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A COMPANHIA: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA, VALORES E CRISES DE UMA IDEIA REVOLUCIONÁRIA

3.2 EXPANSÃO IMPERIALISTA, COMPANHIAS LICENCIADAS E ESPECULADORES – 1500

Nos séculos XVI e XVII, os projetos de expansão imperial passariam a ter papel preponderante junto aos monarcas europeus. Nesse movimento ambicioso, desenvolviam-se as maiores organizações comerciais jamais existentes em todos os tempos: as companhias licenciadas.

Essas organizações – companhias extraordinárias, extremamente sofisticadas – recebiam cartas reais ou licenças que lhes garantiam direitos exclusivos na exploração dos mundos novos que pouco a pouco iam sendo desvendados por navegantes como Colombo, Vasco da Gama e Magalhães. Às vezes pertenciam, ao mesmo tempo, ao setor privado e ao governo, que ficava com uma parte da organização para si mesmo (cf. Companhia das Índias Orientais da França, em 1664). Outras vezes atuavam como organizações independentes, pois o governo preferia operar por meio delas (cf. Companhia Inglesa das Índias Orientais e Companhia Holandesa das Índias Orientais, a VOC).

As companhias provaram ter um imenso valor no mundo dos negócios, não apenas por estimularem a produtividade e a expansão dos negócios, mas principalmente por praticarem e ampliarem duas outras ideias medievais: as ações de mercado36 e a responsabilidade limitada37.

36 O oferecimento de ações ao público não era novidade. Já no século XIII, em toda a Europa, por exemplo, as minas e os

navios captavam recursos para seus empreendimentos vendendo ações, assim como algumas fábricas disponibilizavam títulos que poderiam ser vendidos como propriedades imóveis. A grande novidade nos séculos XVI e XVII é que essa ideia

Como vimos, um dos conceitos fundamentais no direito medieval afirmava que as “associações corporativas” possuíam a maior parte dos direitos jurídicos da pessoa física e o benefício da imortalidade, pois podiam se perpetuar por meio da descendência de seus membros ad infinitum. A necessidade de alta captação de recursos provocada pelos investimentos navais, os riscos enormes envolvidos nas empreitadas da colonização e a consequente urgência de proteger os investidores contra perdas devastadoras acabaram por gerar uma estrutura complexa e uma administração sofisticada de qualidade.

Embora a maior parte da vida comercial continuasse efetivamente na mão de empresas pequenas, na realidade parcerias que trabalhavam com um número reduzido de empregados, as companhias, no final do século XVII, por ações titulares de licenças (ou seja, reconhecidas por leis governamentais) atingiam seu ponto máximo de desenvolvimento e poder.

A já citada organização holandesa VOC, por exemplo, em 40 anos se dedicou ferozmente e em particular às especiarias, expulsando os portugueses dos negócios e restringindo a atuação dos ingleses às Índias38.

Na Inglaterra, nessa época, a companhia de maior expressividade era a Companhia das Índias Orientais, um monopólio bem organizado, mas de íntimas ligações com o Estado e com a política, chegando mesmo a correr o risco em diferentes épocas de desaparecer completamente por razões de rivalidades internas entre facções.

se ampliou de forma extraordinária e deu origem às bolsas de títulos, o que gradualmente ajudou a consolidar uma estrutura capitalista fortemente orientada.

37 Segundo a cláusula da responsabilidade limitada, os investidores somente poderiam perder o que haviam aplicado na

firma.

38 Em 1667, fizeram com os ingleses a troca que ficou famosa: deram seu pequeno entreposto na América do Norte, a

Em meados do século XVII, quase desapareceu por conta da resistência de alguns políticos com relação à forma como atuava e como disponibilizava um poder crescente. No período da Guerra Civil inglesa, 1642-1649, as rixas aumentaram; nos anos que se seguiram, Oliver Cromwell (1599-1658) batia de frente com a Companhia, pois era ardoroso simpatizante do livre-comércio.

A necessidade de atender às demandas e carências do Estado, porém, conteve as reações contrárias, e a organização prosperou incrivelmente, concentrando-se particularmente nas Índias. Seus poderes eram de tal monta que acabou se

transformando em uma espécie de governo, “um império dentro de um império” 39

(MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2003, p. 57), controlando com mãos de ferro os negócios, aterrorizando os rivais locais, intimidando e espalhando terror.

Esses, entretanto, eram tempos difíceis, e o trajeto empreendido pelas companhias esteve sempre marcado pelo imperialismo40 e pela especulação abusiva, pela desonestidade assustadora, por percalços financeiros, desastres e até massacre de populações. Escândalos como a Companhia dos Mares do Sul, fundada por ingleses em 1711 com o monopólio do comércio com a América espanhola, por exemplo, trouxe prejuízos enormes para todas as companhias por ações. A Companhia do Mississipi, com John Law, destruiu a economia da França no século XVIII, uma das mais sólidas da Europa. (Anexo 9).

