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PAISAGEM: COMO SE FAZ

Esta paisagem? Não existe. Existe espaço vacante, a semear

de paisagem retrospectiva.

A presença das serras, das imbaúbas, das fontes, que presença?

Tudo é mais tarde.

Vinte anos depois, como nos dramas. Por enquanto o ver não vê; o ver recolhe fibrilhas de caminho, de horizonte, e nem percebe que as recolhe para um dia tecer tapeçarias que são fotografias de impercebida terra visitada. A paisagem vai ser. Agora é um branco a tingir-se de verde, marrom, cinza, mas a cor não se prende a superfícies, não modela. A pedra só é pedra no amadurecer longínquo. E a água deste riacho não molha o corpo nu: molha mais tarde.

A água é um projeto de viver. Abrir porteira. Range. Indiferente. Uma vaca-silêncio. Nem a olho. Um dia este silêncio vaca, este ranger baterão em mim, perfeitos,

existentes de frente, de costas, de perfil,

tangibilíssimos. Alguém pergunta ao lado: O que há com você?

E não há nada

senão o som-porteira, a vaca silenciosa. Paisagem, país

feito de pensamento da paisagem, na criativa distância espacitempo,

à margem de gravuras, documentos, quando as coisas existem com violência mais do que existimos: nos povoam e nos olham, nos fixam. Contemplados, submissos, delas somos pasto somos a paisagem da paisagem.

Carlos Drummond de Andrade

Em “Paisagem: como se faz”, Carlos Drummond de Andrade deixa transparecer à luz do texto significações sutis e exatas através de um dinamismo polissêmico que pode nos conduzir a uma compreensão mais ampla (e também necessária dentro da estrutura metodológica sobre a qual este trabalho se desenvolve) da “paisagem”.

Paisagem, em sua relação com o espaço – que não existe sozinha, só aparece quando um e outro se constituem ao mesmo tempo; um em relação ao outro, como no movimento hologramático de imagens sobre um plano.

Paisagem, em sua relação com o tempo – que é retrospectiva, uma história de uma história passada que se lança no presente em direção ao futuro. E que, por isso mesmo, ainda está sendo construída, reconstruída.

Paisagem, como visualidade não imediata – que é representação imagética imaginária construída mais tarde, pois “o ver não vê”; é narrativa que se tece depois, é fotografia que desvenda detalhes, não do que se viu, mas do que marcou, do que se pressentiu, do que ficou.

Paisagem, como “pequeno país”88 – que é lugar de poder definido no tempo e no espaço, sem a intervenção da arte ou de normas; poder que nos deixa reféns de sua força e que a transforma em sujeito a nos observar (“somos a paisagem da paisagem”).

88 “A raiz etimológica da palavra paisagem é de origem francesa, e carrega um duplo significado: paysans pode referir-se

Neste trabalho, o capítulo “Paisagens” se realiza na possibilidade dessa perspectiva mais ampla – uma janela para espreitar e tentar compreender os movimentos de uma realidade em que o poder, a educação e os direitos humanos participam como fatores decisivos em um contexto em que a inovação tecnológica acelera, as forças do mercado se expandem e o mundo fica repentinamente mais amplo para os indivíduos e menor para a integração coletiva, tendo em vista a superação das irreconciliáveis diferenças multiculturais de língua, etnia, política, economia e religião.

Esses estudos procuram refletir a respeito dos possíveis significados que surgem, explícita ou implicitamente, das interações e articulações entre o mundo corporativo e o sujeito. Buscam investigar e interpretar as paisagens em que Narciso e Pigmalião se expressam nas diferentes formas de sentir e perceber o outro, o mundo à sua volta e a si mesmo.

O capítulo se desenvolve ao redor de três partes.

Na Parte 1, discutimos sob a perspectiva de Foucault, a questão do sujeito e do poder em dois filmes: “Mauá – o Imperador e o Rei” (Anexo 22) e “São Paulo Sociedade Anônima” (Anexo 23), obras que apresentam uma reconstituição histórica de duas fases distintas do surgimento e desenvolvimento da empresa no Brasil.

Na Parte 2, refletimos sobre o papel da educação: são feitas considerações a respeito da educação corporativa, as críticas que ela recebe, e analisamos as possibilidades que essa modalidade de ensino tem a oferecer à formação profissional e social do homem.

