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A esfera do “humano”: uma reflexão sobre o caráter cultural do psiquismo do Homem

A esfera do humano: a relação do homem com o mundo e o papel da linguagem

2.2 A esfera do “humano”: uma reflexão sobre o caráter cultural do psiquismo do Homem

Angel Pino, em seu livro “As marcas do humano. As origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vygotsky”, inicia seus estudos discutindo a dimensão que atribui em seu trabalho ao termo “humano”. “Em síntese, designa esse ponto indescritível na relação homem-natureza em que ocorre a emergência da consciência” (PINO, 2005, p.16).

Suas reflexões, afirma, devem ser entendidas a partir da tese de Vygotsky que, embora tenha sido escrita nas décadas de 1920 e 1930, mostra-se, ainda na contemporaneidade, de fundamental importância para a discussão do tema.

Trabalhando sobre as bases do materialismo histórico e dialético, na linha de Marx e Engels, a concepção proposta por Vygotsky estabelece pontos importantes para a análise:

1. A emergência da consciência se dá quando o homem, ao se descobrir parte da

natureza, percebe que pode atuar sobre ela transformando-a com os recursosque

é capaz de criar para tal.

2. Nesse processo em que ele se distancia da natureza, ela se transforma em objeto de sua ação.

3. A consciência surge, portanto, no próprio processo da ação do homem e é ao mesmo tempo causa e efeito dessa ação.

4. Essa ação humana não é apenas técnica, mas também simbólica – “ou seja, afeta tanto o objeto sobre o qual se exerce quanto o sujeito que a realiza.” (PINO, 2005, p.16).

5. Natureza e homem são perpassados, assim, por essa nova dimensão simbólica. O termo “humano” traduz, então, essa dimensão do homem que, ao mesmo tempo em que o remete às suas raízes na natureza, remete-o também a uma história que começa com ele e da qual ele é autor e protagonista. (PINO, 2005, p.17).

Pino afirma que, diferentemente da psicologia tradicional, a tese de Vygotsky nos propõe a unidade do ser do homem que uniria nele a natureza e a cultura, a existência biológica e a dimensão simbólica.

No conjunto das ideias proposto por Vygotsky, duas em particular dão sustentação e servem de ponto de partida para seus estudos. A primeira é a existência no homem de duas séries de funções – as naturais, referentes aos processos biológicos, e as culturais, regidas por leis históricas.

Embora distintas, essas diferentes funções agem reciprocamente sobre si, interpenetrando-se e constituindo um sistema complexo de funcionamento: as funções biológicas sendo transformadas pelas funções culturais e estas dependendo de condições de desenvolvimento normais para que possam se constituir de forma plena. A articulação dessas funções se dá, assim, dentro de um planejamento previsível que acompanha o ritmo de amadurecimento biológico. A segunda é a “lei genética geral do desenvolvimento cultural”, que fundamenta a emergência no homem das funções culturais.

No desenvolvimento cultural da criança cada função aparece em cena duas vezes, em dois planos, primeiro o social, depois o psicológico; primeiro entre as pessoas como uma categoria interpsicológica, depois no interior da criança como uma categoria intrapsicológica. (PINO, 2005, p.31)

Essa lei não se daria simplesmente como consequência direta de leis naturais que controlam todo o desenvolvimento orgânico. Ela surgiria da gradativa inserção da criança nas práticas sociais do seu meio cultural, no contato com o Outro, na apreensão daquilo que a faz participar da história social dos homens.

A constituição das funções culturais tem lugar em cada indivíduo a partir de um processo que Vygotsky denomina de internalização ou conversão: a experiência das relações sociais no nível público lhe serve de fundamento e é, então, transposta para o plano pessoal.

Em outros termos, elas são o resultado de uma conversão das funções das relações sociais que operam na esfera pública em funções dessas mesmas relações operando agora na esfera privada, razão pela qual Vygotsky as chama de “quase sociais”. (PINO, 2005, p. 32)

Na “transposição” de um plano para outro surge a significação, que não é de natureza física, mas sim o resultado de um complexo processo semiótico que independe das leis físicas do espaço.

A ideia da existência de dois planos sugere a hipótese de um momento zero

cultural que conduz necessariamente à discussão sobre as origens da constituição

cultural da criança, fenômeno que não coincide com seu nascimento biológico nem pode ser confundido com ele – fato que, consequentemente, nos põe diante de dois nascimentos – o biológico e o cultural, “fazendo da cultura a categoria central de uma nova concepção do desenvolvimento psicológico do homem.” (PINO, 2005, p. 35).

