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Em um possível retrospecto histórico, sempre há a procura de padrões, de referências totalizantes que possam dar explicações para o mundo e para o tempo em que o homem se insere. Em momentos de grandes convulsões psíquicas,

como essa que vivenciamos, procura-se ansiosamente o sentido, “uma janela para espreitar o magma da realidade em construção”.83

Os (...) valores foram abalados por uma rápida sucessão de bancarrotas ideológicas: comunismo, nazismo, existencialismo, marxismo, socialismo, capitalismo, consumismo, freudismo, novo esquerdismo, thatcherismo, reaganismo, movimentos hippie e yuppie. As imagens do homem e da mulher, as nossas próprias imagens, os mitos da televisão, a sede de equilíbrio e ordem – todas essas noções flutuam num magma de impulsos, desejos e frustrações, esperanças e desapontamentos e promessas não cumpridas. Por que é que, numa época de tanto progresso tecnológico, estamos numa tal confusão psicológica? (KERCKHOVE, 2009, p. 187).

Concordamos com a afirmação de Nietzsche quando diz que a independência e a liberdade são responsabilidades difíceis de carregar e uma razão inequívoca de grande tensão interior.

Flexibilidade, reestruturação, redefinições e reinvenções descontínuas marcam um novo cenário para o homem contemporâneo, alterando sua ideia de objetivo de vida e de identidade84.

O conflito entre caráter e experiência que se instaura no decréscimo das relações duráveis, do compromisso mútuo e da confiança informal, acaba por gerar incerteza, ansiedade pessoal com o tempo, uma sensação de estar sempre recomeçando e um estado contínuo de vulnerabilidade.85

83Essa expressão é do autor. (Cf. KERCKHOVE, 2009, p. 187).

84 “Na época da fusão, os profissionais ficaram com medo de perder emprego. A legislação trabalhista naquela época era

outra; depois de 10 anos de casa o indivíduo tinha estabilidade de emprego, não poderia ser mandado embora. Vínculos afetivos com a empresa, o apego, “nossa companhia”. Respeitavam regulamentos. As pessoas cresciam despreparadas tecnicamente e emocionalmente, e esses gerentes acabavam não suportando direito o stress da responsabilidade que é tão grande sem preparo técnico. O mundo mudou muito nesse aspecto. Anteriormente, certamente as lideranças respeitavam muito mais os princípios e valores dos patrões. Ford Brasil era meio Pigmalião, construído na imagem e semelhança. Hoje, muitos indivíduos qualificados se sentem ameaçados ”. (GIKOVATE, F./Anexo 21)

85 “Na atualidade, o desemprego dos executivos é o maior medo. O medo número 1 é de ficar desempregado, em uma

A aceleração das alterações técnicas, a ilegibilidade das novas formas de trabalho, a ruptura contínua com a antiga relação de competência e formas horizontais de hierarquização trazem para o indivíduo não apenas uma compreensão superficial de atuação profissional, do sistema como poder instituído; traduzem-se, também, em ilegibilidade emocional, em superficialidade do conhecimento do mundo e de si mesmo.

1. Segundo Lasch, em meio às transformações sociais e econômicas e às mudanças na vida pessoal e cultural, o homem, sintonizando-se com as mudanças ao seu redor – estratégia de sobrevivência necessária em uma época de transformações e em uma sociedade que valoriza as relações especulares – adapta-se a essa lógica, tentando construir sua identidade em um mundo fluido, de mudanças e mutações e de imagens compartilhadas coletivamente.

Embora a simulação marque os comportamentos na sociedade contemporânea, em algum grau a persistência da diferença entre “ser” e “parecer” ainda se mantém, e o indivíduo tem condições de escolher de forma mais ou menos livre como expressar a sua individualidade – “um núcleo de identidade” sustentará sempre o homem em sua transformação, mesmo nas condições mais extremas. (Cf. executivos D e E, em particular, que decidiram mudar de companhia: ou porque se sentissem estressados com o ritmo de trabalho, extremamente intenso, ou porque não quisessem ficar em uma estrutura organizacional que não lhes possibilitasse um convívio familiar mais satisfatório com seu ideal de vida pessoal).

colocando como centro de suas preocupações a vida profissional (mais do que a vida pessoal e a familiar) e 39,5% afirmaram temer, mais do que tudo, não ter um emprego”. (REVISTA EMPREGO, 2008)

Essa ideia é defendida também por Sennett, que considera a força individual, o voltar-se para dentro de si mesmo como os limites da coerência do homem contemporâneo.

Também Jameson afirma que, mesmo no esvaziamento da subjetividade, apesar de toda fragmentação, o eu sobrevive na articulação de si mesmo no tempo.

