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Resultado de uma reconstituição histórica minuciosamente trabalhada, “Mauá – O Imperador e o Rei” percorre de forma linear e didática a saga de Irineu Evangelista de Sousa, um menino órfão que, aos nove anos, chega ao Rio de Janeiro para trabalhar em um armazém e, aos trinta, tem a maior fortuna do Império, transformando-se, então, em Barão e Visconde de Mauá.

A história se passa no Segundo Reinado do Brasil, um país que, marcado inicialmente pela exploração de riquezas e depois por interesses agrícolas, assiste ao despertar de um grande potencial industrial, movimento impulsionado principalmente pela ambição e o empreendedorismo de Mauá. Sob a direção de Rezende, texto, imagem e som se articulam em diálogos claros, em camadas sutis e exatas, desvendando, recriando ou sugerindo a trama do contexto histórico e de suas forças atuantes. Fazendeiros e proprietários rurais compõem as classes de maior expressão política e social; seguem os comerciantes, muitos deles enriquecidos com o tráfico de escravos que, a partir de 1850, sofre medidas efetivas de repressão; há pequenos lavradores, manufatureiros, a grande população pobre e despreparada e, finalmente, os escravos. Desenvolve-se a lavoura, o comércio exterior fica em ascensão, realiza-se o aparelhamento técnico do país. A Inglaterra, depois de um longo período de conflitos e hostilidades resultantes da questão do tráfico de escravos, voltará a atuar no país reiniciando suas atividades e investindo capitais.

Será nesse cenário que a trama laboriosamente construída por Rezende nos apresentará, já nas primeiras cenas, aquilo que iria se constituir uma espécie de fio condutor no desenvolvimento dessa trajetória impressionante – na verdade, a primeira lição que Mauá duramente aprenderia sobre poder e relações de poder. Valentim, um escravo maltratado, agradecido pela bondade demonstrada, diz ao ainda rapazinho Irineu: Nessa vida todo mundo tem um senhor. Escolhe bem o

seu; ele é que vai decidir o seu destino. Se for bom, sua vida é boa. Se for mau, sua vida se acaba. Mas nunca confie em patrão nenhum: nem no bom, nem no mau.

Mauá, com seus sonhos de modernização e independência, logo descobrirá que

os poderes se exercem como uma rede de dispositivos e mecanismos que, nem sempre visível ou marcada por limites ou fronteiras, alcança e sujeita a tudo e a todos.

Naturalmente, o poder se situa no Estado, e essa é uma forma de poder tanto individualizante quanto totalizadora. Porém, há um conjunto de realidades muito sutis e complexas que precisam ser consideradas e que mantêm relações não apenas com essa força catalisadora, “fundamental”, mas com outras múltiplas formas enraizadas no conjunto da trama social e que constituem expressões diferentes de poder. Surgem das diferenças individuais, de objetivos diversos, do jogo de interesses, do processo de racionalização que envolve procedimentos, normas, comportamentos, valores institucionalizados que se firmam em uma época, e da própria aplicação do poder sobre nós mesmos e sobre os outros, entre outras coisas.

Essa correlação de forças pode, então, se manifestar na figura do senhor - o senhor de escravos, representante da classe de maior envergadura política, social e econômica do Império. É ela quem vence quando Irineu, ainda imaturo na vida e nos negócios, quer fazer prevalecer, sem sucesso, uma condição financeira que lhe permite exigir, por motivo de dívidas não saldadas, o direito de posse das terras de um fazendeiro tradicional do lugar. Ou, quando já maduro e experiente, tenta receber a vultosa soma que deu como empréstimo à irmã do Imperador e é levado aos tribunais por ofensa.

O que ele não entende é que, mais do que dinheiro, existe a tradição, a honra e tudo que sustenta a condição e a qualidade de uma elite nobre e privilegiada. Peça de uma mesma engrenagem, cada um de seus membros se sustenta na força de suas relações coesas e circulares, garantindo reciprocamente sua existência, mantendo a sustentabilidade de um quadro geral que “não deve e não pode ser mudado". Nesse sentido, no encontro que têm no Banco do Brasil, o Visconde de Feitosa diz a Irineu: Todos os sonhos têm que se subordinar aos

sonhos do Imperador, esta não será simplesmente uma figura retórica, mas sim

uma enunciação clara e precisa de delimitação de território e de ação.