Definindo a cultura como condição essencial da existência humana e uma das formas pelas quais a natureza em evolução se apresenta, e considerando o homem como a “emergência da consciência na natureza” (p. 36), Pino tem como objeto de análise em seu trabalho:

a) Explicar a relação existente entre a natureza e a cultura. A primeira como a força vital dentro da qual o homem se inclui; a segunda, como ordem por ele criada e que lhe garante sua qualidade essencial de ser humano.

b) Definir o processo através do qual se articulam em cada indivíduo as forças naturais, e também a consequente mediação semiótica que tem lugar nesse mesmo processo.

É seu objetivo procurar encontrar nos primeiros meses da criança indícios (indícios não verbais) que apontem em que momento esse processo de transformação tem início, assinalando a influência decisiva do meio social, fornecendo pistas concretas de como a ação da cultura se efetua sobre sua natureza biológica por meio da atuação social do Outro, “constituído nos primeiros momentos de vida do bebê humano pelo seu entorno familiar, em especial pelos pais e parentes próximos.” (PINO, 2005, p. 37).

Os indícios das origens da constituição cultural devem ser buscados, então, no encontro das formas simbólicas de comunicação, usadas pelo adulto na tentativa de transmitir a significação das coisas para a criança, com as formas biológicas de comunicação dessa criança, na verdade o único “repertório” de que ela dispõe. Em seu desenvolvimento teórico-estrutural, Pino discute a qualidade essencial da natureza humana e o impacto que essa “herança”, não só biológica, mas principalmente cultural, tem sobre cada ser humano.

Algumas questões se apresentam como fundamentais dentro desse ambiente teórico:

1. O desenvolvimento da criança pressupõe uma estrutura biogenética e neurológica da espécie que lhe dá condições de “aptidão para a cultura”.

2. Desde o início, em um período anterior ao desenvolvimento da fala, a criança dispõe de um aparato sensório-motor que torna possível seus contatos com o

meio físico e social. As áreas sensoriais primárias do córtex – sensorialidade visual, auditiva e tátil – são as primeiras a se desenvolver; as aptidões motoras primárias surgem depois, articulando-se com as primeiras.

A sensorialidade e a motricidade garantem à criança satisfazer sua necessidade básica de contato com seus semelhantes (“necessidade básica dos mamíferos superiores e o fundamento biológico da sua sociabilidade”) (PINO, 2005, p. 61). No desenvolvimento da criança, esse período seria de fundamental importância e serviria como base para as primeiras tentativas de comunicação com o seu meio social; “… essa atividade passa, durante o primeiro ano de vida do ser humano, por transformações tais que fazem dela a base da emergência de estruturas ou funções psicológicas novas claramente distintas das biológicas.” (PINO, 2005, p. 64).

Segundo Freud, o homem nasce puro instinto e, se não tiver a introdução à cultura, não desenvolve a afetividade. O poder da linguagem se caracteriza, então, como essencialmente humanizador; o homem, pela linguagem, cria sentido, comunica, produz os mitos e é, por sua vez, por eles produzido, em uma cadeia infinita de retroação.

3. A característica que distingue o homem de outros seres biológicos semelhantes a ele é atribuir uma significação a tudo que realiza ou sobre o qual atua. Dessa forma, não nega a condição natural de suas funções biológicas ou a natureza material das coisas, mas atribui-lhes uma dimensão nova, uma dimensão simbólica, “ou seja, uma nova forma de existência.” (PINO, 2005, p. 54).

4. A passagem para o mundo da cultura acontece quando os atos naturais da criança passam a ter significação para o Outro, que possui e disponibiliza essa

significação. Nesse momento, a comunicação natural realizada por meio de sinais se articula com a comunicação simbólica, característica do adulto.

A apreensão e incorporação pela criança dessa significação “desloca o eixo da ação do determinismo dos sinais à indeterminação dos signos” (PINO, 2005, p. 65) – um processo de natureza extremamente complexo em que a conversão da significação das relações sociais se realiza a partir do envolvimento da criança com as situações criadas com o adulto, fenômeno que acaba por provocar neles – criança e adulto – respostas, ações e reações, constituindo o primeiro circuito de comunicação dessa criança com o Outro e delineando os contornos de seu ingresso nesse mundo da cultura.

Mesmo não captando o significado das palavras, a criança passa a apreender, pelo efeito de reforço e modelo, as significações dentro de um processo “que lhe permite descobrir a relação que pode existir entre o sinal e o objeto sinalizado. Ao atribuir-lhe uma significação, o Outro transforma o sinal em signo.” (PINO, 2005, p.146).

