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Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas nas coleções do PNLD

4.1. Análise das coleções

Ao encontro do que assinalamos em nossa Introdução, este trabalho reconhece os livros didáticos não apenas como transmissores de conhecimentos acadêmicos, mas como efetivos modificadores e construtores de saberes escolares. Nesse sentido, não julgamos necessário expor aqui uma revisão teórica acerca dos conceitos de “literaturas africanas”, “literatura negra/afro-brasileira” ou de “literatura indígena”, ainda mais ao se ter em vista a existência de trabalhos que exploram, de forma crítica e aprofundada, essas questões81. Interessa-nos enfocar, precisamente, os significados e as perspectivas que as próprias coleções conferem a esse repertório, isto é, explorar o resultado da transposição didática de tais discussões acadêmicas, e não os discursos acadêmicos em si. Eventuais conceituações teóricas desse viés são articuladas às nossas reflexões conforme se façam necessárias às análises.

Em síntese, o presente capítulo expõe os resultados da análise do nosso corpus de pesquisa, tendo sempre em vista cumprir com o objetivo geral de verificar se, em que medida e de que modo a aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 corrobora a ideia de descolonização do ensino de literatura. Em diálogo com os focos e métodos analíticos anteriormente detalhados, a apresentação da análise de cada uma das coleções do PNLD 2015 divide-se em “Macroestrutura da Coleção” e “Microestrutura da Coleção”, cada qual correspondente aos focos de investigação sintetizados no Quadro 4 (subseção 3.3.2., página 127)  simplificadamente: a primeira é focada no estudo do Manual do Professor, enquanto que a segunda volta-se majoritariamente à análise do Caderno do Aluno. Ademais, visando atender também aos recortes temáticos que mencionamos ao final subseção 3.2.2., a análise do nível micro conta com uma subdivisão específica, constituída dos seguintes recortes:

 “Revisitando o cânone: Quinhentismo e Romantismo (Indianismo e Condoreirismo)”;  “Reestruturando o cânone I: literaturas africanas e literatura negra/afro-brasileira”;  “Reestruturando o cânone II: literaturas indígenas”.

81 Trabalhos sobre “literatura negra” e/ou “afro-brasileira”: DUARTE (2015), DA SILVA (2011) e BERND

(1988); sobre “literaturas africanas”: LEITE (2013) e ABDALA JUNIOR (2007); sobre “literatura indígena”: THIÉL (2012; 2013) e GRAÚNA (2003); literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas e práticas pedagógicas: DUARTE (2014), AMÂNCIO et al (2008), ABDALA JUNIOR (2003), DA SILVA & GRUPIONI (1995); outros: RISERIO (1993).

No primeiro caso, apresentamos uma revisão crítica dos capítulos dedicados ao Quinhentismo e ao Romantismo; no segundo, abordamos, articuladamente, todas as ocorrências relacionadas às literaturas africanas e à literatura negra/afro-brasileira, independentemente dos capítulos em que elas compareçam; em “Reestruturando o cânone II”, o mesmo método é empregado no que tange às literaturas indígenas. Finalmente, inserimos, no encerramento de cada análise, uma tabela precedida pelo título “A título de retomada e de síntese: coleção X e o repertório das leis 10.639/03 e 11.645/08 (produções de autoria indígena, negra/afrodescendente e/ou africana, para além do cânone escolar)”, na qual listamos as produções artístico-literárias utilizadas pela coleção para introduzir as literaturas indígenas, afro-brasileira e africanas — vale esclarecer que optamos por elencar apenas os casos em que o cumprimento das leis estivesse associado a excertos/fragmentos artístico- literários, de modo que desconsideramos, no contexto de elaboração das tabelas, a mera menção a um autor ou a uma obra.

Especificamente em relação à compilação dos repertórios literários de cada coleção, reiteramos que o nosso levantamento atenta-se à introdução, nos livros didáticos, de autores africanos, indígenas e afrodescendentes que usualmente são alijados do cânone escolar — por isso, nomes já clássicos da literatura brasileira, como o de Cruz e Sousa ou de Lima Barreto, não integram nosso foco analítico. Uma vez localizados esses escritores nas coleções, dois aspectos nos parecem particularmente relevantes: (i) averiguar se o autor estudado pelo material assume-se, de fato, como um autor “negro”, “africano” e/ou “indígena”, por meio de consulta a suas declarações públicas — nota-se, por exemplo, que a identidade literária de escritores nascidos em países africanos, mas que têm ascendência europeia e/ou que se mudaram muito jovens para Portugal, costuma ser variável, pois se revela por vezes atrelada à Europa, por vezes atrelada à África; e (ii) conferir se as chaves de leitura escolhida pelo livro didático tocam, também, questões identitárias (raciais e/ou étnicas) e/ou históricas, haja vista os objetivos das leis 10.639/03 e 11.645/08 englobarem o combate a estereótipos, a preconceitos, bem como uma aproximação crítica e positiva à História e à Cultura desses grupos. Isso significa, em nossa percepção, que um uso desses textos apenas como pretexto para exercícios linguísticos descolados de seus contextos e/ou o desenvolvimento de análises literárias presas à superficialidade das narrativas, além de não favorecerem a formação de leitores críticos, em geral, vão contra quaisquer pressupostos de uma educação para a diversidade cultural, em particular. De forma simplificada, o levantamento desses conteúdos

