• Nenhum resultado encontrado

Educação literária e diversidade cultural segundo os documentos oficiais

CAPÍTULO 3. Ensino de Língua Portuguesa e colonialidade de poder: sobre a (des) colonização da educação literária no Brasil

3.1. Educação literária e diversidade cultural segundo os documentos oficiais

No contexto de publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 (LDBEN-61) já se fazia presente a condenação de atitudes discriminatórias, com destaque, em dois momentos, ao preconceito racial (BRASIL, 1961, Art. 1 e Art. 95). Partindo para uma abordagem mais ampla do tema, de caráter declaradamente tecnicista, a LDBEN-71 passa, por sua vez, a reivindicar um ensino atento às “peculiaridades locais”, às “diferenças individuais dos alunos”, bem como às “diferenças culturais de cada região do País” (BRASIL, 1971, Art. 4 e Art. 29). Hoje, após quase vinte anos de vigência (e de alterações) da LDBEN-96, fala-se explicitamente de um ensino que leve em conta a “diversidade étnico-racial” do país (BRASIL, 1996, Art. 3).

Sem desconsiderar a importância de se adequar o ensino às “características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (ibid., Art. 26), a LDBEN-96 reforça, em distintos Artigos e Parágrafos de sua versão atual, o papel e o lugar do ensino de conteúdos relativos aos indígenas brasileiros, à população negra e, por extensão, ao continente africano na educação básica nacional (ibid., Art. 26-A), guiada, sobretudo, pelas alterações impostas pelas leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Embora o texto original da LDBEN- 96 recomendasse um trabalho pedagógico ciente das contribuições tanto dos europeus quanto dos indígenas e africanos para o país, ressaltava-se sua importância apenas para a disciplina de História do Brasil. As medidas tomadas a partir de 2003 instauram, por outro lado, não somente a obrigatoriedade de ensino de tal temática, como a ampliação de seu alcance a todo currículo escolar.

No muito revisado e comentado Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), publicado em 2000, a noção de diversidade na parte reservada aos “Conhecimentos de Língua Portuguesa” associa-se fundamentalmente ao fenômeno da “variação linguística”, a partir do destaque dado, já na introdução do módulo “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, à existência de diferentes “manifestações da linguagem” (BRASIL-MEC/SEB, 2000, p. 9). Defendem-se, ainda na apresentação geral do módulo, a superação de preconceitos, o “respeito mútuo” e o não desmerecimento de manifestações linguísticas distintas (pp. 9-10). No lugar de “raça” ou “etnia”, o texto inicial dos PCNEM da área de Linguagens refere-se, sobretudo, às diferenças estabelecidas entre “sujeitos de diferentes grupos e esferas sociais” (ibidem), privilegiando, portanto, reflexões em torno da concepção de classe social/poder econômico.

Outro aspecto a ser mencionado é a discussão sobre “subalternidade” levantada especificamente no texto relativo ao componente Língua Portuguesa. Ao mesmo tempo em que os PCNEM parecem defender a inclusão do “não-dito”, ou seja, dos saberes e dos bens culturais usualmente deslegitimados pela esfera escolar, a escolha de Guimarães Rosa, nome representativo do cânone literário, como exemplo de tal “diversidade” enfraquece e torna dúbia a argumentação:

Como anteriormente citamos, no processo interlocutivo há imposições sociais de hierarquia entre os pares que procuram refrear a verbalização de pensamentos e sentimentos considerados subalternos ou não referendados pelas autoridades que autorizam e controlam comportamentos pela linguagem.

Na escola, a exigência de se dar espaço para a verbalização do não-dito será uma possibilidade para a construção de múltiplas identidades.

Dar espaço para a verbalização da representação social e cultural é um grande passo para a sistematização da identidade de grupos que sofrem processos de deslegitimação social. Aprender a conviver com as diferenças, reconhecê-las como legítimas e saber defendê-las em espaço público fará com que o aluno reconstrua a auto-estima.

A literatura é um bom exemplo do simbólico verbalizado. Guimarães Rosa procurou no interior de Minas Gerais a matéria-prima de sua obra: cenários, modos de pensar, sentir, agir, de ver o mundo, de falar sobre o mundo, uma bagagem brasileira que resgata a brasilidade. Indo às raízes, devastando imagens pré-conceituosas, legitimou acordos e condutas sociais, por meio da criação estética.

