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A figura do Homem da Companhia ganharia seus primeiros contornos com os administradores da Companhia Inglesa das Índias Orientais no século XVII. Seria, entretanto, nas duas primeiras décadas do século XX, com o triunfo do capitalismo gerencial, que alcançaria uma posição permanente nos negócios como elemento fundamental no desenvolvimento e expansão da nova ordem econômica e cultural que, de forma gradual e silenciosa, promovia a separação entre propriedade e controle.

Certamente o gigantismo dos impérios industriais não dava condições para que os “ladrões nobres” 70 pudessem realizar o controle pessoal dos seus negócios, acompanhando cada detalhe na administração. Também nem sempre eles podiam

70 “Barões nobres”, expressão decalcada do inglês “Robber barons”. Originalmente a expressão foi usada para designar os

nobres que roubavam as pessoas que transitavam de passagem pelas suas terras. Posteriormente, no século XIX, passou a ser usada nos Estados Unidos para designar os industriais sem escrúpulos que enriqueciam com a corrupção. (MICKLETHWAIT ; WOOLDRIDGE, 2003, p. 20).

contar com a ajuda de parentes próximos que tivessem competência e preparo para tomar decisões importantes e estratégicas nas empresas que haviam criado. Segundo Baitello (2007), a revolução administrativa que Alfred Sloan implantara e desenvolvera na General Motors em 1923 levava a “unidades de negócio que se baseavam na descentralização das atividades operacionais ligadas por uma estratégia central de negócios dada pela corporação” (p.41), uma condição que conduzia à escalada de poder dos gerentes profissionais, uma nova classe profissional nesse início de século.

Gente como King, Gillete, Willian Wrigley, H. J. Heinz e John D. Rockefeller contrataram hordas de gerentes vestidos de ternos escuros a fim de organizar seus caóticos impérios. As grandes cidades americanas foram projetadas novamente, a fim de proporcionar a esses executivos um lugar onde viver e trabalhar: os novos armários verticais conhecidos como arranha-céus. (...) Gradualmente, esses “Homens da Companhia” começaram igualmente a tomar as decisões estratégicas. Todas as fusões exigiam do grupo gerencial central a racionalização da nova firma. Cada “ladrão nobre” que morria libertava-os um pouco mais. Cada emissão de ações dispersava a propriedade. (...) Esse era o pano de fundo da firma multidivisional da qual Alfred Sloan (1875-1966) foi pioneiro na General Motors. (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE, 2003, p.146-148).

Nessa nova cultura, os gerentes – homens com educação para negócios que iam além da simples contabilidade e noções de secretariado (conhecimento usual dos guarda-livros das épocas anteriores) – empregavam de forma sistemática seus conhecimentos sobre marketing, finanças empresariais e até mesmo, política de negócios, adquiridos nas principais universidades americanas. Seu caráter na administração das gigantescas empresas industriais se constituía na sustentação de dois pilares básicos: padrão profissional de qualidade e lealdade para com o empregador.

Se os tempos anteriores haviam sido marcados por transformações, crises e sobressaltos, essa sociedade industrial, vivida em plena pujança, era para a dimensão existencial do indivíduo a sociedade das certezas, do domínio racional do homem sobre as coisas e a natureza. Caracterizada pela reprodução e expansão do sistema econômico capitalista, graças a um espantoso desenvolvimento tecnológico, essa sociedade assegurava a esse homem a certeza de um futuro promissor em linha reta e de uma vida próspera e segura. O indivíduo nessa sociedade era o indivíduo “íntegro”, cuja estabilidade de identidade refletia a aparente coerência dos diversos papéis sociais que interpretava e que, fundamentalmente, giravam ao redor da posição, do papel ocupacional que possuía, segundo a nova categoria de valor do trabalho que o sistema de produção construía.

A discriminação do reconhecimento social de cada indivíduo era constituída do seu papel econômico-trabalhista, que parecia medir e regular as outras suas atribuições sociais, consentindo uma substancial congruência e aparente não-contradição entre elas. A estabilidade da identidade do sujeito podia contar com uma substancial estabilidade e continuidade da sua carreira no trabalho; na maior parte dos casos, efetivamente, o trabalho era vivido como experiência unitária e continuada, como uma missão escolhida e prevista pelo indivíduo no começo de sua vida adulta, que o seguia durante sua inteira existência. (DI NALLO, 1999, p. 156)

O mundo, entretanto, mudava novamente. A passagem da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial ou contemporânea seria caracterizada por deslocamentos estruturais profundos no âmbito social, com reflexos não apenas no processo de construção da identidade do sujeito, mas também no processo de manutenção dessa identidade.

Massimo Di Felice propõe, em sua obra “Paisagens Pós-Urbanas”, um conjunto de passagens e transformações múltiplas que marcaria a existência e a trajetória de vida do indivíduo, particularmente depois da revolução cultural de 196871:

Comunicativas: da televisão e do cinema para a interatividade;

Habitacionais: das formas geométricas da cidade histórica e

moderna, para aquelas sem raízes e em constante transformação criadas pela metrópole;

Identidárias: das identidades separadas e nacionais, para

aquelas globais, glocais e híbridas;

Tecnológicas: do analógico para as tecnologias digitais;

Geopolíticas: da Guerra Fria para formas a-geográficas e

comunicativas das guerras de terrorismo;

Econômicas: das economias nacionais ligadas ao capitalismo

industrial, para formas transnacionais de produção e consumo instáveis, ligadas à forma de reprodução financeira do capital;

Filosóficas: das ideologias, das “verdades objetivas” e das

certezas para a dúvida e o contínuo devir do pensamento fragmentário. (2002, p. 23).

Um movimento intenso de diferenciação simbólica e de complexidade mais e mais abrangente teria lugar então.