Vale a pena lembrar Piaget quando nos diz que só é possível abstrair quando a criança aprende a lidar com o concreto. Daí a importância do lúdico, momento em que vai reproduzir no brinquedo o que presenciou ou viveu com o adulto.

Também é importante ressaltar, nesses primeiros contatos exploratórios, particularmente pela mediação do comportamento da mãe, a importância e o papel da entonação e da emoção.

Para Bakhtin, a entonação é lugar de memória acústica e lugar de encontro. Desde a mais tenra infância, “não há enunciado representável ou dotado de significação sem a avaliação social que o veicule. A entonação é a mais pura e a mais imediata expressão de avaliação.” (DAHLET, 1997, p. 264-265). Assim, a

natureza de toda interação se realiza primeiramente pela entonação, que é memória semântica e social depositada na palavra, seu aspecto emocional-volitivo. A emoção, portanto, é flagrada nos intercursos sociais e nas manifestações da linguagem.

Para Maturana, a existência humana só se concretiza na linguagem e na sistematização racional, mas sempre a partir do emocionar:

Assim, a vida humana é sempre um fluir inextricavelmente entrelaçado de emocionar e de racionalidade, através do qual trazemos à mão diferentes domínios de realidade. E vivemos nossos diferentes domínios de realidade em nossas interações com outros, explícita ou implicitamente, (...) de acordo com o fluir de nosso emocionar. (MATURANA, 1999, p. 278)

Na sua obra “Análise do caráter”, Reich assim classifica a função da emoção:

Definida literalmente, a palavra “emoção” significa movimento para fora ou expulsão. Assim, não somente podemos como devemos usá-la no sentido literal para nos referirmos a sensações e movimentos. (...) Alguma coisa no sistema vivo “pressiona a si mesma para fora” e, portanto, se “move”. (...) O organismo vivo se expressa em movimentos: por isso falamos de movimentos expressivos. (REICH, 1998, p. 330 e 332)

Quando sentimos a emoção de uma outra pessoa, afirma Reich, estamos entrando em contato com funções biológicas primárias. Por isso, há sempre uma imitação involuntária no organismo quando se está diante dos movimentos expressivos de outras pessoas. A linguagem humana atua, “interfere na linguagem da face e do corpo”. Por isso, a “expressão total de um organismo” deve ser “literalmente idêntica à impressão total que o organismo provoca em nós.” (POLITO, 2001 p. 41). A criança capta essas significações gradativamente,

estabelecendo relações, organizando coesões, marcando as identidades e as diferenças.

Ainda a partir dos trabalhos de Vygotsky, Pino apresenta e discute duas ideias que considera inéditas no pensamento psicológico:

a) Aquilo que a psicologia tradicional considera a essência do psiquismo (e que Vygotsky denomina de “funções psicológicas superiores”: inteligência, fala, memória, consciência, etc.) tem origem e natureza sociais. Desta forma, “a relação ‘Eu - Outro’ é o fundamento da constituição cultural do ser humano” (PINO, 2005, p. 102-103).

b) As “funções psicológicas superiores” são estabelecidas e formadas como “relações sociais entre pessoas”, que são internalizadas e passam a ser funções da pessoa (a que Vygotsky atribui um caráter “quase social”) – uma referência explícita à afirmação de Marx de que a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e forma de sua estrutura (PINO, 2005, p.101).

Partindo da afirmação de Vygotsky – “Eu me relaciono comigo tal como as pessoas se relacionaram comigo” –, novas questões se apresentam:

1. O Outro é realidade física externa que se transforma em realidade psicológica interna.

2. O Outro constitui junto com o Eu “duas dimensões de uma mesma e única pessoa” (PINO, 2005, p.104) – o que reforça o papel e a importância da palavra do Outro para o Eu.

3. Nesse movimento de conversão de relação interpessoal em relação

intrapessoal, permanece a significação dessas relações; alteram-se, porém, seu

estado e direção: “...de social torna-se pessoal, incorporando-se na pessoa como base da sua estrutura social – e de agente externo, imposição social, torna-se agente interno, orientador da própria conduta” (PINO, 2005, p.112).

4. A significação dada às relações sociais torna possível a cada um de seus integrantes a realização de sua condição de pessoa: eles participam da vivência de um mundo público, mas têm também, simultaneamente, a experiência do mundo privado.

A consciência individual se forma, assim, a partir do social – um conceito que Bakhtin também afirma ao explicitar as relações do eu no diálogo com os outros eus. Para sua definição, somente a percepção de outra consciência, com aceitação e recusa, na integração e no conflito, em sua forma peculiar de ser, pode garantir a esse eu um sentido unificado de sua própria personalidade.