A interpretação que defendemos neste trabalho segue essa linha de pensamento no limite e é, portanto, a de que o self – o cerne da pessoa, traço essencial único de individualidade – sobrevive apesar de toda fragmentação.

Ratificamos essa posição, mesmo considerando que alguns estudiosos defendem concepções divergentes, como é o caso de Baudrillard e Maffesoli.

Baudrillard acredita que a precedência das imagens, a expansão da linguagem publicitária para as diversas dimensões existenciais, acaba provocando a liquidação dos referenciais e a implosão dos sentidos. Defende que a simulação perpassa toda a relação que o indivíduo tem com os outros e até consigo mesmo. É o fim do social e o fim do individual.

Em Maffesoli, a ideia do individualismo se dissolve e cede lugar à da “persona”, à das diversas máscaras em um jogo de cena, na participação comum de um mito, na construção de um “nós” pleno de figuras emblemáticas, “formas” vazias que permitem a identificação de cada um e de todos, nessa criação coletiva que é, antes de tudo, “indiferenciação”, um “perder-se” em um sujeito coletivo – “o neotribalismo”, uma sociedade com dominante empática.

A ideia de simulacro e simulação surge também nas considerações de Rüdiger sobre a moral, o predomínio do cinismo em relação aos valores comuns que se constatam em nossa época. Afirma, com razão, que a moralidade não se sustenta individualmente; depende de um conjunto de costumes compartilhados e valorizados. À medida que o indivíduo se transforma em valor, o egoísmo prevalece, a moral torna-se abstrata, apenas uma crença, um simulacro, sem sentido substancial para ser seguido ou respeitado86.

Em Rüdiger, assim como em Lasch e em Sennett, fica claro, entretanto, que todo o processo de racionalização e esquematismo, de comportamentos padronizados, sugeridos e estimulados pela indústria cultural, enfim, todo o caráter simulacional das relações sociais, não significa a implosão dos sentidos – pelo contrário, surge como lógica absolutamente necessária e coesa para o funcionamento, a eficiência e a preservação do processo capitalista em curso, como, aliás, Adorno e Horkeimer nos propõem. (COELHO, 2002, p. 63).

Como já analisado, esse ponto de contradição crucial87 em uma sociedade que valoriza tanto a concentração de riqueza e, ao mesmo tempo, enfatiza características comuns de igualdade e liberdade fica diluído na visão de mundo apresentada como realidade social que é. Ou seja, é resultado de um

86 “As maiores (empresas), conforme o crescimento vão criando normas para ocupação dos cargos, se tornando mais

rígidas para ocupação dos cargos, mais zelosas em manter seu espaço nas disputas territoriais dentro dos diferentes níveis; a empresa então tenta moldar todos dentro do perfil para cada função. Na minha experiência, isso vai até um certo nível, já no altíssimo escalão eles têm muita liberdade, agem como donos, inclusive na roubalheira também”. (GIKOVATE, F./ Anexo 21)

87 “As pessoas querem ter sucesso, que é uma coisa que destaca, e ao mesmo tempo querem se sentir integradas e iguais

a todos. Certamente existe muito essa questão: um indivíduo de destaque e a integração. Um indivíduo com destaque se desajusta, fica mais solitário. Na empresa ele é bem remunerado, é mais invejado, é excluído”. (GIKOVATE, F./Anexo 21).

planejamento, uma lógica prévia para a manutenção do poder econômico capitalista sobre as estruturas sociais.

2. Outro ponto importante a ser considerado é que no contexto presente, fortemente marcado pela aceleração, também a presença das inovações tecnológicas se faz sentir como movimento de um pêndulo que oscila.

Cada extensão tecnológica passa a ser usada com pouca ou nenhuma resistência consciente por aqueles que a adotam rapidamente; nunca, porém, se integra completa e naturalmente nas funções do corpo e da mente; e nunca fica completamente fora da construção psicológica que está em processo.

As tecnologias invadem a realidade com pouca ou nenhuma resistência consciente por parte dos que a adotam rapidamente. Os impulsos tecnológicos e as promessas do mercado, assim como um exuberante tecnofetichismo, entorpecem o público em geral que permanece psicologicamente ligado às antigas imagens de si e do mundo. (...) Cada extensão tecnológica que admitimos na nossa vida comporta-se como uma espécie de fantasma, nunca se integra completamente nas funções do corpo e da mente, mas também nunca está completamente fora da máscara psicológica. (KERCKHOVE, 2009, p. 188 - 190).