Os estudos interpretativos das diversas dimensões dessa complexidade implicariam, necessariamente, benefício de uma análise mais ampla, a busca dos novos sentidos que se criaram e das interações e articulações que se desenvolveram nesse novo cenário.

Dentro dessa perspectiva e em coerência com o plano de pesquisa deste trabalho, é possível indicar que as diversas crises da experiência empresarial em nossos dias, mais que traduzir as crises das dimensões socioeconômicas, políticas e administrativas que abalaram não apenas organizações específicas, mas antes

71 “O Maio de 68 contribuiu para que o mundo ocidental fundasse e difundisse ideias que eram novas para a época, como as

liberdades civis democráticas, os direitos das minorias, a igualdade entre os homens e as mulheres, entre os brancos e os negros e entre os heterossexuais e os gays”. (FOLHA ONLINE,30-04-08, 16:02 )

uma pluralização de territórios em todo o mundo, adquirem um significado particular se considerarmos o novo e inusitado ambiente em que elas foram geradas e em que repercutem.

Esse contexto, responsável por novos sentidos e significações, aponta de forma clara para a direção de uma progressiva implantação, em época mais recente, de um elemento inovador, uma ambiência tecnológica de ecossistemas informativos e de mundos virtuais, que inauguraria uma nova fase comunicativa – a era digital. A introdução dessa nova estrutura informativa desencadearia um conjunto amplo de transformações ao alterar a nossa condição perceptiva, a nossa forma de sentir e a nossa maneira de interagir com os diversos ambientes, ao promover mudanças nas categorias dialéticas72 de distância-proximidade, de centro-periferia, de interno-externo. Ou seja, traria em seu rastro uma transmutação do conceito de espaço e tempo (cf. um habitar sem território, com as formas habitativas mecânicas; e a superação da distância em tempo real).

Di Felice (2009) argumenta que a complexidade desse outro universo que se instaura na contemporaneidade resiste a uma interpretação imediata e pontual: há que se buscar, por isso, uma interpretação teórica midiática e comparativa – a compreensão dos possíveis significados dos diversos aspectos comunicativos que se difundiram ao longo do tempo através da interação com a leitura, com a mídia de massa eletrônica e, finalmente, com as mídias digitais, pois a cada distinção tecno-ambiental “correspondem análogas culturas diferenciadas de interação midiática com o ambiente”. (p. 21)

Se a escrita cria as representações de um espaço e de um território imateriais, reduzidos a palavras e textos, a eletricidade e as mídias

72 Na filosofia, a expressão “categorias dialéticas” é empregada para designar “processos gerados por oposições que

audiovisuais, além de devolverem ao ambiente o movimento e as cores, contribuem para a formação de uma territorialidade externa, mecanicamente móvel, que se apresenta como autônoma em relação ao sujeito. A digitalização do território, a partir do advento da comunicação digital reduzindo o ambiente a código informativo, produz, pela primeira vez, uma superação da distância entre sujeito e território, permitindo a alteração da natureza do mesmo e a interpenetração e a interdependência entre ambiente e indivíduo. (DI FELICE, 2009, p. 21)

Pensar a relação entre o sujeito e o ambiente, e em particular o ambiente profissional – objeto de estudo em nossa pesquisa –, como uma relação comunicativa significa, por um lado, pensar o processo dinâmico e extensivo de capacitação tecnológica e de informatização que transformou os negócios e suas práticas. Por outro lado, significa analisar como essa relação foi se alterando à medida que o tempo passava e inovações tecnológicas surgiam, provocando impactos no modo de interagir com o ambiente e a natureza, causando mudanças nas práticas sociais e nos relacionamentos, trazendo outras significações para o imaginário coletivo contemporâneo – enfim, gerando novos sentidos para tudo o que nos cerca e que, afinal, nos constitui.

A chegada da era digital, das redes informativas, foi uma das grandes (e tantas) revoluções na percepção do ambiente humano em sua concepção. Como Mitchell (2002) assinala:

A onda recente de instalação de rede terá um papel muito similar ao desempenhado por metamorfoses tecnológicas anteriores – como ocorreu com as estradas e aquedutos no período romano, com a expansão da navegação no século XVIII, com o apogeu dos barões ferroviários no século XIX e com a expansão da eletrificação e das rodovias interestaduais no século XX. As telecomunicações digitais serão para as cidades do século XXI o que os canais e a força dos músculos foram para Amsterdã, Veneza e Suzhou, os trilhos e a máquina a vapor para o velho oeste americano, os túneis de metrô para Londres, o motor a explosão e a auto-estrada de concreto para os subúrbios no sul da Califórnia e a eletrificação e o ar-condicionado para Phoenix no Arizona. (p. 57).

À medida que ocorre a superação de lugar e de seu sentido social, acontece em paralelo a extensão de limites entre “casa e rua, entre espaço público e espaço privado, entre fora e dentro, entre o orgânico e o inorgânico, entre o corpo e as redes eletrônico-comunicativas”. (DI FELICE, 2009, p. 164).

Nas redes comunicacionais, o deslocamento é contínuo e não necessariamente em linha reta: realiza-se não apenas de um lugar para outro, de um ponto para outro, mas se traduz no fluxo das diferentes mensagens que são enviadas e recebidas, nos contatos que se sucedem, nos diversos estados mentais que nos acodem, nas diferentes situações sociais que temos de enfrentar.

Por todos esses fatores, os estudos que se seguem buscam discutir e trazer para a pesquisa dados a respeito do impacto que essas transformações tiveram e têm sobre o sujeito, em particular sobre o sujeito inserido no ambiente de trabalho das empresas, nesse tempo presente da nova economia e da era digital.