Compreender as diferenças não pelo seu caráter folclórico, mas como algo com o qual nos identificamos e que faz parte de nós como seres humanos, é o princípio para aceitar aquilo que não sabemos. Todas as áreas partilham dessa necessidade de conhecimento. (BRASIL-MEC/SEB, 1999, p. 20). Além da questão do “subalterno”, a ideia de “transdisciplinaridade” é também central no documento, uma vez que a articulação das “diferentes linguagens” surge como o argumento-chave de toda a seção “Conhecimentos de Língua Portuguesa”. Desenvolve-se, assim, uma noção de diversidade ora atrelada à diversidade (social) de falantes, ora à diversidade de linguagens e de discursos (ou, ainda, à “diversidade de pontos de vista” [19]). No que se refere a um debate mais profundo sobre identidade, o documento ganha um tom mais crítico e, por conseguinte, mais alinhado a uma perspectiva intercultural, à medida enfatiza a valorização não “folclórica” da diferença:

Dar espaço para a verbalização da representação social e cultural é um grande passo para a sistematização da identidade de grupos que sofrem processos de deslegitimação social. Aprender a conviver com as diferenças, reconhecê-las como legítimas e saber defendê-las em espaço público fará com que o aluno reconstrua sua auto-estima. (...) Compreender as diferenças não pelo seu “caráter folclórico”, mas como algo com o qual nos identificamos e que faz parte de nós como seres humanos, é o princípio para aceitar aquilo que não sabemos. Todas as áreas partilham dessa necessidade de conhecimento (BRASIL-MEC/SEB, 1999, p. 20).

A publicação do segundo Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, em 2002, este conhecido como PCN+, repensa os fins e objetivos do Ensino Médio, reitera a necessidade de um ensino interdisciplinar, e pouco acrescenta a respeito da relação entre ensino e diversidade. Repete-se em sua introdução a ideia de que a escola, em relação a seus alunos, deve “valorizá-los em suas diferenças individuais, e não nivelá-los por baixo ou pela média” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 13). Ademais, apresenta-se o “respeito pela

diversidade” como um valor humano “sem qualquer especificidade disciplinar”, a ser integrado em todas as práticas educativas (p. 15).

Repetindo a perspectiva assinalada no documento anterior, o capítulo “Língua Portuguesa” ressalta o combate do preconceito linguístico, da discriminação “em relação aos falares diversos que compõem o espectro do português utilizado no Brasil” (BRASIL- MEC/SEB, 2002, p. 27). A exemplo dos PCNEM, também os PCN+ parecem estabelecer, ainda que implicitamente, uma exagerada aproximação entre classe social e variação linguística, ao não ressaltarem que também as classes dominantes “produzem” e “consumem” variantes, não estando reféns da norma culta a todo o momento e em todas as ocasiões; sem o devido aprofundamento, o documento destaca como uma finalidade pedagógica: “a partir da observação da variação lingüística, compreender os valores sociais nela implicados e, conseqüentemente, o preconceito contra os falares populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 82). Os preconceitos de ordem sexual, étnica e social, por sua vez, aparecem como “deveres e dilemas éticos da profissão” a serem enfrentados pelo professor (p. 89) ¾ a palavra “etnocentrismo” aparece uma vez no texto, citada de modo superficial e qualificada como uma recorrente “raiz do preconceito”.

A tentativa de desconstrução da noção de “erro” em favor de um pensar direcionado pelas concepções de “adequação” e “inadequação” é, sem dúvidas, um dos pontos fortes dos PCN+. Trata-se, porém, de um argumento quase estritamente pensado no âmbito do ensino de língua, que desconsidera, assim como o fez os PCNEM, que a variação linguística faz-se presente também entre as produções artísticas, também no estilo dos diferentes autores. No que tange a um repensar do ensino de literatura, observa-se a predileção por produções artísticas e discursos legitimados, de matriz europeia. Servem de exemplo as produções literárias listadas na subseção dedicada à apresentação do conceito de “identidade”, momento em que se elucidam alguns dos possíveis conteúdos representativos das chamadas “diversas manifestações culturais da vida em sociedade”: “espera-se que o aluno do Ensino Médio consiga reconhecer e saiba respeitar produtos culturais tão distintos quanto um soneto árcade ou um romance urbano contemporâneo” (BRASIL-MEC/SEB, 2002, p. 63). Portanto, a partir desses e de outros pontos aqui recuperados, entende-se o porquê de Moita Lopes & Rojo (2004), em sua releitura dos PCNEM e dos PCN+, recomendarem que “se repense a relação

entre aprendizado cotidiano/aprendizado sistemático e cultura popular/cultura valorizada ou oficial no conjunto dos documentos” (MOITA LOPES & ROJO, 2004, p. 41).