nos leva a perguntar: quem os livros de Português escolhem para o cumprimento das leis e como suas produções artístico-literárias são apresentadas. Para avaliar o como, buscamos dar especial destaque a dados, a aspectos e a propostas didático-pedagógicas do PNLD 2015 que se mostrem alinhados e/ou contrários à consolidação de uma educação literária de viés pós- colonial, tal qual debatida nas seções iniciais deste trabalho.

A escolha de apresentar as análises isoladamente, uma a uma, é justificada pela necessidade de manter um diálogo entre os níveis macro e micro das coleções, isto é, de estabelecer relações entre a composição do projeto editorial e do Manual do Professor e as respectivas chaves e atividades de leitura sugeridas aos alunos. Contudo, na subseção 4.2., que encerra este capítulo, chamamos a atenção para as principais similaridades e discrepâncias identificadas entre as coleções analisadas. Outrossim, a despeito de não se tratar de uma análise de viés longitudinal82, consideramos pertinente ao entendimento daquilo que repetidas vezes chamamos de “cânone literário escolar” ou “modelo clássico de ensino” recorrer, breve e pontualmente, a comparações com livros didáticos mais antigos, que permitam atestar e elucidar o teor das mudanças e das inovações desencadeadas pelas leis. Em virtude disso, algumas passagens de Português Linguagens (2013), de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, são comparadas a trechos de suas edições anteriores, a saber, a edição de 1994 e de 2003. Essa escolha se deu com base no lugar historicamente ocupado por esses autores no mercado editorial de livro didático. Suas obras fazem-se presentes em grande parte das listas até hoje aprovadas pelo PNLD, tanto no nível Fundamental quanto no nível Médio. Enfatizamos que, com essas leituras, objetivamos apenas assinalar alguns contrastes mais evidentes dos efeitos das leis na produção de materiais escolares, sem nos desviar do nosso corpus, o qual, por sua vez, corresponde a obras publicadas entre os anos de 2013 e 2014, ou seja, a um distanciamento temporal de dez anos da data de aprovação da lei 10.639/2003.

82Traçar paralelos entre diferentes edições de um mesmo livro didático parece ser, a nosso ver, uma produtiva

possibilidade de pesquisa. Nesse sentido, por fugir ao escopo do nosso trabalho, registramos aqui tal lacuna analítica, a fim de incentivar outros investigadores a abordar, de forma sistemática, a questão da descolonização dos livros didáticos a partir de um estudo longitudinal.

4.1.1. Português Linguagens (Saraiva) – 1ª coleção do PNLD 2015 em

número de distribuições

CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Anália Cochar. Português

Linguagens (Livro do Professor), 9ª ed., Volumes 1, 2 e 3, São Paulo: Saraiva, 2013.

SIGLA:PL01

De acordo com o Guia do PNLD 2015, a “articulação promovida pela leitura” e a “contextualização da produção literária” revelam-se pontos fortes da coleção PL01, contrariamente ao que se observa em relação ao trabalho com conhecimentos linguísticos, destacado no Guia como um ponto fraco pelo fato de haver poucas oportunidades de reflexão (BRASIL-MEC/SEB, 2014b, p. 55). De fato, muitos aspectos por nós observados atestam “a ênfase” dada ao ensino de teoria e história literária mencionada pelo documento: do total de 121 capítulos que compõem seus três volumes, 40% (ou 49 capítulos) voltam-se à literatura, sendo o restante distribuído entre os eixos de “produção de texto”, “língua: uso e reflexão” e “interpretação de texto”; o critério organizacional da coleção funda-se na literatura, haja vista os títulos de suas unidades temáticas (que agrupam capítulos dos diferentes eixos) darem destaque aos nomes das escolas ou dos movimentos literários a serem estudados, seguindo uma ordem cronológica; e, por fim, também a formação dos autores da coleção pode ser considerada, talvez, à luz dessa predominância, pois, apesar de William Cereja ser Doutor em Linguística Aplicada e Análise do Discurso (PUC-SP), tanto ele quanto Thereza Cochar são mestres em Teoria Literária (USP) e Estudos Literários (UNESP), respectivamente. De acordo com as biografias presentes nas coleções, Cereja atua como professor da rede particular de ensino, em São Paulo-SP, e Cochar na rede pública da cidade de Araraquara, interior de SP.