Finalmente, na Parte 3, apresentamos pesquisas a respeito dos direitos humanos nas empresas e, ainda, as percepções que os profissionais executivos entrevistados (A, B, C, D, E, F e G) têm a esse respeito com relação ao ambiente em que trabalham. Refletimos sobre a necessidade de uma nova consciência sobre o comprometimento com um ideal ético comunitário, sensibilizado, com força de caráter e de simpatia.

A pesquisa certamente não tem a pretensão (nem condições) de esgotar o tema; é um olhar sobre o nosso tempo, uma tentativa de compreender e de dialogar com algumas questões da nossa contemporaneidade. Sendo assim, esses estudos se realizam como abordagem interpretativa não imediata, não pontual, e têm em vista a complexidade das diversas dimensões e significados por trás das transformações que ocorrem em nossa época e em nossa sociedade.

PARTE 1

5.1 O SUJEITO E O PODER: UMA PERSPECTIVA EM FOUCAULT

Talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. (FOUCAULT) 89

A questão do tempo presente, a questão daquilo que somos neste tempo presente: eis delineado o grande dilema político, ético, social e filosófico que Foucault, de forma clara, tão bem assinala ao discutir a natureza e as especificidades das relações de poder existentes na sociedade moderna.

Seus estudos sobre o poder nos levam não só à compreensão do papel desempenhado pelo Estado como inteligência do sistema de poder, com seus mecanismos de exercício de dominação social, mas também nos propõem a necessidade de estender o alcance de uma definição de poder a um sujeito que, inserido em disposições de produção e significação, fica igualmente exposto a relações muito complexas.

O poder, desta forma, surge centrado não apenas no poder político ou do capital, mas se realiza principalmente como processo, em suas correlações com a comunicação, a cultura, a contracultura, nas grandes variáveis não apenas de um macrocontexto social e cultural, mas também de um microcontexto, marcado por um dinamismo nem sempre explícito ou detectável. Poder não como bloco monolítico, como propriedade que se possui ou não, que beneficia alguns e alija outros de sua esfera – esse tipo de poder não existe; mas poder como algo que se exerce, que se realiza, que se efetua – poder como relação.

Foucault evidencia a importância de diversas fontes e instrumentos de poder, o exercício das diferentes estratégias, sua dinâmica específica presente em todas as dimensões da vida cotidiana, alcançando a todos os indivíduos, enraizando-se profundamente no nexo social.

O caráter relacional do poder, por sua vez, implicará necessariamente o desenvolvimento da luta, da resistência contra seu exercício. O conceito “o poder gera sempre contra-poder” (FOUCAULT,1982, p.234) traduz duas condições importantes: primeiro, a total anulação do poder do outro se torna praticamente impossível; segundo, como decorrência, a coexistência de duas instâncias vivenciais antagônicas e complementares deverá ser sempre considerada no conjunto das relações sociais, nas instituições, no mundo do trabalho, nas

políticas e culturas organizacionais e em seus reflexos no campo profissional e humano.

É nosso objetivo neste trabalho fazer algumas reflexões a respeito da representação da questão do poder em duas obras particulares: a primeira, retratando os passos iniciais do empreendedorismo no Brasil, com Mauá; a segunda, esboçando com tintas fortes o processo de industrialização nacional nos anos de 1950, o crescimento urbano e a criação de uma burguesia nos grandes centros, com seus valores e conflitos.

“Mauá – O Imperador e o Rei” (Anexo 22), produzido em 1999 e dirigido por Sérgio Rezende, e “São Paulo Sociedade Anônima” (Anexo 23), realizado entre 1957 e 1961 sob a direção de Luiz Sérgio Person, permitem, por isso, pela reelaboração estética, e até como possibilidade simbólica, acompanhar toda uma mudança de rumo do Brasil em direção ao que ele é e realiza nos dias de hoje. Os estudos desenvolvidos por Foucault, particularmente em “Microfísica do Poder” e “O Sujeito e o Poder”, constituem referência teórica para a análise dos dois filmes - dois discursos com especificidades e estilos distintos, porém interligados pelo valor do sentido no dilema que Foucault tão bem expressa na citação feita em nossa introdução.

Esse encontro, possível apenas na representação de uma verdade mais ampla, é o tema dos estudos que se seguem.