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O Manual do Professor do NP02 é composto por respostas integradas às atividades e por um apêndice com orientações gerais e indicações complementares. Não há nele nenhuma diretriz específica sobre o lugar a ser ocupado pela diversidade cultural na coleção, tampouco se mencionam as leis 10.639/03 e 11.645/08. Por conseguinte, a localização e distribuição dos conteúdos previstos pelas leis é do tipo tangencial, com escassa presença de títulos representativos das literaturas africanas, negras e indígenas. Chama a atenção, nesse sentido, no subcapítulo de orientação pedagógica dedicado ao eixo literário, o fato de o recorte de debate proposto ao Professor acabar por construir uma argumentação favorável à reafirmação da leitura de obras clássicas. Para responder as perguntas “Mas os alunos estarão preparados para a complexidade da leitura literária? A literatura não é uma manifestação estética elitista, distante dos alunos, sobretudo os das escolas públicas?” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 7), NP02 dialoga com o artigo “Literatura para todos”, de Leyla Moisés-Perrone92, a partir do qual se questiona o caráter elitista por vezes atribuído ao campo literário e se reafirma a leitura do cânone como sendo uma leitura democrática. É nas conclusões dessa discussão que se torna evidente, a nosso ver, uma concepção em certa medida equivocada do papel de um repertório literário plural nas escolas. Observemos esses apontamentos, atentando-nos, em especial, à apresentação dos critérios de seleção de seus textos, descritos no parágrafo final:

A fim de exemplificar essa posição [“qualquer que seja a extração social do aluno, sua inteligência lhe permite a aprendizagem da leitura literária”], Leyla Perrone refere-se ao escritor Ferréz, de Capão Redondo, um dos bairros mais problemáticos da periferia paulistana. Recriado literariamente, o lugar transformou-se em Capão pecado, obra reconhecida pelo público e também pela crítica. Em uma entrevista, ele relata que um romance – Madame Bovary, de Gustave Flaubert – foi o responsável pela mudança radical que houve em sua vida, permitindo, até mesmo, que conseguisse “contaminar toda a comunidade”.

Por meio desse exemplo, a ensaísta propõe que repensemos o repertório de autores e obras presente nos currículos, relativizando “excessiva preocupação com o ‘contexto social’ e a ‘identidade’”. Na sua maneira de ver, o resultado de tal postura é “o artificialismo dos estudos literários”, vistos como elitistas. Em oposição, ela defende que “o ensino da literatura, em qualquer nacionalidade, não é elitista, mas democratizante”, pois “[o] livro ainda é o objeto cultural mais barato e acessível, e o texto de Dom Quixote ou de Dom Casmurro é o mesmo, num volume encadernado em

papel-bíblia ou num exemplar da banca de jornal”. E concluí: “[se] os leitores de literatura constituem uma elite, esta é aberta a todos os alfabetizados, cabendo aos professores apenas mostrar o objeto sob sua melhor luz”.

Em sintonia com tais ponderações iluminadoras, e com o projeto global deste livro, o setor da Literatura busca um equilíbrio entre o ensino tradicional de história literária e o estudo interno da Literatura, elegendo as obras que constituem o cânon selecionado pela tradição e dando ênfase ao trabalho com o texto: o centro inequívoco da preparação das aulas do professor. (destaque nosso) (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 8).