Por ser época de passagem, de mudança e de transitoriedade, o homem vive sistematicamente no limite da dúvida: na encruzilhada existencial e filosófica entre os antigos padrões, a segurança da tradição, e o novo, o que está por vir, o desconhecido.

A nossa relação de sentido único, frontal, com a tela do televisor trouxe a cultura de massas. A tela de computador, ao introduzir modalidades de interatividade bidirecional, aumentou a velocidade. O efeito das hipermídias integradas será a imersão total. Estamos à beira de uma nova cultura profunda que começou a tomar forma durante os anos

noventa. Todas as vezes em que a ênfase dada a um determinado meio muda, toda a cultura se move.(KERCKHOVE, 2009, p. 141).

A revolução da informação e da comunicação oferece, portanto, uma paisagem eletrônica complexa, de novas fronteiras, relacionamentos, contatos, redes, comunidades, propondo outros papéis, outras identidades, demandando outras formas de ‘saber ser’ e de ‘saber agir’. Para além de qualquer afirmação que se possa fazer a respeito dos seus aspectos – desestabilizantes, às vezes

excludentes, alienantes, totalizantes; ou socializantes, integradores,

descompartimentalizantes, emancipadores –, sem dúvida alguma, ela traz novas condições culturais e sociais e descortina possibilidades ainda incalculáveis em seu escopo de atuação e em seus vários movimentos futuros.

É possível que esse dilema existencial de escolha entre o velho e o novo, a tradição e o desconhecido, tenha sempre acompanhado a trajetória do homem, em qualquer época, em qualquer lugar, devido aos inúmeros desafios que teve de enfrentar, devido à sua infindável luta pela sobrevivência. Na nossa contemporaneidade, entretanto, fica evidente que a qualidade e a natureza das transformações que acontecem nessa contraposição adquirem formas e intensidades inusitadas, em um contínuo processo de metamorfoses.

A assunção do novo e o contínuo processo de metamorfoses técnicas que envolvem tudo e todos assumem, no presente, as formas de categorias existenciais: viver o nosso tempo significa mudar, “devir outro”, “ir além”, “transitar”, “deixar”, “sair”, mas num sentido diferente do significado histórico da viagem e do viajar. Numa postura distinta daquela comum aos habitantes das cidades à beira-mar que, pela própria posição geográfica, permaneciam com a constante dúvida que os deixava sempre suspensos entre o partir e o ficar, na época contemporânea, não se parte nem se retorna. O mar é em qualquer lugar. Dentro e fora de nós. Nós somos mar. (DI FELICE, 2009, p. 24).

Por todos os fatores mencionados, o aprofundamento dos possíveis significados que surgem, a partir das interações e das articulações que o homem, as novas mídias e o ambiente passam a desenvolver entre si, indica claramente para um horizonte inédito.

Há, em processo, uma nova experiência psicológica com uma subjetividade combinada com a conectividade; instituem-se novas redes interativas que, superando a barreira do espaço e do tempo, passam a instaurar novos processos econômicos, comunidades virtuais e movimentos inéditos e dinâmicos de construção de valores.

Todos esses movimentos caracterizam esse tempo presente como um tempo singular – de transformações que dizem respeito não apenas à época e à sociedade atual, mas também à nossa condição de perceber e à nossa forma de sentir, fatores únicos que, afinal, acabam produzindo a nossa singularidade. Como nos diz Morin (2000), há uma complexidade nos diversos níveis de existência traduzida na especificidade de cada ser, nas qualidades que emergem das interações. A busca do eu, acreditamos, passa necessariamente pela conscientização de si mesmo como ser humano, consubstancialmente definido em sua dimensão biológica, social e psicológica, oscilando entre sonhos e limites, aspirações e realizações, conquistas e frustrações, vida e morte – enfim, contradições que constituem a sua própria e verdadeira essência e que se entremeiam naquilo que Walter Benjamin denomina “o concreto mais extremo”, o concreto do dia a dia, compondo os interstícios dos grandes conjuntos culturais em que o homem transita com outros homens na complexidade de um novo cenário e procura usar sua liberdade fazendo escolhas que, mesmo limitadas, existem.

O capítulo “Paisagens” traz, por isso, para esse universo, reflexões a respeito das interações e articulações que se estabelecem entre o sujeito e o mundo corporativo, discutindo e analisando, em especial, as questões referentes às disposições de poder em nossa sociedade, ao papel fundamental da educação na emancipação do sujeito individual e à necessidade de respeito e valorização dos direitos humanos no contexto social contemporâneo.

CAPÍTULO 5

PAISAGENS - INTERAÇÕES E ARTICULAÇÕES ENTRE O