descrição contida no final texto teve participação de outra colega. Nouberse havia escrito o texto e foi ler para a turma; ao terminar a leitura, uma amiga falou que ela não tinha escrito como era. A professora-pesquisadora perguntou para a menina se ela queria escrever o que a colega apontava, e a menina respondeu que sim, mas no texto, além da descrição, ela acrescentou o que gostava de fazer e completou retomando o assunto (sonhos) e estabelecendo, dessa forma, uma interligação com o que já havia escrito.

Nouberse também empregou a interjeição “Ai”, que, no contexto, foi um recurso utilizado pela criança que trouxe uma aproximação com o interlocutor para expressar sua expectativa sobre seus sonhos. Outro aspecto é a brincadeira com a palavra, no caso o seu próprio nome, que foi um recurso utilizado em um dos textos que a professora-pesquisadora havia lido durante a semana e a criança apropriou em seu texto, o recurso foi repetir três vezes uma sílaba do próprio nome e depois dizê-lo por completo.

É de notar que, embora com algumas questões sobre coerência, a criança produziu um texto. O modo como o produziu também pode ser considerado parte do processo de educar as relações étnico-raciais, pois há reflexões que indicam um processo de superação dos preconceitos raciais fundamental para estabelecer relações mais positivas (SILVA D., 2009), ou seja, passam pela mudança da percepção da pele e apropriação da escrita, portanto negociações com a palavra e com o Outro que vão trançando significados no discurso, portanto para os sujeitos que os produzem.