O critério de eleger obras “tradicionais”, somado ao objetivo de se promover o “estudo interno da Literatura”, já antecipa as razões pelas quais observamos, durante a análise de NP02, a baixa ocorrência de repertórios não canônicos e de atividades que conduzam a reflexões sobre a diversidade cultural. Todavia, revela-se pouco consistente a argumentação que justifica essa escolha. Primeiramente, é preciso ter em mente que as discussões envolvendo “identidade” e “contexto social” (ou “sociedade”) no âmbito do ensino de Língua Portuguesa não costumam reivindicar o apagamento ou o desmerecimento do cânone literário. Como vimos em nossa fundamentação teórica, a busca pela diversidade (ou pela descolonização) no ensino de literatura implica a revisão do cânone, mas não nega sua relevância nem seu lugar. Isso posto, pensar a “democratização” da educação literária tem a ver mais com a reivindicação de um repertório democrático (no que tange à origem e ao perfil de seus autores, aos gêneros textuais etc.), que amplie (e não que reduza) a gama de textos aos quais os estudantes têm acesso, e menos (ou nada) a um questionamento das capacidades e das competências (ou da “inteligência”) dos estudantes a depender de sua classe social  tal perspectiva seria, inclusive, preconceituosa. É nesse sentido que causa estranheza o fato de o suposto “elitismo” presente nos Estudos Literários ser debatido, em NP02, à luz das origens dos estudantes e não dos autores e das obras; explico: a crítica a esse pretenso “elitismo literário” costuma partir, no contexto das reflexões sobre literatura e sociedade, do apagamento de determinados autores e de determinadas obras (tal qual acusam as leis aqui estudadas), servindo igualmente ao cenário das escolas públicas e ao das particulares. Ao contrário do que parece apontar a argumentação de NP02, o repensar do cânone é também pertinente ao setor privado de educação, dado que a dificuldade e a resistência à leitura dos clássicos também nele se faz presente, como revelam relatos de docentes e trabalhos acadêmicos. Não se trata, portanto, de tomar a experiência de Ferréz com Madame Bovary como uma prova da democracia inerente à leitura do cânone, mas de pensar essa democracia,

bem como a quebra do referido elitismo, com base, justamente, na ausência de escritores como Ferréz no rol de autores ofertados nas escolas; escritores estes como os citados pelo autor de Capão pecado na complementação de sua resposta sobre Madame Bovary, não apresentada pelo material:

Folha - E que livro mudou sua vida?

Ferréz -Foi "Madame Bovary", de Flaubert. Eu tinha uns 15, 16 anos, já lia muito gibi, literatura de cordel. O livro caiu na minha mão de uma forma bem curiosa. Um amigo meu mandou a mãe escolher entre ele e o padrasto. Ela escolheu o padrasto e o abandonou. No final de semana, a gente ia levar comida para ele, que morava sozinho em um barraco. Uma das coisas que a mãe dele deixou foi uma caixa de livros. Depois disso, descobri Paulo Lins, João Antônio, Lima Barreto, Plínio Marcos. Tomei a pílula do "Matrix" e nunca mais fui o mesmo. (sublinhado nosso) (FERRÉZ, 2005, s/p)93.

Para fechar a análise da macroestrutura de NP02, merece atenção uma das “sugestões de projetos interdisciplinares” dadas ao Professor, projeto este transversal aos três volumes. A partir da proposta de articulação das disciplinas de Literatura, História e Gramática, sugere-se o tema “Escritoras brasileiras e a condição feminina no Brasil”, visando discutir, entre outros aspectos, que “hoje em dia há muitas autoras famosas, mas que em outros tempos a manifestação literária das mulheres sofreu limitações e entraves, em razão do preconceito e da opressão” (AMARAL; FERREIRA; LEITE; ANTÔNIO, 2013 [Vol. 1 – Apêndice: “Caderno do Professor”], p. 21). Na relação de “autoras menos conhecidas” do século XIX apresentada por NP02, entre as quais os estudantes devem selecionar três para uma pesquisa aprofundada sobre suas biografias e obras94, consta a indicação de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), apresentada como “maranhense e mulata, [que] teria sido a primeira brasileira a publicar um romance: Úrsula (1859)” (ibid., p. 21). Como “ponto de partida”, é dado o link do texto “Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro- brasileira”, de Eduardo de Assis Duarte. Embora o link disponibilizado pelo livro didático esteja atualmente corrompido, é fácil encontrar o referido artigo na internet, o qual integra,

93 A entrevista à qual NP02 faz referência pode ser lida integralmente em:

<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm0606200515.htm>. Acesso em 04/03/2019. O trecho por nós citado não constava no material, mas é, a nosso ver, imprescendível ao entedimento da experiência literária de Ferréz.

94Demais autoras listadas: Nísia Floresta (1810-1885); Maria Benedita Bormann (1852-1917); Narcisa Amália

inclusive, o acervo do portal “Literafro – O portal da literatura afro-brasileira”, da UFMG95. Dessarte, interpretamos tanto o projeto de autoria feminina, no geral, quanto a rememoração de Maria Firmina dos Reis, em particular, como positivos a uma educação literária descolonizadora.