O início da apresentação do módulo “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), publicadas em 2006, aponta para uma aparente mudança de perspectiva em relação aos PCNEM e PCN+, visto que se estabelece, já nas páginas iniciais, uma ponte entre “política curricular” e “política cultural”:

Além disso, a política curricular deve ser entendida como expressão de uma política cultural, na medida em que seleciona conteúdos e práticas de uma dada cultura para serem trabalhados no interior da instituição escolar. Trata- se de uma ação de fôlego: envolve crenças, valores e, às vezes, o rompimento com práticas arraigadas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 8). Além da variação linguística, mencionam-se no capítulo “Conhecimentos de Língua Portuguesa” a “diversidade de culturas” (BRASIL-MEC/SEB, p. 33) e as “múltiplas culturas” que constituem uma sociedade (p. 43). De fato, uma das discussões promovidas nas primeiras páginas da seção dedicada aos “Conhecimentos de literatura” sugere que o documento inclina-se a uma perspectiva multicultural de ensino. Recorda-se, explicitamente, que a literatura fora durante longo período “um dos pilares da formação burguesa humanista”, havendo sido guiada, portanto, pela “tradição letrada de uma elite que comandava os destinos da nação” (p. 51). Com base nessas considerações, dá-se início a um discurso em prol de um repensar do lugar e do papel da literatura nos dias atuais, o qual, porém, parece convergir para uma postura tão resistente quanto às observadas nos PCNEM e PCN+, resumindo-se, outra vez, à reafirmação de um cânone já instituído.

Novamente ausente, a questão da diversidade perde espaço para uma breve abordagem teórica de outros conceitos de grande complexidade, incluindo noções muitas vezes assumidas como balizadores da interculturalidade dentro da escola, tais como a relação entre “valor cultural” e “valor estético” ou entre “texto literário” e “texto de consumo” (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 57). Ao contrapor, por exemplo, a figura do professor “conservador”, isto é, afeito ao cânone, à do professor “libertário”, ou seja, do “professor que lança mão de todo e qualquer texto, de Fernando Pessoa a raps, passando pelos textos típicos da cultura de massa” (ibid., p. 56), fazem-se as seguintes indagações:

[...] caso do professor que se considera libertário (por desconstruir o cânone) e democrático (por deselitizar o produto cultural). Será? − perguntamo-nos. Ainda acompanhando o raciocínio de Chiappini, se existe o professor

“conservador” que ignora outras formas de manifestação artística, não haveria, de outro lado, na atitude “democrática”, e provavelmente cheia de boas intenções, um certo desrespeito às manifestações populares, sendo condescendente, paternalista, populista, “sem adotar o mesmo rigor que se adota para a cultura de elite”? Ou, acrescentaríamos nós, não haveria demasiada tolerância relativamente aos produtos ditos “culturais”, mas que visam somente ao mercado? Se vista assim, essa atitude não seria libertária ou democrática, mas permissiva. Pior ainda: não estaria embutido nessa escolha o preconceito de que o aluno não seria capaz de entender/fruir produtos de alta qualidade? [...]. (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 56).

É curioso no excerto destacado o fato de as OCEM partirem do pressuposto de que a “desconstrução do cânone” viria ou costuma vir acompanhada de menos rigor na mediação de leitura e na abordagem dos textos; que ela seria, a priori, “paternalista” ou “permissiva”. Chama-nos ainda mais a atenção o desdobramento da discussão, em que se rememora, com bastante naturalidade e sem maiores explicações, a obra do escritor afrodescendente e abolicionista José do Patrocínio como um exemplo de obra dotada de “escasso valor estético”, sob o pretexto da defesa de um suposto rigor didático-pedagógico:

Qual seria então o lugar do rap, da literatura de cordel, das letras de músicas e de tantos outros tipos de produção, em prosa ou verso, no ensino da literatura? Sem dúvida, muitos deles têm importância das mais acentuadas, seja por transgredir, por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de determinado contexto, mas isso ainda é insuficiente se eles não tiverem suporte em si mesmos, ou seja, se não revelarem qualidade estética. Gramsci, em 1934, já estabelecera uma diferença entre valor cultural e valor estético. Muitas obras de grande valor cultural têm escasso valor estético, até mesmo porque não se propuseram a isso: é o caso, por exemplo, dos escritos de José do Patrocínio; outros, mesmo produzidos por artistas não letrados, mas que dominam o fazer literário − ainda que quase instintivamente −, certamente deverão ser considerados no universo literário: Patativa do Assaré, por exemplo, e tantos outros encontrados no nosso rico cancioneiro popular. Qualquer texto escrito, seja ele popular ou erudito, seja expressão de grupos majoritários ou de minorias, contenha denúncias ou reafirme o status quo, deve passar pelo mesmo crivo que se utiliza para os escritos canônicos: Há ou não intencionalidade artística? A realização correspondeu à intenção? Quais os recursos utilizados para tal? Qual seu significado histórico-social? Proporciona ele o estranhamento, o prazer estético? (destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEB, 2006, pp. 56-57).

De imediato, a pergunta que lançamos é: quais são as fontes e/ou os critérios utilizados pelas OCEM para classificar e opor as obras de José do Patrocínio e de Patativa do Assaré de forma tão natural, quase como se fosse uma distinção autoevidente? Em outras palavras, a falta de embasamento e de aprofundamento em um documento que se pretende “orientador” pode dar margem a leituras que aproximem tais classificações a juízos de valor,

o que prejudica a qualidade do debate. Na sequência, é feita uma observação quanto à questão dos “julgamentos”, momento em que se contrapõe o “texto de consumo” ao “texto literário”:

Mas não nos iludamos: sempre haverá, em alguns casos, uma boa margem de dúvida nos julgamentos, dúvida muitas vezes proveniente dos próprios critérios de aferição, que são mutáveis, por serem históricos. Mesmo apresentando dificuldades em casos limítrofes, entretanto, na maioria das vezes é possível discernir entre um texto literário e um texto de consumo, dada a recorrência, no último caso, de clichês, de estereótipos, do senso comum, sem trazer qualquer novo aporte. (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 57).

De modo geral, observa-se no texto das OCEM a recorrência de oposições binárias, que, mesmo acenando timidamente para a ampliação do repertório escolar, acaba por situar no polo negativo manifestações desviantes do cânone literário. Na página 59, por exemplo, também a “fruição” é explicada a partir de uma relação dicotômica com o “divertimento” e com o “lúdico”: “o prazer estético proporcionado pela fruição pode ser confundido com divertimento, com atividade lúdica simplesmente”. Em um contexto no qual a educação intercultural não é uma realidade, como no Brasil, é pertinente questionar o quão produtivo é dedicar um documento à explicitação do potencial nocivo da adoção de práticas e de repertórios mais diversos. Em nome de proteger as salas de aula de eventuais textos “de escasso valor estético” ou de impedir a confusão entre “fruição” e “diversão”, os OCEM parecem lançar mão de esclarecer quais seriam, afinal, alguns dos significados de uma educação literária de base multicultural; caberia, por exemplo, no lugar de associar os textos de um escritor afrodescendente à baixa qualidade estética, elencar autores e textos representativos da literatura negra, bem como estratégias para introduzir e conduzir essas leituras de forma crítica.

Feitos esses registros, cabe relembrar: os trechos que acabamos de analisar respondem a um contexto bastante específico no âmbito de orientações e diretrizes curriculares. Desse modo, para desenvolver uma leitura completa e esclarecida do texto “Conhecimentos de literatura” presente nas OCEM, é preciso ter em conta sua conjuntura, a qual impõe ao documento a sua função de reconstruir uma identidade para a literatura como área de conhecimento, haja vista a falta de especificidade dos documentos anteriores, o que, talvez, explique o tom adotado no texto. A respeito dessa questão, explica-se:

As orientações que se seguem têm sua justificativa no fato de que os PCN do ensino médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de

Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem suscitando, além de negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe são devidas. (...) Embora concordemos com o fato de que a Literatura seja um modo discursivo entre vários (o jornalístico, o científico, o coloquial, etc.), o discurso literário decorre, diferentemente dos outros, de um modo de construção que vai além das elaborações lingüísticas usuais, porque de todos os modos discursivos é o menos pragmático, o que menos visa a aplicações práticas (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 49).