Como nos sugere Rezende, entretanto, em uma significativa justaposição de termos, o exercício do poder pode também estar presente na possibilidade de um novo modelo econômico, na figura do patrão que os ventos liberais sopram da Inglaterra.

Carruthers, empresário inglês que opera no Brasil, quando ainda Irineu era seu empregado, adverte-o sobre a necessidade da decisão de escolha ao lhe indicar as primeiras noções de teoria econômica e financeira da época: O mundo está

mudando. Você vai ter que decidir de que lado quer ficar. Carruthers sabe, ou

pressente, que o domínio das coisas, das técnicas e do trabalho traz necessariamente uma transformação do mundo. Uma nova ordem que, por certo, colocará em jogo novas relações entre os indivíduos, demandando o ajustamento a critérios de uma outra racionalidade e a novos rituais de verdade.

O domínio de “capacidades objetivas” - capacidades para transformar, saber fazer, utilizar - constitui por si só, entretanto, um campo de possibilidade esparso, sem sustentação própria, que se apoia em estruturas já consolidadas e permanentes. Fazer com que o novo rompa barreiras e consiga espaços não é uma tarefa fácil. Demanda deslocamentos, provoca resistências, gera medo e oposição.

Será Carruthers, novamente, quem alertará Irineu para a importância de outro fator: as relações de comunicação. Comunicar é sempre uma forma de atuar sobre os outros, transmitindo informações, persuadindo sobre a importância de um fato, convencendo a agir, criando espaços de aproximação e aceitação. Induz sutilmente efeitos de poder, visto que altera o campo de informação de quem ouve. A Maçonaria servirá, então, como porta de entrada para esse novo campo de atuação. As sociedades maçônicas floresciam; nelas estavam presentes até sacerdotes e a maioria dos homens influentes do Império. Sua força política, já antes demonstrada na independência do país, assumia novos contornos. Discutia- se a abolição dos escravos, a adoção de novas medidas comerciais e de negócios, os novos ares democráticos do resto do continente americano e europeu, a possibilidade da república.

Irineu estabelece contatos, infiltra-se nos domínios da elite política, consegue acordos e sustentação para seus planos. Fica mais fácil concretizar seu sonho de modernização e independência econômica para o país. Angaria muitos amigos... e tantos outros inimigos. O Visconde de Feitosa resume o sentimento dos últimos:

Não gosto de maçons; não gosto de novo-rico. Acham que fazem parte do nosso mundo.

A prática, a materialidade da ação, o fazer acontecer representam, entretanto, um saber que se possui ou não. E todo saber assegura o exercício de um poder, pois. como parte de uma engrenagem maior, ele se articulará sempre com estruturas econômicas e necessariamente políticas. São domínios de articulação com outras fontes de poder, uma nova relação de forças.

Irineu nem sempre compreende o alcance do que isso representa, e, se por um momento o faz, subavalia o impacto de suas conquistas e o peso que isso poderá ter em sua vida futura. As cenas do assentamento do primeiro dormente e da inauguração da ferrovia, nesse sentido, são emblemáticas. Dois mundos e dois filhos de um mesmo tempo se chocam. Homem de educação aristocrática refinada, para quem o trabalho manual é atividade inferior, “uma coisa de escravos”, o Imperador é, antes de tudo, o símbolo de um poder conservador, tradicional, que tem na força da agricultura e na mão de obra escrava a sustentação de seus ideais de equilíbrio econômico, político e social. Mauá, por sua vez, foi menino pobre, aprendeu na lida do dia a dia a dar valor ao trabalho, à execução, ao pragmatismo e ao empreendimento. Para o primeiro, a pá de terra que o escravo entrega para o assentamento do dormente é um constrangimento pessoal e uma afronta contra tudo o que é e o que acredita representar; para o segundo, é um momento de glória pessoal, a consagração de um longo caminho percorrido e conquistado na busca do desenvolvimento e realizações.

Como em toda forma de resistência ao estabelecido, os interesses de Mauá se voltam principalmente para a conquista de frestas na estrutura do sistema e a dissociação das relações de poder. Seu ataque não é tanto contra o Império, como instituição de poder, mas contra uma forma de poder que considera reacionária e na contramão dos tempos.