Devido a todas essas questões e a todas essas incertezas, a maioria dos homens de negócios britânicos preferia trabalhar em outras bases; outros tipos de

39 “A Honrada Companhia”, como era chamada, possuía, entre outras coisas, um exército de 260 mil soldados nativos (o

que representava um contingente duas vezes maior que o exército britânico), governava uma região imensa e foi responsável pela construção da maior parte das instalações portuárias em Londres. Robert Clive e Warren Hastings foram os principais responsáveis pelo controle britânico sobre o império mongol na Índia (1725-1774).

40 Em 1773, a decisão do Parlamento inglês de dar à Companhia o monopólio do chá nos Estados Unidos acabou por

organização, como as parcerias e as companhias não licenciadas, eram escolhidos para a realização de suas operações41.

À medida que transcorria o final do século XVIII rumo ao XIX,as críticas à atuação das companhias licenciadas aumentavam, e se questionava se essas entidades que adquiriam um caráter político acentuado não deveriam ser nacionalizadas. Muitas questões eram levantadas pelos comerciantes, aristocratas, mercantilistas, acionistas e não nacionalistas, e até por críticos menos severos: cresciam os movimentos em favor de um maior controle governamental sobre sua ação que, não raras vezes, incluía pilhagem de aldeias, tortura e escravização dos nativos. Um movimento de repulsa a esses atos ganhava mais e mais força, e cresciam as vozes no debate sobre a escravidão.

A sucessão de alguns fatores iria, entretanto, provocar alterações importantes nas disposições existentes. As receitas com os impostos no lugar de lucros comerciais, a ascensão da Marinha real, o aparecimento dos seguros marítimos reduzindo os riscos do comércio naval e a concorrência de investidores comerciais privados mais competitivos e mais ágeis criavam condições significativas para que desaparecessem os monopólios licenciados42.

Seria somente com um conjunto de mudanças jurídicas e econômicas realizadas principalmente a partir da década de 1820, porém, que o sistema econômico adquiriria uma nova energia e começaria a dar forma à empresa dos nossos dias.

41 Por exemplo, o tráfico de escravos e o crescente setor industrial, duas das atividades mais prósperas e controvertidas na

economia britânica, davam preferência às parcerias comerciais e, eventualmente, às sociedades em joint venture, e não às companhias por ações.

42 Durante o século XIX, como a licença da Companhia das Índias Orientais expirasse a cada 20 anos, o governo britânico

usou a renovação de seu contrato para controlá-la mais de perto, retirando-lhe a concessão de monopólio. Por fim, ela perdeu todos os seus direitos e desapareceu em 1874.

Mesmo tendo suscitado críticas desde o seu início e apesar de todos os problemas criados, vale a pena ressaltar, em benefício de uma análise mais ampla, que as companhias licenciadas não deixaram de trazer contribuições significativas. “O modelo europeu setentrional, no qual o imperialismo estatal era subcontratado às companhias, tornou-se de longe”, segundo Micklethwait e Wooldridge (2003), “muito mais bem-sucedido do que o modelo do sul da Europa (especialmente a Espanha), onde a Coroa patrocinava diretamente o imperialismo econômico”. (p. 65-66).

A Companhia Inglesa das Índias Orientais, em particular, construiu um complexo sistema comercial em um tempo em que as informações não eram fáceis de serem conseguidas e a confiança tinha importância fundamental nos negócios; criou redes de feitoria de confiança, o que lhe garantia uma compilação considerável de dados e de informações – uma nítida vantagem sobre a atuação de qualquer homem de negócios que estivesse operando sozinho em um mercado local.

Na América, às vezes, a influência das companhias licenciadas foi exercida de forma mais esclarecida. A Companhia da Virgínia (1619), por exemplo, introduziu o revolucionário conceito de democracia nas colônias americanas, autorizando assembleias gerais cujos participantes seriam responsáveis pela eleição dos funcionários da companhia43. Esse fato provocou grande fúria de James I (1603- 1625), que o considerava início de um movimento “sedicioso” para o Estado.

43 John Winthrop (1588-1649) também fez o mesmo quando a Companhia de Massachusetts em 1630 passou a ser uma

comunidade financeira; seus acionistas em empreendimentos comerciais passaram a gozar de direitos de cidadania. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2003, p. 65).

Outra contribuição adiante de seu tempo foi propiciar condições para o “nascimento” do Homem da Companhia, um administrador leal à firma, que se dedicava e vivia exclusivamente em função dela.

Em síntese: as grandes controvérsias ao redor da existência das companhias, bem como o prejuízo causado pelos desmandos e especulações, provocaram grandes impactos e deslocamentos no sistema econômico e na sociedade como um todo.

As leis sobre companhias que ensaiavam, então, seus primeiros passos iriam ser rapidamente copiadas em diversos países e acabariam se constituindo no gérmen das empresas que se seguiram. Dessa forma, já no século XIX, consolidariam a existência de uma organização que rapidamente se transformava e parecia adquirir vida própria.

3.3 A COMPANHIA VITORIANA E A GESTAÇÃO DAS