...uma emoção interior e o todo da vida interior podem ser vivenciados concretamente – percebidos internamente – seja na categoria do eu-para mim, seja na categoria do outro-para-mim: em outras palavras, seja como vivência própria, seja como vivência desse outro único e determinado. (BAKHTIN, 2000, p.44).

Dentro do processo de formação do eu, Bakhtin indica três perspectivas que precisam ser consideradas: a autopercepção (o eu para mim), a percepção dos outros (o eu para os outros) e a percepção em relação ao outro (o outro para

mim).

Na vida, julgamo-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência. (...) Estamos constantemente à espreita dos reflexos de

nossa vida, tais como se manifestam na consciência dos outros, quer se trate de aspectos isolados, quer do todo de nossa vida; chegamos a levar em conta o coeficiente de valor com que a nossa vida se apresenta aos outros, o qual difere profundamente daquele que a acompanha quando a vivemos para nós mesmos, em nós mesmos. (p. 36)

(...)

A forma concreta da vivência real do homem emana de uma correlação entre as categorias representativas do eu e do outro; as formas do eu através das quais vivencio a todos os outros sem exceção. Vivencio o eu do outro de um modo totalmente diferente daquele como vivencio meu próprio eu. (p. 57)

(...) Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim. (BAKHTIN, 2000, p. 43).

5. Os processos de significação estão presentes na vida cotidiana das pessoas e marcam seus atos de pensar e de falar. Articulados na unidade do signo, pensamento e palavra se concretizam através de duas funções essenciais – respectivamente, representação e comando. “Com a invenção de signos, o homem pode distanciar-se do concreto e do singular e encontrar-lhes equivalentes abstratos e genéricos que os representem, sem os quais a natureza e ele mesmo seriam impensáveis.” (PINO, 2005, p.148).

Noções de subjetividade, objetividade, de criação de um tempo e espaço humanos, entre outras coisas, constituem “conteúdos culturais” que marcam a passagem, na representação, do estado da natureza para o estado da cultura.

O uso dos signos, por outro lado, possibilita que pessoas ajam sobre outras pessoas e sobre si mesmas provocando nessas pessoas e em si mesmas mudanças e reações. A palavra permeia a dinâmica das interações, comandando suas ações, sendo fonte inequívoca de poder. “Dessa forma, o signo torna possível não só a circulação das significações dos objetos culturais e a sua

contínua ressignificação, mas também a constituição do indivíduo como ser cultural.” (PINO, 2005, p.148).

6. A ideia de “sujeito assujeitado ao Outro”, proposta por Louis ALTHUSSER, em seu ensaio mais conhecido, “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”22, poderia colocar em questão a individualidade e a singularidade desse mesmo sujeito.

Os significados, porém, são construídos historicamente e concretizam-se no dia a dia das diferentes práticas sociais, ao assumirem contornos pessoais intransferíveis, garantindo ao sujeito a sua individualidade e singularidade. “Falar de desenvolvimento cultural da criança (do ser humano) é falar da construção de uma história pessoal no interior da história social dos homens, da qual aquela é parte integrante.” (PINO, 2005, p. 158).

A significação torna-se, por isso, elemento fundamental para entender a história natural do homem e sua história cultural.

O fantástico da função semiótica é tornar possível que o objeto de conversão torne-se outra coisa sem deixar de ser o que é. Agregar à natureza uma significação transforma seu modo de existência, mas não altera a sua essência. A natureza torna-se simbólica e o simbólico torna- se natureza sem anular-se mutuamente. Esse parece ser o último nível atingido, por enquanto, pelo processo evolutivo da matéria inerte e viva. O autor dessa proeza é essa porção da natureza – denominada Homo – que inventa o simbólico e dessa forma se transforma sem perder sua condição de natureza. (PINO, 2005, p.169).

Linguagem e realidade aparecem, nesse processo, indissoluvelmente relacionadas à existência histórica dos homens.

22 O ensaio estabelece seu conceito de ideologia, que relaciona o marxismo com a psicanálise. A ideologia, para ele, deriva

dos conceitos do inconsciente e da fase do espelho (de Freud e Lacan, respectivamente), e descreve as estruturas e sistemas que permitem um conceito significativo do eu. Estas estruturas, para Althusser, são tanto agentes de repressão quanto são inevitáveis - é impossível escapar das ideologias ou não ser-lhes subjugado. (ALTHUSSER, 1998).