Usa como estratégia de luta soluções “vencedoras”: investe, ganha dinheiro, faz alianças, empréstimos com a Inglaterra, empreendendo ousada e largamente. Funda o Banco do Brasil, constrói a primeira ferrovia do Brasil, ilumina o Rio de Janeiro, instala cabos submarinos de telégrafo até a Europa... O povo nas ruas exclama: No Brasil, temos um Imperador e um rei.

Como toda relação de “insubmissão”, Mauá anseia tornar-se relação de poder. Para o Imperador, sua visão de negócios, sua ânsia empreendedora deixam implícito que o Brasil tem condições de caminhar por pernas próprias e de se transformar em uma potência sem a tutela do Império.

Veiga-Neto (2003) afirma que, para se entender a questão da resistência sob a perspectiva de Foucault, é necessário considerar que o poder se atualiza e se dispõe como uma rede na qual há pontos de resistência, minúsculos, transitórios e móveis: “A resistência ao poder não é a antítese do poder, não é o outro do poder, mas é o outro numa relação de poder – e não de uma relação de poder” (p. 151- 152).

No jogo do confronto, ao definirmos o exercício de poder como o “governo” dos homens uns pelos outros, a figura do Visconde de Feitosa adquire contornos significativos. Eminência parda do governo, sua atuação é drástica e forte, agindo nos bastidores, incitando, induzindo; ou tornando difícil, limitando, fazendo uso de coerção e até proibindo. Há muito a perder e torna-se indispensável agir, interferir no campo de possibilidades que as ações de Mauá provocam.

“Aquilo que define uma relação de poder”, como nos ensina Foucault (1982),

é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. (...) governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação do outro. (p. 243 - 244).

Mauá, no decorrer das circunstâncias, sucumbe, vencido em seu próprio campo de batalha. Martins (1996), em História da Inteligência Brasileira, faz a seguinte análise a esse respeito:

Ele (Mauá) possuía a “consciência social do instante histórico”, sentia as “necessidades da época”, mas viveu em conflito com a mentalidade dominante. Em outro país, ele “seria mais um operário da grande renovação da época moderna, principiada com a revolução industrial inglesa e exprimida em todo seu vigor no movimento norte-americano. No Brasil, foi uma espécie raríssima. Exemplar único de uma geração torturada por preconceitos morais provocados pela falta de compreensão do papel que lhe competia desempenhar na sociedade moderna”. (...) Mauá, depois de ter sido o mais poderoso homem de negócios da América Meridional e um dos banqueiros mais importantes do mundo, ganhou todas as batalhas menos a última – no que diferia da Inglaterra, esse homem de formação inglesa. Mas isso aconteceu justamente porque o Brasil não era a Inglaterra, quero dizer, porque o Brasil ainda não estava preparado para “suportar” um homem como Mauá: ele não foi esmagado por seus defeitos ou por seus erros, mas destruído em conseqüência da sua própria superioridade; seu “erro” foi estar no “trem da história”, que o Brasil havia perdido. (p. 208)

Um empreendedor, um “capitalista” e, com todas as possíveis ressalvas, um homem de empresa, Mauá, foi, sem dúvida, o pioneiro solitário nesse cenário em revolta que a Revolução Industrial trazia para o mundo econômico. Mauá foi vencido, mas, como ele próprio diria em sua autobiografia anos depois: “Vencido, mas não convencido”.

Em seus embates com o sistema vigente, conscientiza-se, talvez, de que toda relação de poder nutre-se da estrutura que a tornou possível; ela mantém seu ponto de equilíbrio até se sentir ameaçada. Ao enfrentar resistências que a desestabilizam, torna-se imprescindível o uso de estratégias vencedoras. Mas vencedoras até que uma nova estratégia de luta venha a se superpor e prevalecer. E talvez seja esta a mensagem que Sérgio Rezende nos propõe no último diálogo que Mauá mantém com o Imperador.

Homem culto, ligado às artes e às ciências, D. Pedro II menciona Prometeu como metáfora para explicar “a ira dos deuses” e a sua ruína, em uma alusão clara à trajetória percorrida por Mauá. Ao que ele responde, citando Galileu, em um prognóstico indiscutível: a vida tem uma dinâmica própria – é processo e

transformação. E particularmente essa vida nova que ele ajudou a construir trará, com certeza, outros rumos e muitos desafios.

5.1.2. “São Paulo Sociedade Anônima”