Entende-se e justifica-se, sob esse prisma, o excessivo espaço dedicado ao esclarecimento de questões particulares da esfera literária. Mais que redefinir o lugar e os fins do ensino de literatura, as OCEM buscam fornecer ferramentas mínimas para que o professor possa refletir sobre o seu trabalho com o texto literário, com o intuito de preencher uma grave lacuna deixada tanto pelas políticas educacionais quanto pelos Estudos Literários, que pouca atenção têm dirigido ao tema. Porém, o ponto questionável dessa reiteração de uma tradição de ensino está no fato de tal postura implicar na desconsideração de expressões artísticas que fujam ao repertório já conhecido, as quais são sempre recordadas com ressalvas. Ilustra esse ponto a indistinção entre “perspectiva multicultural” e interdisciplinaridade ou multimodalidade, presente nas páginas finais do capítulo:

Também é desejável adotar uma perspectiva multicultural, em que a Literatura obtenha a parceria de outras áreas, sobretudo artes plásticas e cinema, não de um modo simplista, diluindo as fronteiras entre elas e substituindo uma coisa por outra, mas mantendo as especificidades e o modo de ser de cada uma delas (...) (BRASIL-MEC/SEB, 2006, p. 74).

A título de breve comparação entre os discursos assumidos para o Ensino Médio e para o Ensino Fundamental, vale apontar a existência de um documento intitulado Pluralidade Cultural, publicado pelo MEC em 1998, na ocasião de divulgação dos “Temas Transversais” definidos para o Ensino Fundamental em 199744. `Nele, diferentemente do que observamos nos discursos orientadores do terceiro ciclo, verificam-se pontuais diálogos com as futuras premissas e proposições das leis de 2003 e 2008. Destacamos as partes mais significativas:

Conhecimentos históricos e geográficos [...]

44 Os Temas Transversais do Ensino Fundamental divulgados pelo MEC em 1997 foram: Ética, Pluralidade

Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual e Temas Locais. “Apresentação dos Temas Transversais” (1997): <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf>. Acesso em 20/11/2018.

A formação histórica do Brasil mostra os mecanismos de resistência ao processo de dominação desenvolvidos pelos grupos sociais em diferentes momentos. Uma das formas de resistência refere-se ao fato de que cada grupo — indígena, africano, europeu, asiático e do oriente médio — encontrou maneiras de preservar sua identidade cultural, ainda que às vezes de forma clandestina e precária.

Assim sendo, tratar da presença do índio pela inclusão nos currículos de conteúdos que informem sobre a riqueza de suas culturas e a influência delas sobre a sociedade, conforme disposto na Constituição de 1988 (art. 210, parágrafo 2º), é valorizar essa presença e reafirmar os direitos dos índios como povos nativos, de forma que corrija uma visão deturpada que os homogeneiza como se fossem de um único grupo, devido à justaposição aleatória de traços retirados de diversas etnias.

[...]

O estudo histórico do continente africano compreende enorme complexidade de temas do período pré-colonial, como arqueologia; grupos humanos; civilizações antigas do Sudão, do sul e do norte da África; o Egito como processo de civilização africana a partir das migrações internas. Essa complexidade milenar é de extrema relevância como fator de informação e de formação voltada para a valorização dos descendentes daqueles povos. Significa resgatar a história mais ampla, na qual os processos de mercantilização da escravidão foram um momento que não pode ser amplificado a ponto que se perca a rica construção histórica da África. O conhecimento desse processo pode significar o dimensionamento correto do absurdo, do ponto de vista ético, da escravidão, de sua mercantilização e das repercussões que os povos africanos enfrentam por isso. (destaque nosso) (BRASIL-MEC/SEF, 1998, pp. 130-132)45.

A partir do panorama aqui esboçado, indo da leitura dos PCN à leitura das OCEM46, nota-se que é pouco amadurecido o diálogo estabelecido entre os documentos oficiais